“Muitas vezes sinto que há alguma estrutura dos textos poéticos que vem mais do húngaro do que do português”
Quem ler os poemas de Pedro Assis Coimbra, o seu pseudónimo literário, tem alguma pista de que o autor é um português que viveu mais de metade da vida na Hungria?
De facto, não será fácil chegar lá. Tem de ler e depois tem que encontrar algumas confissões metidas em alguns dos textos poéticos. Mas são poucas as pistas.
Então, e sendo fluente em húngaro, uma língua bem distinta do português, nem sequer da família indo-europeia, portanto com uma estrutura completamente, usá-la no seu dia-a-dia afeta a forma como escreve a sua poesia?
Muitas vezes sinto que, e não o faço de propósito, há alguma estrutura dos textos poéticos que vem mais do húngaro, do que do português. Como penso trazer alguma novidade, aproveito, confesso. Mas devo dizer que, ao contrário de muitos outros, depois de 45 anos a viver na Hungria, continuo a pensar em português.
Se tivesse que me dizer o nome de dois ou três poetas portugueses que admira, quais seriam?
Eugénio de Andrade, Herberto Helder, Ruy Belo. Mas não consigo ficar por aqui. António Ramos Rosa, Sophia, Natália.
E poetas húngaros preferidos?
O Ady Endre e o József Attila.
Estão traduzidos para português?
Sim, sim. Pelo Ernesto Rodrigues, que é o português que conhece melhor a literatura húngara. Somos amigos há muito tempo, e por isso sou suspeito, mas é uma referência, um verdadeiro tesouro do conhecimento da literatura húngara. Um grande tradutor, poeta e escritor.
Há esta vida sua, a de poeta, que o fez vir agora a Portugal lançar mais um livro - Com as Palavras até ao Fim. Mas Pedro Assis Coimbra é, na realidade, Joaquim Pimpão, o delegado do AICEP em Budapeste. Como foi parar à Hungria?
Eu era um jovem de família bastante humilde, mas também um jovem com capacidades, com o 25 de Abril um dirigente de algum destaque na UEC no distrito de Santarém, e fui parar à Hungria com uma bolsa do PCP, que era então o meu partido. Fui estudar Economia Internacional. Lá fiquei. Depois fiz amizade com o embaixador português que lá estava, e os encontros eram no Gerbeaud, famoso café em Budapeste. Comemos o bolo da casa, um capuccino, e ele pagou. Na segunda vez, pedimos o mesmo e fiz questão de pagar, claro. E lá se foi um quarto da bolsa. Ele percebeu e partir dai, quando era vez dele pagar, era à grande, quando era a minha vez, bebíamos eu e ele um cafezinho. Foi assim que nasceu uma boa amizade.
Como se chamava esse embaixador?
Zósimo Justo da Silva. Uma espécie de padrinho. Foi ele que me pôs na AICEP, em 1988.
Isso foi um ano antes da queda do Muro de Berlim, e de todas as transformações na Europa de Leste, que também afetaram a Hungria. Como viu essa transformação radical na Hungria, a passagem do comunismo para a democracia?
Eu cheguei à Hungria como jovem comunista mas com o tempo percebi que eram quase todos anticomunistas. Era um regime mais repressivo do que o Portugal de Salazar em que eu tinha nascido. Os meus amigos, jovens universitários, até mais do que anticomunistas, eram antirrussos. Fui de choque em choque e pensei: como é que é possível? Os tipos da juventude comunista, a KISZ, eram insuportáveis carreiristas. Eram aquilo que no liceu de Santarém chamaríamos uns queques. E os cantores de intervenção lá, o equivalente aos nossos Zecas, Zé Mários, Vitorinos, Adrianos, eram ao contrário, cantavam pela liberdade contra o regime comunista. Um deles, Presser Gábor é quase meu vizinho. Houve outra coisa essencial no meu despertar, que foi o cinema húngaro. Com um humor muito próprio. Um cinema de combate.
Está a dizer que a Hungria era comunista por imposição dos soviéticos?
Sim. Era por obrigação. Por imposição dos soviéticos. Apesar de o partido ter uns 880 mil membros, que acreditavam tanto no comunismo como eu em Deus. Mas aquilo só implodiu porque a União Soviética implodiu.
Há uma terceira vida sua, mais efémera, que foi a de correspondente de jornais. Como aconteceu?
Um dia os sub-16 portugueses foram jogar futebol à Hungria. E fiz de tradutor. E o Rui Santos, d’A Bola, o hoje famoso Rui Santos, até me entrevistou. Um dia o meu pai estava na taberna na nossa aldeia, Amiais de Baixo, e dizem-lhe que o filho tem uma entrevista n’A Bola. Depois, durante uns 8-9 anos, escrevi para A Bola e assinava Fernando Lopes, que são os meus nomes do meio. Também conheci o nosso amigo comum, o já falecido Carlos Santos Pereira, um grande repórter, do Expresso, e que me convidou para correspondente do Público quando foi lançado. Aí assinava como András Gellei. Quando o Carlos saiu eu também desisti.
Casou com uma húngara. Sei que tem três filhas e um filho. São bilingues?
Sim, sempre fiz questão de lhes passar a língua e cultura portuguesas. Falam muito bem português. E quando joga a seleção de futebol, somos todos por Portugal.
Está a apresentar o livro em Lisboa, aqui na Associação 25 de Abril, e Portugal está a celebrar os 50 anos de democracia. Hoje há muitas criticas à Hungria, acusada de ser uma democracia iliberal por culpa do primeiro-ministro Viktor Orbán, que aliás, na juventude, foi um dos protagonistas da revolta democrática contra o comunismo. Sente-se livre na atual Hungria?
Eu, na Hungria, em Budapeste, não me sinto nada preso. Lamento a evolução política da Hungria e sobretudo tenho pena de que aconteceu a uma personagem incontornável da história húngara, o que ela foi e para onde evoluiu. Agora essa coisa de dizer que não há liberdade das pessoas, isso não é verdade. Ninguém, entre os muitos amigos, sente essa suposta falta de liberdade. Cada um diz o que quer.
Voltando à poesia. Se lhe pedisse para explicar a temática, qual seria?
É poesia de amor, com algum erotismo a acompanhar. E ao mesmo tempo, tento ser inovador na crítica social. Usar palavras simples. Vivo e estou atento ao mundo que me rodeia.
Mulher com mar no olhar
Mulher com a água fresca da sua fonte/que traz o cheiro do mar no seu olhar./Na festa do amor cabe tudo que faça bem/e muito mais, tudo o que não seja inocente.
Caminhar para no final da aventura/descansarem os dois de olhos abertos./Por debaixo da reconstrução da noite/dos vestidos transparentes da cidade.
Com a tua pele desenhada a quente/no veludo fino dos nossos desejos./O que é amar e sobreviver ao amor/sem acordar juntos na manhã seguinte?
Pedro Assis Coimbra