O amor ao cinema é um choque frontal
O nome de Steven Spielberg é indissociável da infância: a dele, a nossa e, por certo, a das crianças do futuro por esse mundo fora. Podemos descansar sobre o facto de qualquer iniciação ao cinema, independentemente das modas e costumes, ainda estar garantida por um certo filme com a sua assinatura, teletransportado dos anos 1980... E, porém, este não é um realizador de filmes de família. Ou melhor: todos os filmes de família de Spielberg contêm uma fratura doméstica, que pode passar despercebida em função do "embrulho" da aventura maior, mas que é a dor assinalada de um cineasta. Uma dor que trocou pelo desejo de finais felizes e cujos contornos autobiográficos estão disseminados por toda a sua obra, de forma mais ou menos explícita, sendo em Os Fabelmans que ela se materializa sem pudores, e na mais bonita contradição: o divórcio dos pais de Spielberg andou a par com a sua paixão pelo cinema.
Indo direta ao assunto, há dois momentos definidores de Os Fabelmans, no que diz respeito à ideia do amor pelo cinema. O primeiro é mesmo no início, quando os pais da criança Spielberg (assuma-se Fabelmans como o nome alternativo para Spielbergs) decidem, hesitantes, que está na hora de lhe dar a conhecer as maravilhas do grande ecrã. O filme em cartaz nessa noite de 1952 é um dos últimos Cecil B. DeMille, O Maior Espetáculo do Mundo, e os olhinhos azuis do miúdo arregalam-se na cena em que um comboio choca de frente com um automóvel na linha férrea, havendo um homem a gesticular dentro da viatura - é um choque para a vida. Os pais pensam que ficou traumatizado (e bem), mas o que se operou dentro dele foi antes uma reação criativa: o puto quer tanto repetir o abalo íntimo daquela colisão frontal que, no seu quarto, reproduz a cena vezes sem conta, espatifando brinquedos nesse exercício incessante, até que a mãe propõe que filme com a câmara Super 8 do pai o objeto da sua obsessão, para poder voltar a ele quando quiser...
Em toda a sequência desse momento embrionário deparamos com duas sugestões essenciais. Por um lado, não conseguimos deixar de ver na referência de O Maior Espetáculo do Mundo o símbolo do próprio futuro glorioso de Spielberg. O filme com maior bilheteira americana de 1952 (ano da estreia despercebida de Serenata à Chuva) terá moldado neste pequeno espectador, entre outras noções de espetacularidade, o sentido da ameaça (pense-se em Um Assassino Pelas Costas, Tubarão, etc.), que no seu caso estava escondida no conforto do lar. Por outro lado, o gesto da mãe é tão crucial quanto poeticamente imprudente. Quer dizer, a mesma câmara que permite ao miúdo desenvolver uma técnica apaixonada, torná-lo convicto da sua arte e engenho, acabará por revelar o segredo magoado dessa diáfana figura feminina.
E chegamos então ao segundo momento definidor de Os Fabelmans, porventura a cena de beleza mais assombrosa de todo o filme, que guarda o choque adulto de Spielberg com o cinema, sem almofadas de magia e escapismo. O medo absoluto do embate com a realidade: ele, um adolescente que passa a vida agarrado à parafernália de filmagem e projeção caseira, depara-se com imagens de um acampamento de família onde a mãe é avistada, pelo olho da câmara, a trocar carícias impróprias com o melhor amigo do pai... É a cena Blow Up de Os Fabelmans, que demora o seu tempo a abater a poeira do impacto, com a análise (e psicanálise), fotograma a fotograma, dos gestos que não deixam margem para qualquer dúvida.
Percebe-se, até por este detalhe da observação do fotograma, que The Fabelmans se presta ao gosto da análise cena a cena, e há várias que são de antologia - impossível não referir a visita-relâmpago de um velho tio Boris (Judd Hirsch), figura de mito, que funciona como conselheiro espiritual e alívio cómico numa fase dramática, já para não falar de David Lynch na pele de outro mito, John Ford, na reta final da história.
Para cada emoção negativa há aqui uma resposta de fascínio cinéfilo, ou se quisermos, a demonstração artesanal de que essa técnica inventiva protegeu o jovem Spielberg de tudo e mais alguma coisa, entre mudanças de casa, bullying na escola (por ser judeu), e particularmente no capítulo da desagregação familiar. É um filme maravilhoso, não tanto pelas razões óbvias do calor da "fábula" autobiográfica, mas porque firma o passo numa abordagem démodé tão fiável que apaga qualquer separador imaginário entre o cinema e a vida, pelo caminho fixando o retrato de uma mãe e de um pai que produziram a faísca fundamental. Ela, esplendorosamente interpretada por Michelle Williams (digna de Óscar), uma mulher de alma sensível, pianista que trocou a carreira pela maternidade, tolhida numa existência suburbana; ele, na versão discretamente melancólica de Paul Dano, um talentoso homem da ciência, engenheiro de computação, que tenta seguir as regras como um fiel funcionário da normalidade americana. Extraindo um pouco do vendaval materno (a propósito, há também uma cena que lhe dá expressão concreta...) e da habilidade tecnológica paterna, Steven Spielberg encontrou a sua voz, sem nunca ter chegado a sair do labirinto emocional desses anos formativos.
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