Paul Auster contestou desde muito cedo o uso massivo de armas pelos americanos
Paul Auster contestou desde muito cedo o uso massivo de armas pelos americanosCrédito: Orlando Almeida / Global Imagens

O apelo final de Paul Auster

Um ano antes de morrer, o escritor publicou 'Banho de Sangue Americano'. Uma radiografia à maior ameaça social nos Estados Unidos da América.
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O último livro do escritor norte-americano Paul Auster (1947-2024) intitulava-se Baumgartner, um romance em que a morte rondava sem rodeios devido à doença fatal que o surpreendera e que em pouco tempo o iria matar. Meses antes, o autor publicara um ensaio biográfico, social e histórico, intitulado Banho de Sangue Americano, que retratava um drama: a presença e o peso das armas na sociedade dos Estados Unidos da América. Em 150 páginas de texto e com dezenas de fotografias de partes de cidades nuas, de autoria do seu genro, Spencer Ostrander, em que Auster fazia um balanço da notícia mais repetida no país diariamente, a da constante morte de cidadãos devido à enorme proliferação de armas.

As armas não tiveram papel de relevo nos seus romances, optando por outras situações distantes de um puxar de gatilho e da morte do outro – ou do próprio personagem -, mesmo que existissem nas suas narrativas momentos de grande intensidade conflituosa. No entanto, esse confronto com as armas não deixou de existir desde cedo na sua vida, como relata logo no início deste volume, ao referir que tivera pistolas de brincar, que vira muitos filmes de cowboys na televisão, como Hopalong Cassidy e The Lone Ranger, mas “tudo era pura treta nesses antigos filmes e séries”. Apesar de as ter experimentado, as de brincar, fez questão de deixar como a primeira frase do livro uma declaração fundamental: “Nunca tive uma arma.” Praticou tiro ao alvo e ao prato nos campos de férias, mas o desporto ganhou a melhor e a sua atenção mudou de lado.

Ter-se-á livrado dessa ameaça porque “ninguém na nossa família possuía uma arma de fogo, nem os meus amigos e suas famílias. As armas eram meros adereços em produções cinematográficas e o sangue que espirrava dos feridos era tinta encarnada”. O futuro trouxe-lhe uma revelação inesperada, pois Paul Auster veio a descobrir cinco décadas depois que o pesadelo também existira na sua família: “A minha avó alvejou a tiro o meu avô”. Tal como as muitas histórias pessoais de um país que vem sendo invadido por armas aos milhões, alterando a vida dos Estados Unidos e o comportamento de uma grande maioria de americanos.    

Conta Paul Auster que Spencer Ostrander criticava o mundo armado em que os Estados Unidos se transformaram, mesmo que desde o início da história do país a arma fosse um dos principais símbolos empunhados pelos que o colonizavam. Por essa razão, o fotógrafo visitara vários locais onde tinham acontecido grandes massacres nas últimas duas décadas e fotografara o abandono visível dessas construções desde a tragédia. Nas fotografias não aparecem pessoas, no máximo o sinal de existência humana é dado por automóveis. A primeira da última série de imagens não contém esses acrescentos de vida, exibe apenas um pequeno edifício onde as ervas crescem à sua volta. Trata-se do clube noturno, o Pulse, na Flórida, onde morreram 50 pessoas e foram feridas 58, abandonado desde então. A penúltima mostra, através de um gradeamento, o Hotel Mandalay Bay, no Nevada, onde morreram 61 pessoas e foram feridas 897.

Numa das poucas entrevistas que deu à data da publicação de Banho de Sangue Americano, destaca-se a que concedeu ao jornal The Guardian. Daí que se recupere algumas das suas palavras para se entender melhor o propósito pessoal deste ensaio além do que já refere no livro: “Spencer fez várias viagens durante dois anos e meio por esses locais e quando me mostrou as imagens, sugeri que poderia escrever um texto para as acompanhar. Foi assim que tudo começou e que se desenvolveu um diálogo entre o homem das fotografias e o homem das palavras. O que eu pretendia era dar início a uma discussão que não existe no país sobre esta situação horrível que temos vindo a construir. Via o projeto como de âmbito nacional e também que explicasse aos estrangeiros esse drama, pois muitos dos meus amigos europeus não são capazes de perceber a violência armada nos Estados Unidos. Queria contar a história de tudo isto e comecei pelo princípio: os povoadores e os confrontos com as populações indígenas, em que o receio de serem massacrados fez com que fossem os primeiros a disparar. É aí que tudo começa, com o medo de serem massacrados pelos nativos. Atualmente, e este livro faz parte de um sonho meu, quero que este pesadelo acabe. É um desejo bastante utópico, mas não perco a esperança. Se não se acreditar nessa possibilidade, como se pode aceitar o facto de se estar vivo?”

BANHO DE SANGUE AMERICANO
Paul Auster e Spencer Ostrander
Edições ASA
158 páginas

LANÇAMENTOS

O LIVRO DO ANO

O historiador Yuval Noah Harari está de regresso após Sapiens Homo Deus com uma investigação demasiado atual, Nexus – História Breve das Redes de Informação. A intenção é percorrer os últimos cem mil anos da humanidade, desde a Idade da Pedra à Inteligência Artificial, ou seja, desde os primeiros pensamentos de um cérebro que levou os seres mais inteligentes do planeta até ao presente e, ao mesmo tempo, o de questionar o atual estado do Homem devido à evolução, bem como o que o futuro próximo lhe reserva. A dependência dos computadores é um dos principais focos a partir do meio do livro, colocando de forma clara os desafios que se apresentam nas últimas décadas, bem como uma busca pela previsão do resultado de um processo de dependência do algoritmo que está em curso a grande velocidade e sem uma noção dos efeitos na população da Terra.

A interpretação do “algoritmo bebé” com que a Inteligência Artificial ainda trabalha, de que se desconhece o poder de que será capaz em poucas décadas logo que “seja livre de explorar o mundo”. O reconhecimento de preconceitos que estão a ser acrescentados às sociedades atuais, a recolha e manuseamento de uma informação que o ser humano é incapaz de acumular em toda a sua vida e de o manipular sem regras, são vários exemplos que o autor questiona e que, de uma forma brilhante, faz uma súmula preocupante. De leitura obrigatória.

NEXUS
Yuval Noah Harari
Elsinore
555 páginas

PESSOA SEGUNDO CESARINY

A interpretação da vastíssima obra do poeta Fernando Pessoa e os efeitos diretos num dos seus leitores é o objetivo desta investigação, neste caso especificamente dirigida a Mário Cesariny. O autor percorre essa receção e revela a “ressaca do contacto” por parte do segundo e a “ambiguidade do diálogo” que influenciou Cesariny durante toda a sua vida, mesmo que em diversos níveis de abordagem. Um estudo fundamental para o criador e a criatura que o devorou literariamente. De leitura obrigatória.

Cesariny e o Monstro Pessoa
Rui Sousa
Tinta da China
467 páginas

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