NIcole Kidman em "Expat"
NIcole Kidman em "Expat"

Nicole Kidman abrilhanta Hong Kong com a sua angústia

A atriz australiana é a produtora e protagonista de Expats, uma série que cruza os destinos de três mulheres expatriadas numa Hong Kong de tragédia íntima e privilégio. Em estreia na Prime Video.
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Em 2020, houve um pequeno filme independente que despertou as atenções ainda antes do Golden Globe conquistado pela sua recém-descoberta atriz, Awkwafina. O filme chama-se A Despedida e retrata a operação de segredo de um clã chinês que esconde à idosa matriarca a sua condição de doente terminal, arranjando-se a desculpa de um casamento para reunir os familiares à volta dela – a neta emancipada vinda de Nova Iorque (Awkwafina) será aqui a peça-chave das emoções, tendo uma relação especial com a avó e com a herança do seu país de origem.

Assinado por Lulu Wang, chinesa radicada nos EUA, este título pode ser uma boa entrada para quem se quiser familiarizar com as preocupações identitárias de uma realizadora que tem argumentos íntimos e sabedoria mais do que suficiente para observar os corpos deslocados entre culturas. Afinal, é também ela a realizadora e showrunner de Expats, a série sobre um pequeno grupo de personagens expatriadas que hoje se estreia na Prime Video (para quem não viu e quiser seguir o conselho, A Despedida encontra-se disponível no catálogo da mesma plataforma). 

Expats surge então como um projeto à medida de quem provou ter sensibilidade para as questões do desenraizamento geográfico e do luto, com um particular ângulo feminino; a diferença essencial é que, desta vez, o tom dramático é mais agudo e feroz do que doce e melancólico. E a segurar essa nota intensa está uma soberba Nicole Kidman, cada vez mais a atriz rainha da ficção televisiva, que nesta série baseada no romance de Janice Y. K. Lee (The Expatriates) interpreta uma americana, mãe de família, a viver em Hong Kong e ainda a processar o abalo de uma tragédia recente que afetou não apenas o seu ninho, mas também as suas relações sociais.

Porém, Margaret, a personagem de Kidman, uma arquiteta paisagista que se reduziu ao papel de esposa e dona de casa, não é a única a ostentar a angústia citadina de Hong Kong – ou melhor, a angústia específica das mulheres expatriadas. A sua amiga e vizinha Hilary (Sarayu Blue), americana de ascendência indiana, vive um casamento frágil, sem filhos e com um marido alcoólico. E no último vértice do triângulo vamos encontrar a jovem Mercy (Ji-young Yoo), americana de origem coreana, que não tem metade do privilégio das outras duas mulheres endinheiradas, sobrevivendo através de biscates, ao mesmo tempo que lida com uma espécie de maldição pessoal, um desassossego difícil de decifrar.

As três vão acabar por cruzar as linhas do destino da pior forma: quando a série começa, não sabemos o que é que transtorna tanto Margaret, ou por que razão a sua vizinha Hilary mantém uma distância fria no elevador, nem o que liga ambas àquela mulher de outro estrato social. Mas importa preservar essa bolha de mistério, porque Expats gira em torno do acontecimento funesto de tal ligação... De resto, Mercy, a jovem de traços asiáticos, não deixa de nos fazer lembrar a personagem de Awkwafina em A Despedida, com a sua maneira de ser desembaraçada, irónica, mas vulnerável, sujeita às dores da independência e 
da incerteza do futuro.

Simplesmente humanos

É nesta contemplação de sentimentos de classe e raízes culturais debilitadas que Lulu Wang se esmera, no campo do chamado drama de prestígio: de um lado temos as festas dos ricos, onde se capta o bailado da culpa ocidental nas conversas entre copos, ou os ambientes domésticos discretamente cuidados pelas empregadas; do outro, essa classe trabalhadora que se faz invisível e só “brilha” nos mercados noturnos de Hong Kong. Nesse sentido, Mercy/Ji-young Yoo será a primeira via mais direta no acesso à existência não privilegiada de quem luta em silêncio para contrariar a desfavorável corrente do dia-a-dia. E por aí se nota o toque sensível de uma realizadora atenta às subtilezas do jogo social, entre aqueles que não professam uma identidade coesa.

Não admira que Nicole Kidman, fã do livro de Janice Y. K. Lee, produtora executiva de Expats e mentora do projeto, a tenha escolhido para dirigir uma série desta natureza complexa. Como se lê na entrevista que deu recentemente ao jornal britânico "The Guardian", Lulu Wang está bem consciente da delicadeza da matéria e como a abordar: “Sempre quis explorar a interseccionalidade de classe, raça e género, e penso que na América falamos muitas vezes sobre estas coisas de forma separada. Hong Kong é incrível porque é uma interseção de estilos de vida muito diferentes, e consegue-se apanhar todas as nuances. Eu só queria não ir pela difamação, e apenas levar o público numa jornada em que é possível simpatizar-se com alguém e esse alguém fazer algo com que discordamos, ou que nos faça
odiar aquela personagem, para depois passarmos a amá- la. Estamos a atravessar um momento em que tudo está polarizado, as pessoas ou são heróis para se adorar ou são canceladas. Por isso, quis mostrar que estas personagens são humanas, e todos, independentemente das circunstâncias individuais, estão a travar as suas próprias batalhas, que dentro do seu mundo são enormes.”

Empatia não falta em Expats, uma série que não se acomoda nas emoções transparentes, procurando antes uma certa perceção desconfortável de que o conflito e o afeto são dois lados da mesma moeda nas relações familiares e na amizade, sobretudo feminina. Está assim encontrado o primeiro drama expressivo da ficção televisiva de 2024 – a partir de hoje ficam disponíveis os dois primeiros episódios, de um total de seis, que vão estreando um a um todas as semanas.

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