Para Miguel Real a “religião nunca morre porque não é encarada a sério” e representa o "conservadorismo em Portugal"
Para Miguel Real a “religião nunca morre porque não é encarada a sério” e representa o "conservadorismo em Portugal"Leonardo Negrão / Global Imagens

Miguel Real viveu uma vida inteira para negar a ressurreição de Jesus

Um romance que questiona um dos dogmas da Igreja Católica. Não é um desafio à Igreja: "Não lhe reconheço importância particular na minha vida".
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Desde o romance Caim de José Saramago que nenhum escritor português se ocupava tão profundamente de um território também literário como é o da religião Católica. Desde há poucos dias, no entanto, chegou às livrarias o mais recente livro de Miguel Real (n.1953), em que reescreve numa autobiografia o ser humano mais biografado de sempre: Jesus. Tal como o único Nobel da literatura portuguesa, que nunca deixou por mãos alheias as críticas a essa instituição e ocupou-se dela em vários livros, designadamente no polémico Evangelho segundo Jesus Cristo, Miguel Real mergulha na história do primeiro pilar de uma fé que tem um 1 390 milhões de crentes e fá-lo tremer com a sua interpretação em Autobiografia de Jesus.

Não é um livro inocente nem seria possível sem um amplo conhecimento da Igreja Católica e de uma maturidade filosófica que foi adquirindo, situação que será exposta num dos dogmas que Autobiografia de Jesus questiona, o da Ressurreição. Que introduz de imediato na Apresentação, a entrada em que partilha a antiga opinião da sua mãe, que dava menos importância à ressurreição e mais à vida de Jesus. Segundo Miguel Real, essa memória da juventude, uma dúvida basilar, nunca foi apagada: “Enquanto escrevia o romance, inspirei-me em muitas das nossas conversas de quando decidi, cerca dos 14 anos, abandonar o cristianismo.” Não foi por acaso que se confrontou com esse abandono: “Foi instintivo. Era uma religião dos ricos, a que abençoava os barcos que partiam para a guerra [em África] e a que prendia e torturava os opositores políticos.” Miguel Real não se ficou por aí na relação com a Igreja Católica: “Depois amadureci, e, tirando a sua presença na Idade Média, sem a qual Portugal não existia, os últimos 500 anos foram de conluio com elites atrasadas, bloqueando a europeização do país. A nós e também a Espanha.”

Daí que se pergunte como é que os católicos portugueses continuam a aceitar uma Igreja que, nas suas palavras, tem “a partir do século XVI um papel torturador, nefasto e bloqueador da história de Portugal”, além da prática do crime de pedofilia continuada como ficou provado recentemente? Contextualiza e desenvolve a sua opinião: “Cada povo tem a sua «forma mentis» e mil anos de catolicismo às costas tem o seu peso e a sua força, que é a força da inércia, própria do conservadorismo. O problema da igreja na nossa História reside no facto que ela foi a instituição que bloqueou entre nós a Revolução Científica europeia do século XVII - por via da Santa Inquisição e da Ordem de Jesus - e a Revolução Democrática do século XVIII - por via do «regalismo» do Marquês de Pombal e da «Viradeira» da catolicíssima D, Maria I. Além de Espanha, nenhum país chegou ao século XIX com ausência de escolas, de estradas e de hospitais, mas abundância de conventos, mosteiros e igrejas isentos de impostos. O Liberalismo da primeira metade do século XIX foi forte no ataque à Igreja e na segunda metade, com a Regeneração, o Estado investiu no progresso tecnológico e esqueceu as diatribes da Igreja. Com a República e por sua causa a Igreja reformulou-se – Fátima - e com Salazar torna-se vanguarda ideológica da sociedade, prosseguindo agora numa posição insossa, como toda a igreja católica - nada de mais anedótico do que ver o Papa a clamar pela paz e a guerra a acentuar-se. Porém, os gestos, os comportamentos, a mentalidade, foram refinados em mil anos de catolicismo, criando a mentalidade portuguesa mais supersticiosa do que devota - oito milhões de peregrinos em 2018 em Fátima - esperando que a Mãe do Céu dê os que os políticos portugueses não lhe dão, a transformação de cada família pobre – dois milhões - em rica.”

Autobiografia de Jesus não nasce do nada ou é fruto de um acaso, antes é o resultado de uma grande investigação e de um debate que tem praticado durante vários anos por ser uma questão que o interpela desde cedo em si. Pode dizer-se que tem sido um questionamento constante, como refere: “Os meus ensaios Nova Teoria do Mal (2012) e Nova Teoria do Pecado (2017) já tratam destes temas, mas só recentemente distingui com precisão a obra de Jesus da obra do cristianismo, Jesus o autor das Bem-Aventuranças e da Pai Nosso e Cristo na cruz usada para criar uma das religiões mais aterradora e dogmática.” Quanto à investigação para este ensaio, Miguel Real aponta como fontes “em primeiro lugar, e sobretudo, os quatro evangelhos canónicos, com quem aprendi a doutrina, mas sobretudo a personalidade meiga, terna, mas também impositiva de Jesus. Depois, muitos livros sobre a Palestina romana no tempo de Jesus e alguns sobre o judaísmo. Finalmente, as principais biografias de Jesus, tentando evitar as de origem católica, que se presumem «verdadeiras» e «reais», não passando, porém, de narrativas semelhantes a romances.”

Não será por acaso que quando se pergunta ao autor que reação esperar dos leitores deste livro, lhes peça: “Que o leiam de mente aberta e que não se esqueçam de que estão a ler um romance, o género literário mais livre, mas também o mais subversivo dos costumes.” Daí que se faça uma outra pergunta, a de como se atreveu a fazer mais uma biografia de Jesus, o homem mais biografado do mundo, mesmo classificando-a de autobiografia. Não se disse e inventou já tudo? A justificação que Miguel Real apresenta é fundamental para se compreender este romance e a razão de o ter escrito: “A questão da ressurreição de Jesus era uma interrogação que me acompanha desde a infância. Levei a vida inteira a preparar-me para escrever este romance. Não tenho conhecimentos de hebraico para escrever um ensaio sobre Jesus. Logo escrevi um romance, que dá mais liberdade ao autor, onde segundo a coerência deste, pode apresentar teses mais ousadas, como a falsidade da ressurreição. Que, aliás, não é novidade nenhuma, tanto quanto me lembro, a maioria dos evangelhos apócrifos não referem a ressurreição, nem Marco, o primeiro evangelista, a refere. A ressurreição não é um facto absoluto, é a expressão de uma crença. Na religião há que separar a crença – legítima - dos factos. Não é por mil milhões de indianos acreditar em Ganesh como o deus que lhe resolve os pequenos problemas do quotidiano - como os cristãos em Santo Expedito -, que existe um deus bebé com cabeça de elefante.”

As dúvidas sobre a impossibilidade da ressurreição de Jesus não existem só em Miguel Real. Sente-se bem acompanhado, por milhões de crentes e não crentes, nesta negação? O autor garante que escreve segundo o que a sua consciência e a sua pequena sabedoria ditam e “não para me sentir bem ou mal-acompanhado”. Elabora assim a tese do seu romance: “Desde a morte de Jesus que a sua ressurreição é posta em causa. Neste sentido, talvez este seja o meu romance menos original. Mas, por outro lado, a originalidade reside no destaque dado a João e a Judas na «falsa ressurreição» de Jesus e no estabelecimento de uma intriga coerente que o provasse. O que me interessava mostrar era que Jesus, o herói do cristianismo, era «o homem mais fracassado da civilização ocidental», que tudo por que ansiou - o reino de Deus, a igualdade entre os homens, a expulsão de Roma da Judeia, tudo o que rezava o seu Sermão da Montanha - não só não se cumpriu como criou a região mais terrorista - o cristianismo - do Ocidente, assassinou os filósofos e proibiu a filosofia em Roma e Atenas, participou ativamente na industrialização da escravatura pela qual a América se povoou, a Europa enriqueceu e a África se bloqueou até hoje, e destruiu os equilíbrios na Índia e no Japão.”

Miguel Real cita a expressão de Maria Madalena, “Viu Jesus em pé, mas não sabia que era Jesus”. Pergunta-se se alguma vez durante a escrita deste livro, face ao seu envolvimento, poderia ter-se expressado como ela? A resposta é direta: “Ninguém que escreva uma biografia sobre Jesus pode ter a pretensão de estar perante o «verdadeiro» Jesus. Porém, não caiamos no pós-modernismo em que há um Jesus para cada crente. Entre ambas as posições extremas, existe um conjunto de dados - exteriores a Jesus e internos ao cristianismo - que garantem alguma fidelidade à sua vida e obra. No caso desta frase, é a que está nos evangelhos; Madalena confundiu Jesus com o hortelão do cemitério e não reconheceu aquele com quem convivera durante os últimos dois anos. É estranho, não é.”

Voltando às reações que Autobiografia de Jesus pode gerar, Miguel Real nega que este livro seja um desafio à instituição, pois a Igreja Católica não aprecia o questionamento de certos dogmas que lhe são estruturais. É um desafio? Responde: “Não, não é um desafio. Pelo facto muito simples de que neste momento não lhe reconheço importância particular na minha vida a não ser que continua a ser a reunião condensada de tudo o que é conservadorismo em Portugal. Mas isto já é política, coisa que não pratico.” Quanto ao futuro da Igreja Católica, sobreviverá ou não tantos séculos quantos os que já conta? Esclarece a sua opinião: “A religião nunca morre porque não é encarada a sério, apenas como consolo da mente e suavização da vida, depois cada um faz a sua vida sem nada ligar à igreja. E, sobretudo, como esperança do futuro. A igreja detém o monopólio da vida para além da morte, da qual ninguém regressa para a esclarecer e perguntar a razão por que há de ser um padre a levar-nos para o outro mundo.”

AUTOBIOGRAFIA DE JESUS
Miguel Real
D.Quixote
285 páginas

Outras novidades literárias

JESUS E A FICÇÃO

Não há muitos títulos do crítico inglês James Wood traduzidos para português, daí que o ensaio A Coisa mais Próxima da Vida seja uma boa novidade. Talvez o melhor texto para ler após a Autobiografia de Jesus (o livro à esquerda) e ver sob um olhar anglo-saxónico as questões que levanta sobre a ficção e a religião. A coincidência da edição dos livros destes dois pensadores permite comparar opiniões, conjeturas, e, neste caso, o de quanto o romance é o grande espaço para o questionamento, o ateísmo, a crença e a dúvida, tudo sobre o grande chapéu e o peso da tradição religiosa na cultura literária. Wood escreve a dado momento o seguinte: “O próprio Jesus parecia incapaz de decidir se era o leitor ideal de ficção ou o seu inimigo mais implacável.” Também sobre a sensação que o leitor terá ao “espreitar o pensamento de (…) Ricardo Reis e ter por vezes a sensação vertiginosa de possuirmos o poder de Jesus”. Citações retiradas de páginas que merecem uma leitura completa.

A COISA MAIS PRÓXIMA DA VIDA
James Wood
Zigurate
117 páginas

DE OLHO EM DEUS

Em Claridade, João Luís Barreto Guimarães regressa a perguntas com muita desfaçatez, interroga também e, principalmente, pinta breves frescos do mundo (ir)real. Como: “A / noite é automática. Já vem / de origem assim”; como: “Instruir os cães / a serem lobos e os leões a serem / gatos”; como: “Não percas tempo / com a poesia. Fala antes da vida autêntica”… Decerto, do melhor material para ler entre intervalos dos livros anteriormente referenciados porque não O esquece num dos poemas, aquele “dedicado” a Putin: “Milhões de anos / passaram e ainda temos de estar / atentos (de olho /em Deus). Não pára de fazer experiências.”

CLARIDADE
João Luís Barreto Guimarães
Quetzal
64 páginas

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