Militância em tom feminino
Com mais de um ano de atraso, chega ao mercado português Call Jane - Tu Não Estás Só, evocando a luta das mulheres americanas pelo direito ao aborto - uma boa estreia na realização cinematográfica de Phyllis Nagy.
Phyllis Nagy é uma dramaturga e encenadora americana (nasceu em Nova Iorque, em 1962) que se afirmou no mundo do cinema graças ao argumento que escreveu para o filme Carol (2015), de Todd Haynes, a partir do romance The Price of Salt, de Patricia Highsmith - valeu-lhe, aliás, uma nomeação para o Óscar de Melhor Argumento Adaptado. Antes, tinha dirigido o telefilme Mrs. Harris (2005), com Annette Bening e Ben Kingsley. Agora, chega-nos a sua primeira realização cinematográfica, Call Jane (a que foi acrescentado o subtítulo português Tu Não Estás Só), filme que integrou a secção competitiva do Festival de Berlim de 2022.
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A "Jane" do título original nunca existiu. Há mais de meio século, era esse o nome (ou Jane Collective) por que era conhecido um grupo feminista, sediado em Chicago, de aconselhamento para mulheres que queriam interromper a sua gravidez. Ligado ao Movimento de Libertação das Mulheres, o grupo manteve-se ativo entre 1969 e 1973, numa altura em que a prática do aborto era ilegal em quase todos os estados americanos. Foi a avaliação do caso Roe vs. Wade pelo Supremo Tribunal dos EUA que, precisamente em 1973, alterou tal conjuntura, reconhecendo que a Constituição do país garante a cada mulher o direito a escolher abortar (recorde-se que as mudanças introduzidas por Donald Trump no Supremo Tribunal fizeram regredir essa resolução, repondo a questão do direito ao aborto nas encruzilhadas da política americana).
O filme não pretende abarcar toda essa complexidade histórica, antes refletir um momento específico através da experiência de uma mulher, de nome Joy, interpretada por Elizabeth Banks. Assim, telefonar para "Jane" (como diz o título original) era uma alternativa para superar as limitações decorrentes do quadro legal em que se exercia a medicina e, em particular, a ginecologia.
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É isso que acontece com Joy, dona de casa de uma família que se quer "típica" e "exemplar": quando fica a saber que a sua gravidez é de alto risco, podendo mesmo provocar-lhe a morte, Joy acaba por recorrer às "Jane", iniciando um processo que a vai transformar numa militante do próprio coletivo.
Joy não é, no entanto, retratada como heroína imaculada de uma cruzada, até porque o filme não se coíbe de expor os contrastes de tudo aquilo que está a acontecer, nomeadamente através da personagem dúbia do médico que pratica os abortos - há também algumas pontuações dramáticas que sugerem as diferenças sociais que existem entre mulheres brancas e mulheres negras envolvidas no movimento.
Através da serenidade da sua narrativa, Call Jane consegue escapar às facilidades do "filme panfletário", colecionando de forma discreta, mas incisiva, muitos sinais da época, da televisão à música, passando pela reconversão do próprio espaço familiar. Além de Elizabeth Banks, importa destacar Sigourney Weaver no papel de Virginia, uma líder das "Jane", que não se cansa de repetir que não lhes compete julgar as mulheres, mas sim garantir o direito a disporem do seu corpo.

dnot@dn.pt
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