Se começarmos por dizer que o protagonista de EO, o mais recente filme do polaco Jerzy Skolimowski, é um burro, talvez seja inevitável atrair a sugestão de que se trata de uma fábula. Assim é, sem dúvida. De qualquer modo, importa resistir às generalizações fáceis que os rótulos podem arrastar e acrescentar que estas atribulações de uma personagem central com quatro patas não são uma aventura filmada, muito menos encenada, à maneira tradicional dos estúdios Disney..A partir de hoje nas salas portuguesas, EO possui o apelo, a inteligência e o fascínio de uma verdadeira fábula, de tal maneira que os seus particularismos desembocam num genuíno universalismo, a ponto de surgir, em representação da Polónia, entre os cinco nomeados para o Óscar de melhor filme internacional (a atribuir a 12 de março). O seu impacto começou no Festival de Cannes do ano passado, aí arrebatando o Prémio do Júri, partilhado com As Oito Montanhas, de Felix van Groeningen e Charlotte Vandermeersch (cujo lançamento entre nós está agendado para 13 de abril)..Como o próprio realizador fez questão de sublinhar, a história de EO nasce de um profundo amor pela natureza e, nessa medida, tem como motor dramático o carinho suscitado por uma personagem que descobrimos sujeita aos desmandos dos humanos. Na maravilhosa serenidade dos seus 84 anos (nasceu em Lodz, a 5 de maio de 1938), Skolimowski fez mesmo questão de receber a sua distinção em Cannes começando por dizer: "Gostava de agradecer aos meus burros..." Isto porque foram necessários seis animais para interpretar EO. Skolimowski completou o seu agradecimento, nomeando-os: "Tako, Hola, Marietta, Ettore, Rocco e Mela.".Importa não "dissolver" a narrativa de Skolimowski (cujo argumento escreveu em colaboração com sua mulher, Ewa Piaskowska) num conceito panfletário, mais ou menos ecológico. O que, entenda-se, não significa a desvalorização da ecologia como componente vital de muitas formas de ação política do nosso presente. Trata-se apenas de recordar que um objeto de cinema existe através das suas singularidades (cinematográficas, precisamente), não em função das apropriações políticas que possa suscitar..Para Skolimowski, a questão cinematográfica central tem qualquer coisa de ironicamente "hitchcockiano". A saber: como filmar o ponto de vista de EO? A resposta mais simples pontua todas as cenas: filmando a partir do seu olhar. É caso para dizer: à altura do seu olhar. Veja-se a abertura em que EO integra um número de circo; ou ainda, depois de ser vendido, a sua deriva cada vez mais desamparada por diversos cenários, incluindo as paisagens rurais e as ruas desertas daquilo que parece uma cidade fantasma....Que o filme se distinga pela escassez dos diálogos, eis o que não resulta apenas da experiência de uma personagem central que não fala. Tudo acontece como se as relações humanas tivessem passado a existir como um buraco negro em que a perda de respeito pelo outro (seja "ele" quem for) coincide com uma quotidiana desvalorização das palavras. Daí também esse efeito muito especial que resulta do facto de irmos sentido que, afinal, observamos o mundo como EO o vê. Sobretudo, escutamo-lo como ele o escuta - sem esquecer que, em Cannes, o notável trabalho do diretor de som Pawel Mykietyn lhe valeu, justamente, o prémio de melhor banda sonora..A fábula de Skolimowski envolve, assim, uma paradoxal componente realista, transversal a toda a sua trajetória criativa, a começar pelo período em que foi um dos nomes centrais da "nova vaga" polaca, a par de Krzysztof Zanussi ou Roman Polanski - lembremos os exemplos emblemáticos de Walkover (1965) e Barreira (1966)..A internacionalização da carreira de Skolimowski não desvirtuou as componentes do seu universo, nomeadamente através de várias produções de raiz britânica, entre as quais se incluem obras tão admiráveis como Deep End/Adolescente Perversa (1970), por certo um dos filmes mais espantosos que já se fizeram sobre a descoberta do impulso sexual, ou Moonlighting (1982), com Jeremy Irons no papel central, uma odisseia londrina de um grupo de trabalhadores clandestinos polacos, pontuada pelos ecos das lutas do sindicato Solidariedade..Skolimowski não realizava uma longa-metragem desde 2015, quando assinou o prodigioso 11 Minutos, cruzando as histórias de várias personagens de Varsóvia cujos destinos colidem no breve intervalo que o título anuncia. Antes, tinha dirigido esse objeto estranho e fascinante que é Essential Killing - Matar para Viver (2010), centrado na odisseia de sobrevivência de um prisioneiro de guerra afegão, interpretado por Vincent Gallo..O que perpassa por todas essas histórias é uma sensação de perdição, de uma só vez geográfica e metafísica. Mais cedo ou mais tarde, os heróis, ou melhor, os anti-heróis de Skolimowski são sempre confrontados com formas de violência que decompõem qualquer ilusão redentora. EO descobre, à sua custa, que a natureza humana não tem nada de natural..dnot@dn.pt