Há um setor imenso da produção televisiva (incluindo a que nasce directamente para as plataformas) instalado num academismo sem imaginação, apoiado em “reconstituições históricas” que se confundem com banais exposições de adereços ou estéreis coleções de guarda-roupa. Seja como for, não sejamos fundamentalistas. Há também filmes académicos que sabem cumprir o melhor da tradição que representam. Aí está o muito sóbrio Mr. Burton, de Marc Evans, recente produção (com chancela da BBC) como tantas outras lançada às feras... Entenda-se: sem qualquer apoio de marketing capaz de valorizar as suas singularidades, afinal de raiz popular.Haveria, por exemplo, um sugestivo fator promocional a ter em conta. Assim, estamos perante um retrato de Richard Burton (1925-1984). Ou seja: como recorda a legenda final, “um dos mais célebres atores do século XX” e também “a maior estrela que o País de Gales gerou”. Será preciso recordar títulos lendários como Cleópatra (1963), O Espião que Saíu do Frio (1965) ou a versão do romance de George Orwell, 1984, lançada, justamente, em 1984? Sem esquecer, claro, os ecos lendários do par que formou com Elizabeth Taylor...Enfim, convém também não tratar os filmes por aquilo que “poderiam” ser. Mr. Burton não é sobre as glórias cinematográficas de Richard Burton, antes sobre a sua existência antes de ser... Richard Burton. Literalmente, já que esta é também a história da invenção de um nome: nascido Richard Jenkins, o futuro Burton encontrou no produtor e encenador teatral Philip Burton (1904-1995) um mentor decisivo para a sua formação e, mais do que isso, para a superação das barreiras sociais decorrentes do facto de Jenkins ser filho de um mineiro de uma pequena povoação, Pontrhydyfen, no sul de Gales. O “baptismo” de Jenkins como Burton, como forma de proteção do seu próprio destino profissional, constitui mesmo o motor dramático de todo o filme, já que nele confluem as tensões que se desenham entre a origem social de Jenkins e o seu desejo de ser ator.Para a composição de Jenkins/Burton, Harry Lawtey é uma escolha especialmente feliz (vimo-lo, por exemplo, no papel de Harvey Dent em Joker: Loucura a Dois). Não pela procura de uma semelhança absoluta com o jovem Burton, antes pela invulgar capacidade de expor a evolução da personagem, num processo que vai da descoberta do prazer de representar até à espantosa transfiguração da voz. Toby Jones é também impecável na composição de Philip Burton (o verdadeiro Mr. Burton do filme), sem esquecer que Lesley Manville, no papel da senhoria, é sempre um pequeno prodígio cuja versatilidade tem as suas raízes na mesma “escola” a que pertenceu Jenkins, aliás, Burton.