Após o fim de A Guerra dos Tronos, esta foi a série que procurou preencher o vazio deixado por aquela megaprodução, respondendo aos mesmos requisitos de fantasia e aventura em grande escala. Porém, depois de duas temporadas, com início em 2019, não teve o impacto de público esperado. Assumimos que a razão para isso ter acontecido esteja relacionada com o facto de Mundos Paralelos (no título original, His Dark Materials) não ter sido escrito nem concebido enquanto série exclusivamente para um público adulto, como o era Game of Thrones. Trata-se antes de um universo com contornos juvenis, mas que engana: à medida que evolui, revela uma consciência filosófica que não é propriamente acessível para os mais novos, embora valha a pena o esforço de tentar entrar na sua linguagem. Chegada à terceira e última temporada, que se estreia hoje na HBO Max, a adaptação da trilogia de Philip Pullman reveste-se da dimensão épica que sempre se prenunciou nas entrelinhas, ainda que na base de tudo esteja a natureza íntima dos laços humanos e familiares. É o grand finale para uma série que pode agora ser resgatada por quem não a descobriu desde o princípio..Ainda sobre a questão do público-alvo de His Dark Materials, num texto assinado por Pullman em 2020 no jornal britânico The Guardian, aquando dos 25 anos de Northern Lights (o primeiro livro da trilogia), o autor aponta, precisamente, a indefinição etária que fez com que os romances fossem lidos para lá da etiqueta que se lhes impôs. O que também explica o seu sucesso. "Perguntam-me muitas vezes se as histórias sobre Lyra são livros infantis ou não, porque aparentemente não parecem. Às vezes, as categorias como "livros infantis" assemelham-se à ideia das espécies na era anterior a Darwin: divisões fixas, essenciais, ordenadas por Deus. Mas rótulos como true crime, biografia, ficção traduzida, livros infantis, de viagem, sobre a mente, o corpo e o espírito e por aí fora, estão lá para ajudar publicitários, livreiros, bibliotecários, estudiosos de marketing, editores e (em última instância) contabilistas (...). Não porque fosse isso que eu queria, pretendia ou esperava.".É curiosa esta ideia das categorias de livros como uma ordem estabelecida "por Deus". Combina com a terceira temporada de Mundos Paralelos, que, mais do que as anteriores, reflete justamente sobre uma Autoridade religiosa a ser combatida - essa instituição que se impôs em todos os mundos sob a imagem de um criador, um anjo que assim se autodenominou para manipular os destinos dos humanos....Para contextualizar ou avivar a memória, recapitulemos: o centro de Mundos Paralelos é a heroína Lyra Belacqua (Dafne Keen), uma criança, entretanto crescida, cujo nome está associado a uma profecia segundo a qual o mundo se libertará de uma força opressora. Ela é filha de uma vilã, Marisa Coulter (Ruth Wilson), e de um explorador, também com as suas sombras, Lord Asriel (James McAvoy), mas cresceu como órfã na cidade universitária de Oxford (um "mundo paralelo"), ao cuidado de catedráticos. Na primeira temporada, a ação da série envolvia crianças desaparecidas e uma viagem ao Pólo Norte, dando lugar, na segunda temporada, ao encontro entre Lyra e Will Parry (Amir Wilson), um rapaz que vive no mundo paralelo correspondente ao nosso. Os dois estão por sua conta numa cidade abandonada (outro mundo paralelo), e aí descobrirão que Will também faz parte da profecia, sendo o portador eleito de uma faca capaz de cortar o "tecido" invisível que separa os mundos e, assim, atravessá-los..Este objeto, a "faca subtil", é parte da terminologia do universo de His Dark Materials, que contém também aletiómetros (espécie de bússolas da verdade), daemons (a alma de um ser humano configurada na forma de um animal), e um elemento misterioso chamado Dust (Pó), cuja definição só se revelará plenamente nos últimos episódios da nova temporada..Agora, Lyra e Will estão de volta e continuam a ser o coração da história, mesmo quando não aparecem no ecrã. No último episódio da segunda temporada eles acabavam separados por uma distração momentânea: Will tinha ida ao encontro do seu pai desaparecido e Lyra, sozinha, foi raptada pela sua própria mãe, uma mulher com intenções dúbias... O que se segue? Will vai à procura de Lyra para a salvar, e na sua jornada solitária depara-se com anjos - personagens que estão muito presentes nesta última temporada, toda ela em torno de uma guerra prestes a acontecer, levada a cabo pelo pai de Lyra, Asriel, que reuniu o seu exército de rebelião contra o Reino dos Céus... Soa épico e, como já se disse, é mesmo..Entretanto, a Autoridade religiosa, o Magisterium, também anda atrás de Lyra porque, segundo a profecia, ela é Eva, "a causa de todos os pecados". O que na essência significa que a protagonista está a entrar na idade adulta, deixando-se orientar apenas pela sua própria intuição. Há uma longa travessia pela Terra dos Mortos, jogos psicológicos, atos de bravura e belos ensinamentos como aquele que diz que as histórias nos protegem da morte..No fim de contas, e por trás de todas as alegorias, Mundos Paralelos é sobre o poder da criatividade e o desejo de "experimentar", que não pode ser travado por forças obscuras. E nem sequer falámos da personagem da cientista que vai atravessando mundos à procura do significado de Dust... Eventualmente, esta temporada dedica-se demasiado à explicação do próprio vocabulário da série, com vários momentos em que se sente os diálogos ao serviço desse propósito (a certa altura até se fala de "multiverso", tão em voga). Mas o que segura esta produção robusta são, de facto, as personagens difíceis de ler (os pais de Lyra) e as que devolvem a luz ao(s) mundo(s) depois de se vencer as trevas..Se isto é uma história para crianças, vou ali e já volto..dnot@dn.pt