Manuel Cargaleiro. Um artista português no mundo
Quem hoje passar na estação de Metro Champs-Elysées-Clémenceau, em Paris, talvez não saiba que o autor do mural que ali se encontra morreu este domingo, aos 97 anos de idade. O mesmo acontecerá decerto noutra estação, bem mais próxima de nós, a do Colégio Militar, em Lisboa, cuja intervenção artística foi toda ela assinada, na década de 1990, por Manuel Cargaleiro.
Dir-se-á (e com razão) que esta pressa distraída é a condição natural das cidades e de quem nelas se move, mas a obra que Cargaleiro nos deixa, aqui como em muitos outros lugares, é um legado para a posterioridade. Em nota de pesar pela morte do artista, o Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa, afirmou: “De Cargaleiro disse Maria Helena Vieira da Silva que possuía a técnica perfeita, a medida certa, as cores raras; e disse Álvaro Siza Vieira que evidenciava uma alegria invulgar no panorama artístico português.”
Manuel Alves Cargaleiro nasceu em 16 de março de 1927, em Chão das Servas, no concelho de Vila Velha de Ródão. Ainda adolescente, faz as primeiras experiências de modelação de barro, na olaria de José Trindade, no Monte da Caparica. Realizou os seus estudos em Lisboa, onde frequentou a Escola Superior de Belas Artes e faz as primeiras exposições, coletivas primeiro e individuais a partir de 1952, data em que se apresenta na Sala de Exposições do Secretariado Nacional de Informação, com texto introdutório de Jorge Barradas. Nesse mesmo ano participa na Terceira Exposição de Cerâmica Moderna. No ano seguinte, expõe pintura pela primeira vez no Salão da Jovem Pintura, na Galeria de Março em Lisboa, e torna-se professor da Escola de Artes Decorativas António Arroio, em Lisboa, onde permanecerá durante quatro anos. É igualmente neste ano que realiza a sua primeira viagem a Paris e conhece Maria Helena Vieira da Silva, Arpad Szènes e Roger Bissière.
Embora também tenha sido um pintor de referência, Cargaleiro nunca deixou de se considerar, antes de mais, um ceramista, como diz numa entrevista para o livro de Gilbert Elascaut, Manuel Cargaleiro: Lisbonne-Paris, 1950-2000: peintures/pinturas: “Comecei a minha vida de artista como ceramista e sou ceramista mesmo quando faço pintura a óleo. Não consigo imaginar uma coisa sem a outra. As minhas duas práticas, claro que se influenciam mutuamente. Não posso esquecer todos os meus conhecimentos sobre a história da faiança ou sobre a decoração mural quando pinto, assim como não esqueço a minha cultura pictórica quando crio em cerâmica. Está tudo muito ligado, e é isso que constitui a minha especificidade. Eu não copio os meus quadros nos azulejos: pinto diretamente sobre a faiança, sem desenho prévio, como numa tela.”
Apesar de um certo reconhecimento nos meios artísticos nacionais, o jovem Cargaleiro tinha sede de horizontes mais amplos. Em 1957, recebeu uma bolsa do governo italiano, por intermédio do Instituto de Alta Cultura que lhe permitiu visitar Itália e estudar a arte da cerâmica em Faença, Roma e Florença. Por essa época, dá a ver o seu trabalho na exposição “Cargaleiro: Cerâmicas”, com texto do escritor Ruben A., na Galeria Alvarez, no Porto.
Pedro Correia / Global Imagens
Em 1959, adquiriu um atelier na Rue des Grands-Augustins 19, em Paris, onde passou a residir. A capital francesa ainda era, nesse pós-guerra, um dos grandes centros artísticos do mundo e Cargaleiro viu-se a conviver regularmente com grandes nomes como Max Ernst, Hans Arp, Serge Poliakoff, Alfred Manessier, Sonia Delaunay, Zao Wou-Ki, Maria Helena Vieira da Silva, Arpad Szènes, Roger Bissière, Natalie Gontcharova e Michel Larionov. Só com o “vizinho” Pablo Picasso, é que nunca se terá atrevido a falar, apesar de se ter cruzado várias vezes com ele, na Brasserie Lipp e no Café de Flore.
Esta convivência nas altas esferas da Arte, nunca o impediram de estender a mão aos portugueses pobres que chegavam a França em busca das oportunidades que lhes faltavam em Portugal. Numa entrevista à Lusa, em 2017, Manuel Cargaleiro recordaria: “Entravam pela França a pé e depois iam juntar-se ao táxi na fronteira, e o táxi trazia-os à minha casa e deixava-os: ‘Está aí um português, procurem-no’. A minha porteira zangava-se toda. Eram sacos de juta lá com a roupita deles. Eles iam lá bater à porta a dizer ‘Eu sei que o senhor pode arranjar não sei quê, não sei quê’. E eu lá os recebia”, lembrou o artista. Encaminhava os compatriotas para a associação do Abbé Glasberg, um padre seu amigo que dirigia o Centro de Orientação Social dos Estrangeiros, dedicado ao acolhimento de refugiados e emigrantes, tendo-lhe também oferecido quadros para vender em exposições cujo dinheiro revertia para ajudar estas pessoas.
Nas décadas seguintes, Cargaleiro participou em inúmeras exposições individuais e coletivas, em diversos países, como França, Brasil, Japão, Alemanha, Itália, Angola, Moçambique, Espanha, Venezuela, Suíça e Bélgica. Em 1980 destacam-se as exposições na Fundação Calouste Gulbenkian em Lisboa, no Centro Cultural Português da Fundação Calouste Gulbenkian, em Paris, e na Maison de la Culture - André Malraux, em Reims. O seu reconhecimento internacional ficaria confirmado, em 1984, com a imposição do título de Grand Officier des Arts et Lettres pelo Governo francês.
Mas Cargaleiro não descansa à sombra dos louros conquistados. Em 1995 executa painéis de azulejos em diversos locais públicos em Portugal, e também para a estação de metro Champs-Élysées -Clemenceau, em Paris. Em 1999, é-lhe atribuído o primeiro prémio do concurso internacional “Viaggio attraverso la Ceramica”, em Vietri sul Mare, na província de Salerno, o que o coloca como grande referência artística em Itália. No ano seguinte é inaugurado o “Museu Cargaleiro” que resulta da parceria entre a Fundação Manuel Cargaleiro e a Câmara Municipal de Castelo Branco, que, em 2011, é ampliado para acolher e expor toda a Coleção da Fundação. Em 2007, por ocasião dos 80 anos do artista e dos 60 anos da sua atividade, seria ainda realizada uma homenagem no Museu Nacional do Azulejo, em Lisboa, com a exposição ao Mestre Manuel Cargaleiro com inauguração da exposição “Manuel Cargaleiro, Sete propostas para a Arquitectura”.
O avançar dos anos nunca lhe limitará a criatividade. Em 2017, realiza a obra que integra o logótipo para a candidatura de Ravello e da Costa de Amalfi, em Itália, a Capital da Cultura 2020. Na sequência desse trabalho, foi distinguido “Magister di Civiltà Amalfitana”. No ano seguinte, participou na exposição coletiva na BRAFA, no espaço da Helene Bailly Gallery, na Tour & Taxis, em Bruxelas. Ainda em 2018, deu início à execução de um painel de azulejos na Fábrica Viúva Lamego, para a ampliação da Estação de Metro do Champs-Élysées-Clemenceau, com acesso ao Grand Palais. Sonhou até ao fim. Na sua nota de pesar, o presidente da República recordou o último encontro com mestre Cargaleiro, ocorrido há poucas semanas: “Continuava a sonhar projetos para o futuro e a acreditar na vida, sempre prestigiando Portugal.”