Terence Davies (1945-2023) é um dos nomes maiores do cinema britânico, e ainda assim permanece bastante desconhecido. Sintoma disso mesmo, quando morreu, faz agora quase um ano, os títulos dos obituários oscilaram entre a mais elementar informação – “realizador britânico morre aos 77 anos” – e o mais perentório enunciado – “mestre do cinema poético”, “mestre que trouxe paixão tranquila e beleza lírica ao ecrã”, ou “o maior cineasta britânico”, como lhe chamou, sem meios termos, o crítico da New Yorker Richard Brody. Para uns, um segredo por revelar, para outros, um segredo guardado junto ao peito. Embora alguns dos seus filmes tenham sido evocados nesses títulos, a verdade é que poucos ecoam no grande público. Talvez por esta razão: o cinema de Davies nunca se prestou ao aparato comercial, foi antes, persistentemente, uma promessa antiga, delicada e fiel a uma melodia própria, cúmplice do rio de tristeza que nos atravessa a todos..Planeada há já algum tempo, com a intenção de contar com a presença do próprio Davies, a retrospetiva integral que a Cinemateca lhe dedica na primeira quinzena de setembro surge, assim, como uma homenagem definitiva à obra daquele que traduziu matéria autobiográfica, e também literatura, em sons (ou canções) e imagens de infinita sensibilidade e bom gosto. Daí que o subtítulo da retrospetiva, O Cantor da Memória, seja mais do que adequado: neste cinema o passado faz-se presente muitas vezes através do canto..Assim o testemunhamos de forma vívida logo na sua primeira longa-metragem, Vozes Distantes, Vidas Suspensas, de 1988 (hoje, 21h30|dia 10, 15h30), uma mistura de luto, amor e retratos de violência doméstica que se libertam pela força dos cânticos, à medida que o sentimento da classe trabalhadora de Liverpool nos anos 1950 emerge em planos fixos e suaves movimentos de câmara..Esta seria então uma das assinaturas estilísticas e temáticas de Davies, ele próprio nascido na zona de Liverpool, numa família numerosa da classe trabalhadora, cujo padrão de vivência se tornou motivo principal dos primeiros trabalhos do realizador. A trilogia de curtas-metragens Children (1976), Madonna and Child (1980), Death and Transfiguration (1983), assim como Aqueles Longos Dias (1992), refletem pois uma infância – a sua – entre a mágoa da realidade e a luz trazida pelo cinema, na forma dos musicais americanos da década de 50..Se a primeira (amanhã, 19h00) é uma história de vida em três fases, com uma personagem (o alter ego do realizador) que espelha a criança órfã de pai, o homem adulto a lidar com a sua homossexualidade e a relação com a mãe, e, finalmente, o idoso às portas da morte, Aqueles Longos Dias (dia 6, 15h30), por sua vez, torna explícita a sua declaração de amor aos musicais de Hollywood, sobretudos os de Doris Day, atriz adorada de Terence Davies, que aqui se revela aos olhos do menino de Liverpool no período do pós-guerra, projetando na película cinzenta dos dias de escassez e conservadorismo a luz colorida da fantasia contra o drama... Essa paixão de Davies por Doris Day estará também representada no ciclo através do musical de Gordon Douglas Apaixonadas (1954), e o mínimo que se pode dizer é que a magia acontece quando Doris e Frank Sinatra se cruzam na grande tela (passa no dia 5, 15h30, e dia 13, 19h00)..A partir dos anos 2000, a não muito extensa filmografia de Davies voltou-se mais para a literatura, embora já em 1995 A Bíblia de Neon (dia 5, 21h30|dia 11, 15h30) fizesse uma ponte entre o retrato da violência familiar, neste caso em cenário rural americano, e a contemplação de um texto preexistente, na medida em que ele acrescentasse tonalidades poéticas à depressão humana. Aí, os exemplos mais imediatos serão A Casa da Felicidade (dia 6, 21h30|dia 13, 15h30), que adapta o romance homónimo de Edith Wharton, mantendo-se no contexto americano, nova-iorquino, para desenhar a tragédia íntima de uma mulher da burguesia do início do século XX; e O Profundo Mar Azul (dia 7, 21h30), obra de 2011 que leva ao ecrã uma peça de Terence Rattigan sobre uma esposa que se atreve a amar fora do espartilho do casamento, caindo numa melancolia tão profunda quanto bela..Em ambos os filmes há interpretações femininas soberbas – Gillian Anderson em A Casa da Felicidade, no papel da sua vida, e Rachel Weisz em O Profundo Mar Azul –, sem esquecer que antes Davies dirigira a grandiosa Gena Rowlands em A Bíblia de Neon, enquanto figura dissonante num meio evangélico... E o que dizer de Cynthia Nixon no biopic de Emily Dickinson, A Quiet Passion (dia 11, 21h30)? Este último e Benediction (dia 10, 21h30), que foi a derradeira longa-metragem do realizador, sobre o poeta Siegfried Sassoon, formariam uma nova trilogia com um filme sobre Noël Coward. Não existiu; mas há mais nesta retrospetiva que vai até ao último suspiro da obra de um cineasta único e maravilhoso.