Em cena na sala vermelha o Teatro Aberto, Miguel Guilherme encarna a personagem de Leo, um velho pugilista fechado numa ala de um lar por ser considerado perigoso. É lá que conhece Jójó , interpretado por Gonçalo Almeida, um jovem condenado a cumprir serviço comunitário depois de um confronto com a polícia. Uma peça encenada por João Lourenço que criou, juntamente com Vera San Payo de Lemos, uma nova versão da reconhecida peça do alemão Lutz Hubner. Poucas horas antes de entrar novamente em cena, Miguel Guilherme, sentado num banco do foyer do teatro, fala ao DN, entre outras coisas, sobre a peça que usa o boxe como uma metáfora da vida - com vitórias e derrotas..Como é que esta peça chegou até si? Pelo que sei era para ser outro ator a fazer a personagem do pugilista? Chegou de uma maneira inesperada. O João Lourenço escolheu a peça especialmente para o Rui Mendes, ele queria celebrar o percurso do Rui [Mendes] no teatro. Mas o Rui, que está completamente saudável, tem 85 anos e a peça é um pedaço puxada fisicamente. E ainda por cima está a contracenar com um miúdo de 21 anos. O próprio Rui acabou por desistir. Conheço-o um pedaço para dizer que não o fez de ânimo leve, deve estar cansado. Quando o João Lourenço me ligou eu também estava muito cansado, mas li a peça e gostei. Todo o teatro é pesado em termos físicos, mas esta não me pareceu tanto como a peça que tinha feito antes e que durava quatro horas. Esta peça é intensa mas é curta comparada com a outra. E aceitei fazer..E como se preparou? Aprendeu por exemplo a maneira dos pugilistas calçarem as luvas, os passos? A personagem é um pugilista que não combate há mais de 20 anos, o que sabe está-lhe no sangue, mas ele é um velho. Na peça tenho que explicar ao miúdo alguns movimentos, por isso estivemos com um pugilista que nos ajudou. De resto, a peça é com um pugilista e tem sete cenas, como os sete rounds de uma partida de boxe, mas não é uma peça específica de boxe. Este é sim usado como uma metáfora, da luta pela vida, pela sobrevivência. A peça é sobre a relação de dois seres: um miúdo que está prestes a entrar na marginalidade e um velho, o pugilista, a quem o boxe provavelmente salvou da marginalidade..Faz uma personagem mais velha do que a idade que tem... Não muito mais velha. A personagem podia estar na casa dos 80 mas também pode ter a minha idade (64). Não dá para compor uma personagem, tenho que ser o mais natural possível, o público está a um metro de nós. A cabeleira que uso em cena carrega-me um pouco e eu já não sou novo, mas não fiz nenhum trabalho de composição. Às vezes quando estou quieto tento sentir o rosto a amolecer... mas é mais um trabalho de procura interior entre os dois personagens..Conheceu o autor da peça, o alemão Lutz Hubner? Ele viu a peça? Estive com ele sim, gostou imenso da peça. Esta é talvez a peça contemporânea mais representada na Alemanha e ele já viu várias versões. É uma peça que é feita por grupos profissionais, nas escolas e nos liceus, é emblemática. Usam-na para a disciplina de teatro que é uma disciplina muito importante na Alemanha, tão importante como a matemática ou a geografia, porque eles levam o teatro muito a sério. E ele gostou bastante da nossa versão. A peça é de 1996 e passa-se nos anos 1980, e esta é uma versão, ou seja, não é exatamente o que lá está, sendo que o fundamental está também nesta versão. Mas foi estripada de tudo o que tivesse a ver com os anos 80. E passa-se na atualidade. Foi também estripada de se passar na Alemanha, por isso não sabemos muito bem onde é. E, fundamentalmente, foi construída do ponto de vista do velho, quando geralmente é feita do ponto de vista dos dois ou do miúdo. O Lutz Hubner achou muito interessante porque nunca tinha visto nenhuma versão onde a peça é explorada cenograficamente e dramaticamente sobre o ponto de vista do velho..Citaçãocitacao"A peça é com um pugilista e tem sete cenas, como os sete rounds de uma partida de boxe, mas não é uma peça específica de boxe. Este é sim usado como uma metáfora, da luta pela vida, pela sobrevivência.".O Miguel contracena com um ator muito novo, o Gonçalo Almeida. Como tem sido a vossa relação? A relação entre um ator bastante mais velho e outro mais novo não devia ser nada de especial.......mas o Miguel tem muito mais experiência... Sim, mas a experiência é um pau de dois bicos. Pode ser mal usada quando é um "eu sei tudo" ou eu "já fiz isto" ou algo parecido, e isso pode ser o lado mau. O lado bom é perceber que se está sempre a iniciar um processo novo, tendo em conta que se tem mais experiência, e não usar a experiência com um trunfo ou um ceptro para se vangloriar. Não tenho essa tendência. Aliás, é raro dar conselhos: posso falar com o ator sobre algo que não goste, mas não vou dizer-lhe como deve representar. Claro que um ator mais novo tem menos experiência e pode demorar mais tempo a chegar a certos sítios, mas o ator mais velho se não estiver com muito cuidado pode ser um mau exemplo. Há que mostrar que não temos a certeza das coisas, senão isto não dá prazer nenhum. Em termos de contracena dou-me bastante bem com o Gonçalo..O que gostava que levassem da peça as pessoas que já viram ou a irão ver? O teatro pode ter só emoção, o que é importante, ou empatia. Sem isso não existe teatro. Através dessas emoções deve poder fazer-se uma síntese do que se passou. Mas no final e não durante o espetáculo, porque aí perde-se o prazer de o estar a ver. Mas refletir naturalmente, depois, sobre o que estivemos todos - público, técnicos, atores - a fazer. Não tenho uma frase sobre aquilo que as pessoas poderiam pensar, mas gostava que vissem a impossibilidade ínfima, mas possível, de pessoas com idades tão diferentes se poderem tocar, nem que seja por um breve momento. E, talvez, depois, na vida prática consigam fazer isso com os filhos, com os netos, ou com os alunos..Faz uma personagem com certa idade, pelo menos comparada com a personagem do rapaz. Como lida com a velhice? Assusta-o? Às vezes assusta. Há momentos em que penso na velhice e na ideia da degradação, mas acho que é algo que acontece com toda a gente. Tento viver a minha vida o melhor possível e também tento manter o corpo minimamente funcional. No fundo, é aproveitar o tempo ao máximo porque o tempo é finito. E realmente só percebemos que é finito quando somos mais velhos. Aos 30 e 40 percebemos a finitude mas é só de uma maneira racional, não passa ainda pela ideia de fim.....nem aos 60... Aos 60 sim, aos 50 não. Os 60 para mim são um pouco um marco. Vê-se a hipótese de finitude muito mais perto. E depois há o olhar dos outros sobre nós. Olham para nós como velhos ou pessoas de idade. Até podemos não achar que somos velhos mas rapidamente a realidade nos demonstra que estamos velhos. Por isso há que aproveitar e fazer o máximo de coisas possíveis dentro da idade..A sua personagem está num lar fechado, sozinho, num quatro. Como lida com a ideia de solidão, tantas vezes ligada à velhice? Às vezes penso nisso. É impossível saber estar com os outros sem saber estar sozinho. O que não significa necessariamente abandono, mas significa estar sozinho durante umas horas largas do dia em que não há ninguém para falar a não ser connosco próprios. Pode haver uma espécie de reflexão de estar sozinho, na maneira como se fazem as coisas, como se anda pela casa, como se lê, e que pode ser muito gratificante. Agora, não somos nada sem os outros. Imaginar que aos 80 anos posso ter que ir para um lar não é agradável e, sim, essas coisas assustam-me. Mas, por outro lado, às vezes estamos acompanhados mas profundamente infelizes e sós..É um ator que já trabalhou com algumas das melhores inteligências nacionais, de Manoel de Oliveira, João Lourenço, Luís Miguel Cintra e Herman José. Como foi, e num dos casos é, trabalhar com eles e todos tão diferentes, do cinema ao humor? Estas pessoas fizeram-me mais feliz, a vida foi mais desafiante e excitante. Trabalhei sempre em registos muitos diferentes. Mas agora já não estou tão interessado nessa diferença, estou mais interessado em fazer bons textos no teatro, mas que não têm de ser trágicos. E também trabalhar no cinema com pessoas mais novas com quem gosto de trabalhar..Houve uma certa altura que estava muito ligado à comédia. Ainda olham para si nesse registo? Sim. Fiz muitas coisas cómicas no teatro, mas sobretudo o que marca muito é a televisão, o que não tem problema nenhum. É evidente que houve coisas que gostei mais de fazer, outras menos e outras que detestei, mas estamos a falar de 40 anos de trabalho. Mas gosto imenso de coisas leves, e no humor não sou nada seletivo: gosto tanto de um humor mais sofisticado como do mais parvo..E fora dos palcos é bem-humorado? Não sou muito, nem sequer tenho muito sentido do humor. Não sou um tronco, claro (risos), mas às vezes sou um pouco macambúzio. Menos do que era há uns anos, agora sou um pouco mais alegre..Do cinema, ao teatro e à televisão, qual o palco preferido? Não é preferir, mas como comecei pelo teatro é uma espécie de casa onde gosto de regressar e onde posso pesquisar e aprender coisas para aplicar depois no cinema e na televisão. É uma espécie de matriz..Em Portugal estão a surgir muitos novos atores, e jovens, e que estão a ir trabalhar para fora. Também teve alguma experiência fora do país, mas gostava de ter tido uma carreira internacional? Quando eu comecei havia poucos atores, agora há mais, o que é bom. Fiz algumas coisas com realizadores lá fora, mas nada de fazer séries para a Netflix.......e tem pena de não o ter feito? Tenho um pouco, mas ainda vou a tempo. Num ator o que é bom é que enquanto respirar e andar, tudo pode acontecer. Mas não é uma coisa que ande a perseguir..Depois desta peça o que vai fazer? Esta peça fica até final deste mês, mas há a grande possibilidade de ainda fazermos uma parte de janeiro - estou livre, o Gonçalo também, e o cenário já está montado. Depois vou fazer uma peça do Tennesse Williams, encenada pelo Diogo Infante, com a Luísa Cruz, algo que já tinha marcado antes e que irá estrear na última semana de abril, no teatro da Trindade. Não trabalho com ela [Luísa Cruz] em teatro desde 1995, estou muito entusiasmado e vai ser a primeira vez que trabalho com o Diogo [Infante]..E, de uma maneira geral, como olha para o estado da cultura atual? Estou há quarenta anos a ver o mesmo filme, na realidade não estou porque há coisas que mudaram. Mas não consigo fazer uma apreciação, não consigo. Temos de melhorar, temos de fazer mais coisas, mas é evidente que há pouco dinheiro para a cultura. Mas não somos só nós, são 99 por cento dos países. Nós é que nos equiparamos à França aos Estados Unidos... Não estou a ser derrotista mas mais vale trabalhar solidamente, e pensar em criar bases culturais, do que fazer fogachos. E depois é a questão do dinheiro, ninguém sabe muito bem o que fazer com o dinheiro. Vou ser franco, tento pensar pouco em termos de como resolver a cultura, penso antes no que estou a fazer e tento fazer sempre o melhor que posso..filipe.gil@dn.pt