De onde veio o primata Rafiki e a sua sabedoria profética? Como ganhou Scar a identitária cicatriz no olho? Mas sobretudo, como se tornou Mufasa o Rei Leão? A todas estas perguntas responde com justeza o novo filme de Barry Jenkins, uma bem-vinda e surpreendente aventura musical, ou origin story, que não se limita a existir para satisfazer o calendário de produções da Disney, antes procurando resgatar algo da noção clássica do filme de família, aqui sem sinais de cortesia para com o atarefado caderno de encargos dos grandes estúdios. Pelo menos, é essa a impressão com que se fica diante desta primeira produção de fôlego de um dos mais interessantes cineastas independentes americanos (recorde-se: Jenkins é o realizador de Moonlight, Óscar de Melhor Filme em 2017), cujo olhar seguro e consciente dos ritmos do drama não se perde na vasta estrutura digital da “animação live-action". Assim mesmo foi designada pelo próprio..Chegado aos cinemas em plena quadra natalícia, Mufasa: O Rei Leão será, porém, mais do que um título ideal para preencher os requisitos da tradição do “entretenimento” familiar – é, acima de tudo, uma proposta que assenta na pureza do princípio narrativo, hoje em dia ofuscado por uma lógica de ação pouco respeitosa dos valores do conto. A saber, Jenkins não descura esse prazer da narração, da mesma maneira que preserva a força dos laços emocionais em torno de personagens inscritas no imaginário popular..Daí que faça todo o sentido ser a voz de James Earl Jones (1931-2024), o original Mufasa, a ouvir-se logo na abertura do filme, trazendo para o início uma referência de obituário que, noutros termos, seria lançada nos créditos finais. Esta é, afinal, a história do pai de Simba e avô da pequena Kiara, ela que debaixo de uma tempestade se delicia com a arte de contar do velho Rafiki, o macaco da espécie mandril que figura aqui como sábia reserva de memória, quando, por sua vez, a dupla Timon e Pumba só quer patrocinar a diversão e fazer o seu número Hakuna Matata....Do íntimo e do épico.Dada a riqueza deste universo de personagens, havia (e nalgumas perspetivas permanecerá) uma certa desconfiança em relação ao que Barry Jenkins conseguiria fazer com um importante legado criativo. E é aí que nos surpreendemos: enquanto o live-action de O Rei Leão (2019) de Jon Favreau representa, apesar do sucesso, uma versão visualmente asséptica da animação de 1994, Mufasa acrescenta textura e nuance ao fotorrealismo. O que diz muito da própria integridade artística de Jenkins, que fez questão de controlar uma linguagem íntima naturalmente ameaçada pelo impulso épico deste tipo de produções..Conhecemos então as origens inspiradoras de Mufasa, desde a sua condição de orfandade até ao encontro com Taka (futuro Scar), a cria de sangue real que se torna o seu irmão afetivo, ao mesmo tempo que outras boas companhias, incluindo Rafiki, ajudam a fazer luz sobre aquele que está destinado a ser o verdadeiro rei da savana. E como se chega a essa conclusão? Através de uma jornada, quase em estilo western, resultante da fuga de inimigos em forma de leões brancos, que desenha um perfil de coragem revestido de uma nobreza bem reconhecível..Neste contexto, não se pode dizer que as canções da autoria de Lin-Manuel Miranda fiquem no ouvido tal como ficaram os temas originais de The Lion King, mas há uma orgânica feliz na sua conjugação com as imagens que merece reconhecimento. Isso e uma capacidade inequívoca de encher o coração: entre o humor de Timon & Pumba e a corrente sentimental da história de Mufasa, há vida na grande tela.