Nobel da Literatura atribuído à francesa Annie Ernaux
Escritora francesa, autora de "Os anos" e "O acontecimento", ambos publicados este ano em Portugal, sucede a Abdulrazak Gurnah.
O Prémio Nobel da Literatura foi esta quinta-feira atribuído à francesa Annie Ernaux, "pela coragem e acuidade clínica com que descortina as raízes, as estranhezas e os constrangimentos coletivos da memória pessoal".
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"Na sua escrita, Ernaux, de forma consistente e a partir de diferentes ângulos, examina uma vida marcada por fortes disparidades de género, idiomas e classes. O seu caminho enquanto autora foi longo e árduo", pode ler-se no portal dos prémios Nobel.
Ernaux considerou que é "uma grande responsabilidade" receber o prémio Nobel, como demonstração de uma forma de "verdade, de justiça em relação ao mundo".
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A escritora francesa, 82 anos, reagiu à atribuição do prémio em declarações à televisão sueca SVT, pouco depois de a Academia Sueca ter anunciado o seu nome e ter admitido que não tinha conseguido contactá-la antecipadamente.
Autora de "Os Anos" e "Uma Paixão Simples", Annie Ernaux, nome sempre falado para os principais prémios literários, regressou à primeira linha das possíveis escolhas para o Nobel da Literatura, exatamente após a publicação do seu romance "L'événement"/ "O Acontecimento", baseado na sua própria experiência.
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The 2022 #NobelPrize in Literature is awarded to the French author Annie Ernaux "for the courage and clinical acuity with which she uncovers the roots, estrangements and collective restraints of personal memory." pic.twitter.com/D9yAvki1LL
A obra narra a angústia de uma jovem estudante obrigada a um aborto clandestino, em França, em 1964, 11 anos antes da despenalização no país.
Adaptado ao cinema pela realizadora francesa Audrey Diwan, o filme, de título homónimo, venceu o Leão de Ouro de melhor filme, o prémio máximo do Festival Internacional de Cinema de Veneza, em 2021.
A escritora, em Portugal, é atualmente publicada pelo grupo Porto Editora.
Nascida em Lillebonne, na Normandia, em 1940, Annie Ernaux formou-se em Letras Modernas nas universidades de Rouen e de Bordéus.
A editora portuguesa da escritora define-a como "uma das vozes mais importantes da literatura francesa", na atualidade, "destacando-se por uma escrita na qual se fundem a autobiografia e a sociologia, a memória e a história dos eventos recentes".
Foi distinguida com o Prémio de Língua Francesa (2008), o Prémio Marguerite Yourcenar (2017), o Prémio Formentor de las Letras (2019) e o Prémio Prince Pierre do Mónaco (2021) pelo conjunto da obra.
"Um Lugar ao Sol" (1984), vencedor do Prémio Renaudot, e "Os Anos" (2008), vencedor do Prémio Marguerite Duras e finalista do Prémio Man Booker Internacional, estão entre os seus mais conhecidos títulos.
Em Portugal foram publicados "O lugar", pela editora Fragmentos, em 1987, "Os anos", numa nova edição dos Livros do Brasil, em 2020, assim como "Uma paixão simples", que surgiram em Portugal ainda na década de 1990.
"O Acontecimento" prosseguiu este ano a publicação da obra de Annie Ernaux, nesta chancela da Porto Editora.
Ernaux encontrava-se entre os principais candidatos ao Prémio Nobel da Literatura de 2022, de acordo com as apostas feitas durante a última semana, surgindo muito perto do francês Michel Houellebecq e da canadiana Anne Carson.
No anúncio do Nobel, o secretário da Academia Sueca indicou que, até ao momento do anúncio, ainda não fora possível contactar a escritora francesa, para lhe comunicar a atribuição do prémio.
Ernaux é a 17.ª mulher a ganhar o prestigioso prémio entre os 119 laureados de literatura desde que o primeiro Nobel foi atribuído em 1901.
No ano passado, a distinção foi atribuída a Abdulrazak Gurnah, escritor britânico nascido na Tanzânia.
Annie Ernaux trouxe a sua vida para a literatura como afirmação feminina
A escritora francesa Annie Ernaux, Nobel da Literatura 2022, recusa a classificação de "autoficção" para a sua obra, mas a autora trouxe para a escrita a sua própria vida enquanto afirmação política da mulher.
"Líder do romance social contemporâneo", foi como o jornal Le Monde a adjetivou em 2019, quando foi publicado um perfil da escritora a propósito da "descoberta" de que a sua obra estava a ser alvo no mundo anglófono, enquanto a agência francesa AFP se refere a uma "obra essencialmente autobiográfica", na qual Ernaux "produziu uma radiografia impressionante da intimidade de uma mulher que evoluiu ao longo das mudanças da sociedade francesa desde o pós-guerra".
Nascida em Lillebonne, em França, em 1940, a família de Ernaux mudou-se poucos anos depois para a zona operária de Yvetot, onde a escritora fez os estudos secundários e "encontrou raparigas de contextos mais classe média, experienciando a vergonha do seu meio operário pela primeira vez", como se pode ler na biografia disponível numa página sobre a autora de "Uma Mulher", criada por várias especialistas universitárias na obra da francesa.
Ernaux seguiu os estudos na Universidade de Rouen e passou a dar aulas de ensino secundário a partir da década de 1970 até 2000.
O primeiro livro de Ernaux é publicado em 1974, com o título "Les Armoires Vides" ("Os Armários Vazios", em tradução livre, inédito em Portugal), uma estreia literária feita na conceituada editora Gallimard, autobiográfica e sobre o aborto que fez dez anos antes.
O facto de Ernaux - uma mulher - abordar a sua intimidade levou a que a crítica literária francesa fosse particularmente dura nas suas análises: "Era um 'leitmotif' quando as pessoas falavam dos meus livros. Viam indecência em todo o lado. Na realidade, era apenas dirigido a mulheres", disse Ernaux, que defendeu a sua escrita como "política", ao Financial Times, em 2020.
Nesse mesmo texto do jornal britânico é citado um editor parisiense, amigo de Ernaux, que lembrou que a escritora costumava ser "desprezada" enquanto uma "pequena professora da província" e "uma mulher que escrevia sobre si própria", para agora ver a perspetiva mudada: "Um pouco como Marguerite Duras, ela pode escrever uma lista das compras e toda a gente a acha espetacular".
Forte apoiante do movimento #MeToo e dos Coletes Amarelos, Ernaux, que já recusou fazer parte do júri do prémio Goncourt, rejeita o termo "autoficção" e esclarece que não é "uma escritora que se foque nas emoções".
"Ernaux está interessada na verdade da experiência, seja qual for a forma que possa adotar, e isto é o que distingue o seu trabalho da autobiografia ou do livro de memórias convencional", podia ler-se na Paris Review, em 2018.
Um ano depois, quando a BBC a entrevistou, na sequência da sua publicação no Reino Unido e da sua nomeação para o Booker Internacional, quis saber por que motivo Ernaux usava sempre a segunda pessoa do singular ou a primeira do plural, em vez do "eu", numa obra de raiz tão autobiográfica.
"Porque o que me interessa é a nossa relação com o mundo em volta", respondeu, uma relação que não se esgota numa só pessoa.
Vencedora do Prémio Renaudot, por "La Place" ("Um Lugar"), de 1984, ganhou maior relevo com "Os Anos", em 2008. Em 2017, conquistou o prémio Marguerite Yourcenar pela totalidade da sua obra. No ano seguinte, foi finalista do Booker Internacional com a tradução para inglês de "Os Anos".