Tempos houve, e não foram breves nem particularmente longínquos, em que Portugal (como os demais reinos europeus) não tinha cidadãos, mas súbditos de Sua Majestade, o rei (ou rainha) por graça de Deus. Foi há 200 anos, com a revolução liberal de 1820, que essa realidade começou a mudar, numa das mais profundas transformações sociopolíticas (e também culturais) da nossa história. Presidente da comissão organizadora do Congresso Internacional do Bicentenário da Revolução de 1820, a historiadora Miriam Halpern Pereira fala-nos da importância deste processo, longo no tempo, e das suas consequências no nosso país e no mundo. "Autoriza-a" uma longa carreira de docência e investigação (é professora emérita do ISCTE-UL, antiga diretora do Arquivo Nacional da Torre do Tombo) e uma vasta bibliografia dedicada a este período histórico, em que sobressaem títulos como O Gosto pela História (2010), Mouzinho da Silveira, Pensamento e Acção Política (2009), Diversidade e Assimetrias (2001), Das Revoluções Liberais ao Estado Novo (1994), Livre-Câmbio e Desenvolvimento Eco- nómico: Portugal na Segunda Metade do Século XIX (1.ª edição em 1971), A Política Portuguesa de Emigração (1850-1930) (1.ª edição em 1981), Negociantes e Fabricantes entre Velhas e Novas Instituições (1821-1822), 1992. Fundadora do CEHC/ISCTE, o primeiro centro de história contemporânea em Portugal, e da revista Ler História, em 2016 foi-lhe atribuída a medalha de mérito científico do Ministério da Ciência e Ensino Superior..Este congresso estava programado para o ano passado, quando passavam exatamente 200 anos sobre a revolução de 1820, mas foi adiado por causa da pandemia. Foi um grande transtorno?.Não foi pior, sabe? Em vez de estarmos a celebrar apenas os pronunciamentos de 24 de agosto, no Porto, e de 15 de setembro, em Lisboa, e suas consequências imediatas, estamos também a analisar a reunião das Cortes Constituintes, que se iniciou no princípio de 1821, continuou até meados de 1822 e que foi, afinal, o processo mais importante deste período. Marca a constituição, pela primeira vez na nossa história, de um órgão de poder, uma assembleia legislativa eleita pelos cidadãos, representantes da soberania nacio- nal, que é outro conceito novo surgido nesta época..Antes havia súbditos no lugar de cidadãos?.Sim, e o conceito de cidadão opõe-se ao de súbdito, como o de nação ao de reino. Temos a ideia de que o conceito de nação teria começado com D. Afonso Henriques, mas do ponto de vista político data de 1820. Do ponto de vista cultural será outra questão..Este programa é muito abrangente, tanto nos temas, como na própria origem dos participantes. Temos investigadores portugueses, claro, mas também de muitos outros países e universidades....Foi a nossa preocupação desde o início. A revolução de 1820 insere-se, em primeiro lugar, num movimento revolucionário comum a todo o Sul da Europa (a primeira aconteceu, também em 1820, em Espanha, depois em Portugal, Itália e pouco depois na Grécia). Sobretudo no caso da Península Ibérica, dada a existência dos impérios americanos, as repercussões foram ainda maiores. Estas regiões já tinham conhecido o impacto da própria revolução americana, no final do século XVIII, mas 1820 ditará mudanças ainda mais profundas. Um dos fenómenos mais interessantes (e se calhar menos conhecidos) é a revolta dos escravos ditos constitucionalistas, ocorrida no Brasil. E houve repercussões mesmo na Índia. Uma das comunicações falará justamente desse tema..Estas revoluções influenciaram as independências dos países da América Latina, incluindo o Brasil?.No caso do Brasil, que é o que conheço melhor, isso é muito evidente, embora não tenha sido imediato. No início, o que houve foi um movimento constitucionalista, com o apoio à revolução de 1820 e à Constituição. O rei D. João VI tinha estado sempre hesitante desde o final da Guerra de 1814 - não sabia se deveria permanecer no Rio de Janeiro, correndo o risco de perder o reino, ou voltar a Lisboa e perder o Brasil. Resolveu voltar e deixar a regência entregue ao seu filho D. Pedro..O texto da Constituição de 1822 é um texto fundamental da história de Portugal pelo seu caráter revolucionário?.Sim, logo as bases da Constituição, aprovadas em março de 1821, contêm o fundamental..É este o texto constitucional que vai vigorar até ao final da monarquia?.Não, este texto só vai vigorar durante um período muito curto, desde setembro de 1822 até 1823, quando há um golpe e se regressa durante algum tempo ao absolutismo. E depois há de voltar a vigorar durante um breve período depois da revolução de 1836. É um documento político fundamental, uma pedra basilar do liberalismo português que ficará na memória política. Vai ser invocada pelos republicanos, depois pela oposição democrática, mas não foi, de modo algum, o texto dominante do século XIX. Esse papel pertence à Carta Constitucional de 1826, de D. Pedro, embora, em 1852, o Ato Constitucional venha resolver alguns dos aspetos que opunham entre si os textos de 1822 e 1826.."São tempos muito violentos em Portugal com prisões e assassinatos em massa, o que leva muita gente a exilar-se. Pode dizer-se que nunca houve uma emigração política tão significativa em qualquer outra época da nossa história.".O que é que a Carta acrescenta ao texto de 1822?.É completamente diferente. Obedece a uma outra conceção política, em que há partilha do poder real e o poder da soberania nacional. Na Constituição de 1822, o rei tem um poder executivo muito limitado e na Carta é acrescentado um quarto poder, que é o moderador, o que reforça os poderes do rei. Este passa a partilhá-lo com o Parlamento, que tem duas câmaras, a dos Pares e a dos Deputados (na de 1822 só havia uma câmara). Mas a grande transformação da Administração Pública, que, na prática, põe fim ao antigo regime em Portugal, é ditada pela Carta de 1834..Em que é que o liberalismo português é diferente dos outros? Quais as suas especificidades?.A primeira diferença entre a Península Ibérica e a Grécia e a Itália é que Portugal e Espanha são países unificados. Do ponto de vista político, há muitas semelhanças. De resto, é muito importante que esta Constituição de 1822 tenha à cabeça uma declaração dos direitos fundamentais. Embora tenha os limites próprios da sua época, é mais próxima da francesa do que da Declaração norte-americana, por exemplo, até porque era uma sociedade mais próxima da nossa, com aspetos muito similares. Os Estados Unidos eram outra coisa completamente diferente..É essa semelhança que leva à adaptação de muitas ideias francesas à nossa realidade?.Também há uma forte influência inglesa do ponto de vista ideológico, o que é comprovado pelas citações de autores durante o processo das Cortes Constituintes..Haverá, aliás, muitos liberais exilados em Londres....Em Londres e em Paris. São tempos muito violentos em Portugal, com milhares de prisões e assassinatos em massa, o que leva muita gente a exilar-se. Pode dizer-se que nunca houve uma emigração política tão significativa em qualquer outra época da nossa história..Estou a lembrar-me de Almeida Garrett, por exemplo....Sim, o Garrett, o Alexandre Herculano, o Mouzinho da Silveira, que é fundamental na revolução de 1834 e na guerra civil, que começa em 1828 nas ilhas, com o desembarque no Mindelo e com a formação de um governo revolucionário na ilha Terceira. Foram figuras fundamentais na organização e no estabelecimento de um programa de ação política. Mais uma vez, temos de inserir estes acontecimentos numa onda revolucionária internacional, com mudanças políticas em Inglaterra e em França. O que significou que, a partir daí, passámos a contar com apoio internacional. Antes tínhamos algum, mas era muito limitado.."A revolução de 1820 insere-se, em primeiro lugar, num movimento revolucionário comum a todo o Sul da Europa (a primeira aconteceu, também em 1820, em Espanha, depois em Portugal, Itália e pouco depois na Grécia).".Podemos dizer que um dos legados mais importante de 1820 é a criação dos conceitos de nação, soberania nacional e cidadania?.Também o de independência nacional, que nesta altura era a primeira questão. D. João VI, ainda como regente, em nome da mãe, assinara um acordo secreto com os ingleses. Em troca do apoio da Marinha Real durante a sua viagem para o Rio de Janeiro, ele abriria os portos do Brasil ao comércio internacional. Esse acordo previa a assinatura de um tratado de comércio e navegação, que viria a ser assinado em 1810 e que se revelaria ser o mais desastroso da história de Portugal, uma vez que destruiu a incipiente indústria portuguesa, o comércio e a agricultura. Só viria a ser renegociado 15 anos depois, em 1825. Por isso, quando se recuperou a independência política, ficou por reconquistar a independência económica. O tratado só viria a ser realmente denunciado pelos setembristas, em 1837..dnot@dn.pt