Foi em 2021 que Daniel Pereira, produtor e distribuidor da The Stone and The Plot, juntamente com o programador Miguel Patrício, uniram esforços para fazer chegar aos cinemas portugueses três obras oriundas do mesmo estúdio, Nikkatsu, alinhadas pelo ano de 1955, e reunidas sob o título Mestres Japoneses Desconhecidos. O que é que justificava a iniciativa? A simples ideia de apresentar no nosso circuito comercial “retratos do Japão moderno”, filmes “fora do cânone”, como se lia no cartaz, nunca antes estreados fora do país que os produzira. Por outras palavras, era um gesto de pura partilha cinéfila, de abertura de horizontes, como raramente se viu acontecer de forma tão espontânea na distribuição de cinema, onde os chamados filmes antigos só chegam à boleia de efemérides ou num contexto de reposição motivado pelo restauro das obras. E eis que essa tomada de ação deu frutos. De lá para cá, o ciclo Mestres Japoneses Desconhecidos tornou-se presença regular nas nossas salas, e à sua quarta edição continua a abrir janelas para a história do cinema japonês fora dos trâmites dos autores comuns (a propósito, recorde-se que foi também a The Stone and The Plot, com Miguel Patrício, que deu a conhecer em Portugal a filmografia da realizadora japonesa Kinuyo Tanaka, em 2023, no âmbito de uma importante operação de redescoberta global). Do amor de mãe à juventude urbana Desta feita, e em relação à edição anterior, que contemplava sobretudo os meados da década de 1950 e início da de 60, as obras que nos chegam datam do final dos anos 50 e meados dos 60. Ou seja, avançou-se ligeiramente na linha do tempo. Logo a abrir, Imagem de uma Mãe (1959) surge como a obra-prima absoluta da colheita, um drama doméstico que poderia ser material para Yasujiro Ozu, mas traz antes a assinatura de Hiroshi Shimizu, não por acaso, um realizador descoberto por cá através do último ciclo, que dele apresentara a proeza lírica O Som do Nevoeiro (1956), sobre um desencontro amoroso de compasso existencial – sublinhe-se que foi um verdadeiro sucesso de público e está agora disponível na Filmin. Por sua vez, Imagem de uma Mãe leva-nos a observar o conflito interior de um menino que não aceita a “substituição” da sua mãe por uma madrasta, independentemente da natureza gentil dessa mulher. Tudo parte da viuvez recente do pai, um condutor de ferryboat que, cedendo à pressão de um novo casamento, acaba por encontrar noutra mãe solteira (com uma filha ainda mais pequena) a doçura necessária para renovar a atmosfera de um lar tristonho – missão que será muito dificultada pelo filho dele, agarrado à fotografia da mãe, numa espécie de luta armada contra as evidências da bondade da madrasta. Apesar de centrado na criança, o filme não deixa de ter um olhar fixo na mágoa gerida por aquela mulher que representa um movimento de transição. Um movimento suave como a câmara de Shimizu, mas violento e catártico na sua corrente íntima, ou não estivéssemos a falar de um mestre das relações familiares, aqui no comando da sua derradeira obra. .A Imagem de uma Mãe segue-se, num tom bastante distinto, Roída até ao Osso (1966), de Tai Katô, um drama de época que respeita muito pouco os termos clássicos desse género... aliás, em rigor, o género será mesmo o onna eiga (filme que se debruça sobre as atribulações de ser mulher). Estamos em 1900 e uma jovem de 18 anos, descendente de uma família pobre, é vendida a um bordel onde, promovida a “virgem”, se tornará popular entre a clientela. O esquema dos donos dessa casa de prostituição tenta mantê-la como principal fonte de rendimento, mas uma vez desmascarados, a rapariga tentará livrar-se das correntes daquele destino. Isto num filme que é todo ele um caos cirúrgico, de planos tão silenciosamente detalhados e acutilantes quanto freneticamente cheios. Um frenesi, de resto, não muito distante do fervor jazzístico de Yôko, a Delinquente (também de 1966), terceira obra do ciclo, que descreve a jornada urbana da personagem titular como um caminho para a perdição, nunca ignorando o potencial poético dessa juventude inquieta, sem rumo, que ainda assim tem sonhos de cinema: Yôko quer visitar Saint-Tropez, a praia que viu numa sessão de matiné com o rapaz por quem se apaixonou... Filme de estreia de Yasuo Furuhata, com um sabor a nova vaga, aqui está a expressão formal mais inventiva e próxima de uma vertigem de inconsciência e narcóticos. .Prezando, como sempre, a variedade da amostra, os Mestres Japoneses Desconhecidos IV regressam então, numa primeira fase, ao Cinema City Alvalade, em Lisboa, Cinemas NOS Alma, em Coimbra, e aos fins de semana a outras salas NOS de Lisboa, Almada, Porto, Viseu e Faro. Hoje mesmo há conversa marcada com o programador francês Clément Rauger, um dos maiores especialistas em cinema japonês, que virá a Lisboa lançar o seu olhar sobre Imagem de uma Mãe.