Manuel Duran Clemente: o amargo da derrota
Ilustração Vítor Higgs

Manuel Duran Clemente: o amargo da derrota

Publicado a
Atualizado a

São oito minutos e 26 segundos, hoje disponíveis no Arquivo RTP, e o que neles vemos é um hippie fardado, de longos cabelos negros, e barba mais longa ainda, a dissertar, em voz empastada, sobre coisas como “a sociedade da anti-cultura”, “o obscurantismo de tantos anos de fascismo com que o povo português foi massacrado”, “o ponto de vista dos explorados”, “a disciplina revolucionária”, “a incompetência revolucionária de certos oficiais do MFA”, “a direcção internacional capitalista” e até o famoso “princípio de Peter”. De permeio, frases históricas, antológicas, como esta: “não é recuando, recuando, que se chega à meta final.” 

Depois, a emissão foi transferida para o Porto e, nos lares de todo o país, o capitão guevarista deu lugar a O Homem do Diner’s Club, um filme de 1963 com Dannye Kaye no papel principal. 

Que uma comédia tenha sucedido a outra foi só mais um dos momentos prodigiosos do PREC, fértil em tantos outros, mas o que importa dizer é que ali, naquele telejornal das 20h30 da RTP, do dia 25 de Novembro de 1975, punha-se fim a uma festa, a qual ameaçava degenerar em tragédia - ou até guerra civil. 

Por causa daquela aparição televisiva, ao lado do locutor António Santos, Manuel Duran Clemente tornou-se o rosto dos derrotados do 25 de Novembro e, cinquenta anos volvidos, ainda não se libertou desse estigma, do facto de ter sido um perdedor e um vencido daquele dia ou, como agora se diz, com ponta de crueldade, um looser em toda a linha. Tinha então 33 anos, a idade de Cristo, com quem, de resto, possuía algumas semelhanças. No fácies e na postura - e no vezo quixotesco -, parecia também o Cavaleiro da Triste Figura e, de facto, fez uma figura triste, tristíssima, pungente até, perante um país inteiro, de olhar perdido perante as câmaras, perscrutando o que lhe iam sussurrando ou acenando os técnicos da RTP, titubeando nas palavras e nos gestos até acabar por dizer: “Estão-me a fazer sinais, eu não sei se posso continuar… Talvez seja melhor explicar aos ouvintes… Eu não posso continuar a falar por razões técnicas, é isso? Então eu continuo daqui a pouco, pode ser?”  

Mas não, não pôde ser. O Regime de Comandos tomou o emissor de Monsanto, fez transferir a emissão para o Porto, os pára-quedistas extremistas perderam, e Duran Clemente fugiu como pôde. Passou à clandestinidade, viveu assim obscuro até 9 de Janeiro do ano seguinte, morando em casa do médico Francisco George, seu velho amigo, então militante do PCP, e, depois, na casa de um outro clínico, Manuel Souto Teixeira, igualmente comunista. Entretanto, com dois camaradas seus, João Varela Gomes e Costa Martins, foi preparando a fuga, com o apoio do advogado Levy Baptista, do MDP/CDE. Naquele dia 9 de Janeiro, rumaram os três até Madrid, numa carrinha conduzida por Delaunay e Laura Pereira, ambos militantes do PCP, e, segundo nos informa António Louçã, Duran Clemente não deixou de ir informando de tudo isso Raimundo Narciso, seu “controleiro” no PCP (cf. Varela Gomes. “Que Outros Triunfem Onde Nós Fomos Vencidos”, Edições Parsifal, 2016, pp. 243ss). 

De caminho, hospedaram-se em Pinhel, na casa de família do amigo Mário Canotilho, advogado antifascista próximo do PCP e irmão do conhecido jurista José Joaquim Gomes Canotilho. Na manhã seguinte, “e com a colaboração de camaradas”, atravessaram a fronteira de Vilar Formoso e seguiram directos a Madrid, para a embaixada de Cuba, onde foram recebidos com grande desvelo pelo embaixador castrista. Aí estiveram três dias, aguardando voo para Angola. O diplomata sugeriu-lhes que fizessem a viagem por Cuba, o que os levou até Havana, onde estiveram cerca de um mês. O Presidente da Venezuela, Andrés Pérez, proibiria voos para Angola no espaço aéreo venezuelano, o que talvez explique a prolongada estada em Cuba e o estranho percurso até à capital angolana, com escala em Moscovo e depois via Egipto/Yalta, Sudão/Kartum, República Centro-Africana/Benin e Congo Brazaville, conta-nos Duran Clemente em Crónicas de um Insubmisso (Modocromia Edições, 2024), uma espécie de memórias suas, muito interessantes de ler.

Refere aí que tiveram “a melhor das recepções” em Cuba, ficando alojados numa casa do protocolo, sendo recebidos por Fidel e por Raul Castro, confraternizando com altos quadros do PC local, avistando-se com uma delegação angolana, com quem ajustaram os pormenores da sua deslocação para Luanda. “Fizemos amizades eternas”, diz Duran Clemente, acrescentando que não viu quaisquer sinais de pobreza em Havana, apenas as “dificuldades inerentes ao boicote norte-americano e europeu.” Os anfitriões, de seu lado, organizaram excursões a centros culturais, ao campo, a escolas e a quartéis, às sedes de organizações revolucionárias, com destaque para os comités de defesa da revolução, mas também a zonas turísticas. Em Havana, e vindo da embaixada de Cuba em Lisboa, Manuel Duran Clemente recebeu, inclusive, um exemplar do seu livro Elementos para a Compreensão do 25 de Novembro, que saíra em Portugal em Janeiro de 1976. E, pese estarem em fuga, Clemente e os seus camaradas tiveram até o gosto e a subida honra de serem convidados para um almoço na embaixada de Portugal em Havana, oferecido pelo embaixador José Fernandes Fafe…

Na hora da despedida, escreveram uma carta grata ao comité central do Partido Comunista de Cuba, saudando o “significado internacionalista” da recepção concedida em Havana a “militares revolucionários portugueses que, impossibilitados temporariamente de prosseguir a luta na sua própria Pátria, decidiram continuar ao serviço da causa universal da libertação dos Povos, agora debaixo da bandeira da República Popular de Angola para onde seguem.” Nessa carta, dizia-se ainda, entre o mais, que, após os acontecimentos do 25 de Novembro, estavam presos, na clandestinidade ou marginalizados “os mais activos e prestigiados militares portugueses”, “militares portugueses com credibilidade junto das massas trabalhadoras.” 
Aos três militares foragidos - Duran Clemente, Varela Gomes e Costa Martins -, juntar-se-iam em Luanda mais outros sete, o capitão-piloto Victor Jorge, o alferes-piloto Pedro Jorge, os sargentos-pilotos João Pimentel e os milicianos subalternos Luís Craveiro Martins, José Tavares Cabral e Rui Carrusca. Hospedados numa casa do protocolo, ficaram à espera de serem integrados nas FAPLAS, para aí mostrarem o seu brio revolucionário, mas, como o próprio Duran Clemente reconhece, “não era fácil a integração.” Agostinho Neto recebeu-os, mas manteve o seu proverbial mutismo, sobretudo quando abordaram a questão da sua entrada nas fileiras dos exércitos do MPLA. Quanto a Duran Clemente, participou numa equipa que, entre Junho e Setembro de 1976, estudou quais as indústrias ligeiras nacionalizadas que poderiam ser reabilitadas, muito longe da actividade militar que julgava vir a exercer. Ou seja, e em bom rigor, as autoridades angolanas não sabiam o que fazer com aqueles rebeldes lusos: de Fevereiro a Junho de 1976, Clemente não teve trabalho algum, a crer nas suas memórias, e o que arranjou a seguir deveu-o ao empenho de um amigo, o engenheiro Ademar Valles, irmão de Sita Valles, à época director nacional da Comissão da Indústria e de Desenvolvimento Industrial, e que, no rescaldo do “27 de Fevereiro”, seria executado, ou melhor assassinado, em 23 de Maio de 1978, ponto que Duran Clemente não menciona, talvez porque ele comprove que, em matéria repressiva, o regime revolucionário angolano se mostrou bem menos complacente do que a nossa democracia burguesa. De resto, os que, ao contrário dele, decidiram ficar em Angola tiveram um destino agreste: Varela Gomes escapou por um triz da prisão, Costa Martins foi torturado, esteve preso durante um ano e só escapou do fuzilamento graças à intercessão de Ramalho Eanes, Rosa Coutinho e António Macedo. 

Em Luanda, às tantas, diz-nos Duran Clemente, “as dificuldades logísticas começaram a ser profundas”, pese a solidariedade de outros portugueses residentes na capital angolana e a amizade de José Brás, comissário de bordo da TAP, que de Lisboa levava alimentos e garrafões de vinho aos derrotados do 25 de Novembro. Estes reuniram-se no final de Agosto de 1976 e, dos dez, cinco decidiram regressar a Portugal, enfrentando a justiça capitalista e uma eventual prisão. Entretanto, a mulher de Duran, Vera Blanco, pianista com quem casara em segundas núpcias, e de quem teve uma filha Rita, veio a Lisboa “para estabelecer contactos com militares do Conselho da Revolução e amigos de relevância política”, ou seja, para negociar a rendição do marido.

E assim, no dia 9 de Setembro de 1976, Duran Clemente, Victor Jorge, José Tavares Cabral, Luís Craveiro Martins e Rui Carrusca desembarcaram em Lisboa, não sem antes terem assinado uma carta de agradecimento ao MPLA que, numa sincronia perfeita, foi publicada no Jornal de Angola e, em Portugal, no Diário, no Diário de Lisboa e no Diário Popular, no preciso dia em que aqueles chegaram à Portela. No voo de regresso, e mal começaram a sobrevoar o Algarve, entrando no espaço aéreo português, Manuel Duran Clemente solicitou a uma hospedeira que fizesse chegar um bilhete ao comandante da aeronave, no qual o informava que a bordo seguiam cinco militares portugueses que vinham entregar-se às autoridades do seu país, pedindo-lhe que estas fossem avisadas e que tudo decorresse sem altercações. Assim foi: despejados os outros passageiros na Portela, o avião seguiu para Figo Maduro, onde aguardavam duas viaturas militares que os levaram ao Restelo, ao edifício do Ministério da Defesa e do EMGFA, na Avenida da Ilha da Madeira, onde foram ouvidos pelo juiz de inquérito, na presença dos respectivos advogados. 

Manuel Duran Clemente foi o primeiro a ser ouvido, às sete da tarde daquele dia, 9 de Novembro de 1976. Defendeu-se das acusações que sobre ele impendiam, a mais grave das quais a de ter atentado contra a ordem estabelecida. Negou firmemente ter ocupado, no fatídico dia 25 de Novembro, as instalações da RTP no Lumiar e de ter incitado à revolução popular armada. “Naquela emissão histórica, que silenciou a última voz do MFA Revolucionário, apenas apelei à serenidade”, recorda ele. Quanto ao autocolante que trazia ao peito, no decurso daquela “emissão histórica”, negou que pertencesse a qualquer partido, esclarecendo que era da 5.ª Divisão. No final, o juiz decidiu pela liberdade condicional e, ao verem-no sair em liberdade, os seus camaradas pensaram, e bem, que “se este saiu, nós vamos sair também.” É um facto. 

Pelo relato de Duran Clemente, não se percebe bem a que pena foi condenado, sabendo-se tão-só que, em Abril de 1977, o juiz autorizou que a liberdade condicional fosse suspensa para fosse visitar os dois filhos, então com 8 e 10 anos, que não via há dois anos, pois entretanto tinham ido para o Brasil na companhia da mãe e do padrasto (Duran casou pela primeira vez com a pianista Teresa Cortez Pinto Seixas, de quem teve dois filhos, André e Frederico).   

Em qualquer caso, é óbvio e mais do que evidente que o regime foi clemente com Clemente, e não só não o prendeu como lhe permitiu, de resto legitimamente, uma ampla liberdade de movimentos e actuações. Até 1978, e entre outros afazeres, assessorou a administração da Herdade da Torre, um latifúndio do tamanho do concelho de Lisboa, propriedade do seu “amigo maior” Fernando Mascarenhas, marquês de Fronteira, cargo que, aliás, exercia desde 1961. 

De pouco adianta especular se as coisas seriam assim se a História tivesse sido outra, se haveria a mesma complacência para com os vencidos acaso tivesse triunfado um homem que, em entrevista ao semanário Actualidades, de 19/11/1975, sonhava com “um governo revolucionário que não permitisse boicotes às medidas revolucionárias que tomasse” e que “fizesse um saneamento profundo no aparelho de Estado.” Nessa entrevista, Duran queria ainda “um governo com força, com homens de esquerda”, com uma linha de actuação “se possível, ainda mais revolucionária” do que a do V Governo, de Vasco Gonçalves, a quem ainda hoje chama “o timoneiro das mais valiosas conquistas de Abril” e “o mais insigne capitão de Abril.” Afirmou ainda que “o Sr. Mário Soares é, efectivamente, um traidor da Revolução Portuguesa” (“do Sá Carneiro já nem falo”), o que não o impediu, anos volvidos, de ser presidente da assembleia de freguesia de Santa Catarina na coligação PS/PCP, entre 1999 e 2001, e vereador substituto na câmara municipal de Lisboa, em 2001-2005, igualmente pela coligação PS/PCP. Caso para dizer que ou o PS mudou desde os tempos do “traidor” Soares ou foi Duran quem mudou, adaptando-se aos novos tempos. Em certa medida, sim, e há palavras suas simpáticas para o PS: “neste momento histórico considero que criticar em excesso o PS é abrir as portas à direita, ao PSD, a neoliberais e fascistas.” Mas, no que toca ao 25 de Novembro, permanece intransigente na sua versão dos factos. Para ele, tratou-se de um golpe, sim, “mas um golpe da direita reaccionária!”, que “serviu objectivamente os desígnios da reacção imperialista e cair em mais uma armadilha da CIA.” Mais ainda: “após o 25 de Novembro, os adversários das ideias que defendi e defendo para Portugal deviam ter a coragem de reconhecer que ficaram mais fracos, mais sós, e reféns de um sistema político contrário aos interesses do Povo e das classes trabalhadoras.” Para terminar, Duran Clemente afirma que foi cometido um “verdadeiro crime pelos fazedores de Novembro, contra a nossa Primavera de Abril.” 

***

Manuel Duran Clemente nasceu no dia 28 de Junho de 1942 na Quinta de Santa Rita, em Palença de Cima, no Pragal, concelho de Almada, que pertencia à sua tia-avó Maria Dolores Duran, uma galega natural de Moscoso, em Pontevedra, que, em 1895, veio para governante de um aristocrata de origem galega que, além de conselheiro de D. Carlos, era proprietário de três quintas entre o Casquilho e o Monte da Caparica.
Como Maria Dolores não tinha filhos e a sua irmã Maria tinha muitos, vivendo com dificuldades em Moscoso, Maria aceitou que a filha Aldina viesse viver com a tia para Portugal, onde, aos 21 anos, casou com António dos Santos Clemente, um furriel beirão, natural da Capinha, no Fundão, filho de agricultores a região.  

Quando Manuel nasceu, seu pai estava destacado no Faial, por causa da guerra mundial, a segunda. “Quando regressou, rejeitei-o”, diz ele em Crónicas de um Insubmisso.     

Em contrapartida, são radiosas, luminosas, as suas recordações de infância, quer em Palença de Cima, terra onde Fernão Mendes Pinto terá vivido, quer de Penamacor, onde viveu dos dois aos catorze anos, por o seu pai ser militar na 1.ª Companhia Disciplinar, de 1944 a 1957, tendo chegado a primeiro-sargento desse aquartelamento.  

Graças à Internet, é possível vermos hoje, sem sair de casa, a Quinta de Santa Rita, onde Duran passou a sua infância, feliz e burguesa. A Quinta de Santa Rita fica sita no Pragal (que, ao que parece, também já se chamou Espargal por ser terra fértil em espargos, daí retirando o nome) e tem, informam os documentos, “arquitectura agrícola, rococó. Casa com torreão prismático delimitador da propriedade. Telhado mardeliano, molduras dos vãos e ornatos em estuque rococó.” É um dó, um enorme dó, ver o estado em que se encontra agora, como nos mostra o blogue “Coysas e Loysas sobre Ansião e Outras Terras”: a cobertura em dois andares, lembrando um pagode chinês, a decadência total da Casa de Fresco, a perda irremediável dos seus frescos e marmoreados com grinaldas, outrora lindíssimos. Evitar a perda daquele património, daquela beleza toda, isso, sim, teria sido uma causa revolucionária. 

São bucólicas as recordações que Manuel tem desse tempo, e desse espaço, quando, interno nos Pupilos do Exército, regressava à quinta ao entardecer de sábado, de cacilheiro, para passar o fim-de-semana. Chegado a Cacilhas, tomava a camioneta espelhada até Palença de Cima e, passado o portão da quinta, seguia até à quinta: “as figueiras falavam-me de flores, os figos rebentavam maduros no chão, e alguns secavam na beira dos telhados.” A nora, por seu turno, esperava que a roda subisse pelo rodopio da mula, isto enquanto “as galinhas cacarejavam”, “a vaca mugia” e os “coelhinhos cresciam e roíam.” “Querida tia-avó!”, gritava. “Chegaste, Manolo?” “Cheguei, minha querida madrinha!” “Em Palença de Cima respirava a terra, e aprendi muito. Sol e afagos. Chuva e perfumes de beleza. Era a Natureza sem idade, a minha grande Universidade!” Daí nasceu o seu amor pela terra, o gosto de se sujar de lama, o apreço pelo odor das galinhas, dos coelhos, da mula e das vacas. Anos depois, muito depois, Manuel Duran Clemente, já casado e com dois filhos, viveria na Costa da Caparica, “vislumbre da caminhada de Abril”, e ainda hoje se emociona ao falar das gentes que, nas margens do Tejo, lançavam as redes e “pescavam sementes de Liberdade” (ou, como também diz, “lançavam as redes que pescaram Abril”).  

Em Penamacor, onde viveu dos dois aos 14 anos, o mesmo registo campestre, com reminiscências da planura e da mata, dos berlindes de vidro e de carvalheira, do magusto no Santo Cristo e do madeiro no Largo da Matriz. Pela Páscoa, a romagem à Nossa Mãe do Incenso, vestígio de festa pagã em culto ã mãe-natureza. Na escola primária, devidamente separada por sexos, o futuro revolucionário teve como docentes a professora Benedita Landeiro e o seu marido, José Landeiro, que se reformaram ambos antes de 1950, informa-nos o autor de Elementos para a Compreensão do 25 de Novembro. Na terceira e quarta classes, a mestra foi Luísa Carvalhão, que vivia na Pensão Seguro, da família de António José Seguro (que lindo és, Portugal!), na subida para o quartel, depois da gasolineira e da mercearia do Petronilho, onde compravam os rebuçados com os cromos dos jogadores, das estrelas de cinema e das cadernetas das “raças humanas.”  

Aos onze anos, Manuel foi para os Pupilos do Exército. Ainda hoje recorda as lágrimas que vertia quando tomava a camioneta do Simões ou do Martins de Évora que o levava às estações da Fatela ou de Castelo Branco, onde apanhava o comboio para Lisboa. Nas férias, regressava a casa, reencontrando a água fresquíssima das bilhas de barro de Nisa, com as pedrinhas encastradas, e que se vendiam por quinze tostões nas estações de Sarnadas, das Mouriscas ou de Fratel. 

Se este foram alguns caminhos que fizeram a sua “aprendizagem de Abril”, como lhe chama, o “Pilão”, para onde entrou em 1953, ensinou-lhe as virtudes castrenses da disciplina e da camaradagem. Nessa “comunidade de partilha”, alimentada pelos guisados de carne ou peixe do mestre Cuco ou pelas práticas de autogestão, os rapazes tornavam-se adultos precocemente, adquirindo, desde muito novos, um sentido de dever e de responsabilidade que os iria acompanhar pela vida fora: “tínhamos disciplina, pois tínhamos. Tínhamos regras, que por vezes sentíamos exageradas, por serem iguais para todos, desde os que tinham dez anos até aos que tinham dezoito ou mais, mas assim foi. No entanto, essa disciplina, essas regras, foram eficazes por nos incutirem um quadro de valores, que aprendemos a respeitar.”  Aos 16 anos, foi galardoado, pelo Ministro do Exército, com uma menção honrosa num concurso literário e, além de dizer que foi o primeiro classificado no seu “curso secundário e médio”, a sua sinopse garante, coisa de que não duvidamos, que “sempre se destacou na poesia e na escrita desde a sua escola primária”, cabendo dizer que é autor de, pelo menos, um livro de poemas, Afecto e Consciência, com a chancela das Modocromia Edições, 2023.

Nesse mesmo ano, de resto, e por ocasião do 70.º aniversário da sua entrada no “Pilão”, dedicou-lhe algumas estrofes, como estas:
 
Chegados aqui, talvez bastasse não dizer nada    
Quedarmo-nos mudos, trocar abraços
reprimir ou esconder lágrimas e nostalgias. 
Quantos choros abafados viajaram por estes claustros?
Quantas alegrias esbaforidas aqui tropeçaram,
voando “chanatos”?
Quantas brincadeiras ingénuas ziguezaguearam
 por estas arcadas?
Quantas chuvas e sóis nos fustigaram
e estas paredes nos acolheram?
De cotim, de samarra, de capote, de fato-treino
de “número um” ou de gala, barretinas ao vento, 
desfilámos por estes claustros, estes claustros “Alma Mater”, 
da casa que nos viu nascer. 

Adiante, adiante. Em 1961, Manuel Duran Clemente deu entrada na Academia Militar e, segundo o próprio, destacou-se com brilhos nos estudos e formação física e militar e “já aí colaborou em escritos.” Na Academia, que em 1959 substituíra a antiga Escola do Exército, apanhou já o que chama “processo de democratização”, surgido por obra da reforma empreendida pelo ministro do Exército, Almeida Fernandes, e pelo seu secretário de Estado, Costa Gomes, reforma que alargou o acesso aos cadetes dos três ramos ao ensino superior, rasgando “uma janela de oportunidade para os filhos do Povo” e que, do mesmo passo, passou a ministrar novas disciplinas, com destaque de Sociologia Geral. Graças a isso, esclarece Clemente, os jovens oficiais das Forças Armadas “adquiriram uma compreensão e uma leitura reflexiva da realidade” e foi com essa “dialéctica e questionamento” que partiram destacados para a guerra colonial. 

Ao mesmo tempo, Manuel Duran Clemente ia alargando a sua rede de sociabilidades, que, em meados dos anos 60, e além do “marquês vermelho”, D. Fernando Mascarenhas, contava já com nomes como Nuno Teotónio Pereira, Maria Teresa Horta, Urbano Tavares Rodrigues, Fernando Lopes, Maria João Seixas, Maria João Pires, José Saramago, João Cutileiro, Carlos do Carmo, João Perry, Maria Carrilho, Vitor Wengorovius, Joel Hasse Ferreira, Rogério Paulo, Eduardo Catroga, Pedro Tamen, Carlos Barbeitos e Daciano Costa, entre outros (pelo menos, é este who’s who que Duran Clemente faz questão de elencar na sua sinopse biográfica, em que também nos informa que, na Academia Militar, venceu o concurso literário entre as Academias Militar de Portugal e de Espanha, com o tema nacional “Camões, o Homem, a Obra e a Época”). Foi, aliás, nesse ambiente artístico que conheceu a sua primeira mulher, a pianista Teresa Cortez Pinto Seixas, atrás citada. 

Em 20 de Julho de 1969, quando o Homem chegou à Lua, estava no cine teatro de Nampula a assistir a um concerto de Amália Rodrigues, e foi esta que informou a plateia sobre a proeza de Armstrong e da NASA. 

Antes da revolução, teria ainda dois momentos de glória, incessantemente lembrados. Por um lado, esteve na vigília da Capela do Rato, na viragem do ano de 1972 para 1973, tanto mais que, desde há seis anos, frequentava as missas aí celebradas pelo padre Alberto Neto, que baptizara os seus dois filhos, em 1967 e em 1969, na Igreja do Beco, em Ferreira do Zêzere, devendo acrescentar-se que, a pedido daquele sacerdote, os seus sogros apoiavam, nos seus estudos universitários, vários jovens em dificuldades. Por outro, e mais decisivamente, participou no III Congresso da Oposição Democrática, reunido em Aveiro em Abril de 1973. Nesse congresso, reencontrou José Manuel Tengarrinha, que já conhecia, pois tinha sido soldado em Penamacor, e também os médicos Francisco George e Reymão Pinto e o arquitecto Luís Bruno Soares, além de ter conhecido Urbano Tavares Rodrigues e Maria Barroso. Foi lá que teve, segundo o próprio, um “desabafo premonitório”, ao afirmar, alto e bom som, “Isto não dura mais de um ano!” E, de facto, não durou. 

O 25 de Abril apanha-o na Guiné, para onde foi mobilizado em Julho de 1973, no que garante ter sido um gesto de retaliação por ter participado no Congresso de Aveiro. Em Bissau, cedo se envolveu nas conspirações anti-regime, começando pelos protestos contra o Congresso dos Combatentes do Ultramar e passando, claro está, pela contestação ao célebre diploma, o decreto-lei n.º 353/73, que permitia a entrada de oficiais do Quadro Especial de Operações no Quadro Permanente através de um curso intensivo na Academia Militar. Contudo, e como se apressa a esclarecer, e bem, em causa estava muito mais do que uma simples reivindicação corporativa dos militares do Quadro Permanente, antes um movimento mais vasto, com contornos ideológicos a cada dia mais vincados. A este respeito, um pormenor ilustrativo, contado por Duran Clemente: em deslocação à Guiné, Carlos Matos Gomes levou consigo, escondidos na mala, vários exemplares de um livro acabado de sair, Para uma Democracia Anticapitalista, de Mário Sottomayor Cardia, para distribuir pelos seus camaradas d’armas.  

Na noite de 24 para 25 de Abril, os capitães da Guiné aguardaram ansiosamente o contacto de Lisboa, que não chegou, por a Legião Portuguesa ter conseguido cortar o cabo telefónico que, a partir da Rua de Santa Marta, fazia a ligação com a Guiné. Assim, ao longo do dia foram sabendo do que se passava a através da France-Presse, da Reuters, de outras agências noticiosas. Até Setembro de 1974, Duran Clemente permaneceu na Guiné, onde pugnou pela independência, pertenceu à comissão coordenadora do MFA local e dirigiu o jornal Voz da Guiné, e, logo a seguir, já chegado a Lisboa, integrou a célebre 5.ª Divisão do EMGFA, e aí foi um activíssimo propagandista, integrando, entre muitas outras iniciativas, a equipa redactorial do Boletim do MFA e sendo responsável pelas emissões do MFA na rádio, todas as semanas, e na RTP, de quinze em quinze dias. Após o 11 de Março, foi coordenador-geral do secretariado da Assembleia do MFA e, com frequência, seu porta-voz.

Sobre o 25 de Novembro, mantém a versão de sempre (o que diz em Crónicas de um Insubmisso, de 2024, é aliás um copy/paste integral do que escreveu 50 anos antes, em Elementos para a Compreensão do 25 de Novembro), esclarecendo que não houve qualquer tentativa de tomada de poder pela extrema-esquerda, antes um golpe da direita militar com o beneplácito da CIA e de Frank Carlucci. Refere, ainda assim, que, em Outubro de 1975, reuniu com os responsáveis de várias forças políticas - MDP/CDE, MES, FSP, LUAR, LCI e PRP - para analisar a situação do país e coordenar esforços contra a “reacção.”

O resto é conhecido, mas ainda hoje controvertido, sobretudo entre as extremas direita e esquerda, com a primeira querendo transformar o 25 de Novembro num 25 de Abril de sinal contrário e a segunda tentando fazer esquecer aquela data e o seu real significado. Num balanço sereno e desapaixonado, repete-se o antes dito: o regime democrático foi clemente com Clemente, o qual, nos anos vindouros, se desmultiplicaria num sem-fim de iniciativas e projectos cívicos: foi fundador e vice-presidente da Associação de Amigos Portugal-Guiné/Bissau; fundador e director da Associação dos Amigos da Fundação das Casas de Fronteira e Alorna; fundador da Associação 25 de Abril; fundador e activista do Movimento Cívico “Não Apaguem a Memória”; fundador da Associação Conquistas da Revolução e director da sua revista; membro do colectivo da Presidência do Conselho Português para a Paz e Cooperação. No plano político-partidário, foi, como atrás se disse, presidente da assembleia de freguesia de Santa Catarina na coligação PS/PCP, entre 1999 e 2001, e vereador substituto na câmara municipal de Lisboa, em 2001-2005, igualmente pela coligação PS/PCP, sendo também candidato pela CDU à Assembleia da República, em 1999, e assessor da câmara municipal do Seixal durante longos anos, de 1991 a 2015, além de, no mesmo período, ter administrado diversas empresas municipais desse concelho. 

O regime anterior agraciou-o com o grau de cavaleiro da Ordem Militar de Avis, em 1971, e neste foi condecorado com Grande-Oficial da Ordem da Liberdade, em 2021, pelas mãos do Presidente Marcelo Rebelo de Sousa. Também a Voz do Operário o distinguiu, em 2014, “pelo importante papel no desenvolvimento da Revolução do 25 de Abril, bem como em defesa dos trabalhadores e do povo, pela Dignidade, Liberdade e Democracia.” Nessa agremiação, esteve, aliás, nas cerimónias de “descomemoração” do 25 de Novembro, levadas a cabo em 2000, com a presença de Vasco Gonçalves, Varela Gomes e Mário Tomé. 

Ontem como hoje, as batalhas de Duran Clemente são sobretudo as da pena, para as quais se considera especialmente habilitado e nas quais possui, sem margem para dúvida, um vasto currículo como colaborador da Seara Nova e do Jornal do Fundão, como redactor do semanário Extra, como autor de diversos livros, um dos quais de quadras poéticas, e autor dos blogues “Omiranteal-mirante” e “ProsaPoética MDC.”

Em Abril deste ano, deu uma entrevista à Marinha TV, por ocasião do aniversário da mítica revolta da Marinha Grande. De cravo ao peito, insistiu que o PS fora fundado na Suécia, contra o entrevistador, que alvitrou ter sido antes na Alemanha, e recordou, uma vez mais, os passos dos seus 82 anos de vida, dando de caminho as habituais alfinetadas em Vasco Lourenço (de facto, é um pouco caricato este ter afirmado ao Tal & Qual, de 29/12/2021, “O 25 de Abril sou eu!” e “Fui eu que fiz o 25 de Novembro!”), no “Grupo dos Nove”, em Franco Charais e no “senhor Eanes”, que nem sequer participou no 25 de Abril porque “o padre de Alcains o avisou que era um golpe dos comunistas.” Sobre o 25 de Novembro, qual disco riscado, regressa sempre ao fadinho do “sistema capitalista” e da acção de forças tenebrosas (“tudo isto foi montado pela CIA e pelo Carlucci”. Ainda assim, faz um balanço positivo, muito positivo, da evolução do país nos últimos 50 anos, mesmo dizendo que vivemos hoje numa “democracia confiscada”, reféns do “obscurantismo de 48 anos” e da “falta de cultura.” E, como se não bastasse, somos afectados por “uma máquina internacional complicada onde há muita manipulação e mentira.” 

Tem filhos e netos, considerando que os primeiros talvez estejam um pouco “acomodados”, ao contrário dos mais novos, pese o facto de “andar tudo agarrado aos telemóveis.” Sobre a política e mundo, concluiu, com certo desânimo, que “isto tem de levar uma volta, não sei é como, se soubesse escrevia sobre isso.” Terminou dizendo que tem ganas de viver até aos 120 anos, ventura que não tiveram os três jovens militares mortos na Calçada da Ajuda no dia 25 de Novembro, dois dos Comandos e um da Polícia Militar, e cujos nomes são, a saber: 
José Eduardo Oliveira Coimbra, tenente; 
Joaquim dos Santos Pires, furriel miliciano; 
José Albertino Ascenso Bagagem, aspirante miliciano. 

*Prova de vida (57) faz parte de uma série de perfis 

Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt