No tempo dos nossos avós
Depois da passagem pela MONSTRA, Interdito a Cães e Italianos chega às salas. Uma animação stop-motion, com coprodução portuguesa, que conta uma íntima e universal história familiar na Europa do início do século XX.
Nestes tempos em que proliferam os filmes de animação digital, é com regozijo que testemunhamos o poder enternecedor, e também a textura dramática, de uma produção stop-motion. Interdito a Cães e Italianos surge como um desses objetos de resistência artesanal que, não só na forma como no conteúdo, procuram a beleza primitiva do gesto de contar histórias. Esta é a da própria família do realizador, Alain Ughetto, cujas mãos vemos a montar delicadamente um cenário para nos levar até à pequena aldeia de Ughettera, Norte de Itália, no início do século XX, onde os seus avós passaram todas as provações da época, atravessando por fim os Alpes para começar uma nova vida em França - o país deste neto que agora pesquisa e homenageia as origens com todo o amor que o trabalho manual pode conter.
Relacionados
Através dos seus bonequinhos de semblante humilde, seguimos a miséria quotidiana das personagens, sempre contrabalançada por um sentido de humor que remete para a comédia italiana clássica. Sucedem-se as guerras (nomeadamente, a Primeira Guerra Mundial), a gripe espanhola, os acidentes de trabalho em grandes obras, o sonho frustrado de partir para a América, as mortes, os nascimentos e, acima de tudo, a necessidade de sobrevivência, que levou muitos italianos a tornarem-se mão-de-obra em França (migração económica para o outro lado da fronteira), ao mesmo tempo que a ascensão do fascismo em Itália obrigava a uma escolha. A escolha da família Ughetto foi deixar definitivamente o país de Mussolini.
Embora Alain Ughetto comece por ser o narrador de Interdito a Cães e Italianos, a sua cúmplice na viagem ao passado é a avó Cesira, personagem que interage com a mão criativa do neto, ajudando a moldar as fases de uma história pessoal indissociável do movimento da grande História. É aí, na combinação da memória íntima com a memória coletiva, que esta animação alcança uma comovente nota de realismo poético, inscrevendo na sua aparência artesanal uma evidente sofisticação narrativa. O retrato da pobreza eleva-se então pela profunda dimensão afetiva do projeto, que tem na figura da avó o símbolo do prazer e importância da narração. E não esqueçamos a música de Nicola Piovani, um dos mais ilustres compositores italianos, que aqui reveste de gentileza sonora toda a operação animada de Ughetto.
Subscreva as newsletters Diário de Notícias e receba as informações em primeira mão.
Depois do lançamento no Festival de Cinema de Animação de Annecy, e da passagem recente pela MONSTRA, a estreia de Interdito a Cães e Italianos (com coprodução portuguesa pela Ocidental Filmes) confirma um desejo de valorização da componente mais autoral deste cinema. Algo para além das produções dos grandes estúdios que chegam com regularidade às salas, muitas vezes esquecidas da candura técnica que é parte da linguagem da animação. O caso de Ice Merchants constituiu certamente uma chamada de atenção nesse sentido. E daqui a duas semanas teremos também a estreia de Nayola, de José Miguel Ribeiro, outro dos títulos exibidos na MONSTRA. Talvez possamos alimentar a esperança de que a animação alheia à máquina comercial comece a conquistar o seu direito à sala escura.
