John Wilkes Booth (Anthony Boyle), o homem que matou o presidente.
John Wilkes Booth (Anthony Boyle), o homem que matou o presidente.Direitos reservados

Manhunt: Lincoln e o nascimento de uma nação

A caça ao homem que se seguiu ao assassinato de Lincoln deu uma série. Manhunt tem perseguição policial com fartura, mas é sobretudo um olhar sobre a encruzilhada americana após o desaparecimento do seu maior presidente. Em estreia na Apple TV+.
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De D.W. Griffith a Steven Spielberg, ao longo do tempo o cinema encenou a morte de Abraham Lincoln com diferentes noções de espetacularidade - no seu filme com Daniel Day-Lewis, Spielberg optou mesmo por nem sequer mostrar o momento do assassinato. Esse que na nova série Manhunt  ocupa todo o primeiro episódio, uma recriação minuciosa do dia 14 de abril de 1865, que termina na fuga do assassino, John Wilkes Booth, passando por cada gesto e respiração nervosa atrás da cortina do camarote onde se encontrava Lincoln, no Teatro Ford, antes do ato abominável e do salto de Booth para o palco. É um momento mais do que conhecido, mas necessário para dar impulso aos restantes seis episódios. Um momento que marcou o início de um clima de instabilidade política nos Estados Unidos, espelhada no sucessor Andrew Johnson e na Reconstrução após a Guerra Civil, que seria o grande plano do presidente Lincoln, voltado particularmente para os direitos e liberdades das vítimas da escravatura. Um plano desamparado pela conjuntura.

Partindo do best-seller de James L. Swanson, Manhunt: The 12-Day Chase For Lincoln’s Killer, esta série criada por Monica Beletsky, em estreia na Apple TV+, tem a ousadia de querer ser mais do que a história da perseguição do assassino. É verdade que não falta aqui procedimento policial, o clássico jogo do gato e do rato, centrado num “polícia” que se dedica ao seu trabalho a tempo inteiro, desafiando os limites da própria saúde - esse polícia é, em rigor, o secretário da Guerra e amigo de Lincoln, Edwin Stanton -, mas chega-se ao final com a sensação de se ter folheado um bom romance sobre o Estado da Nação naqueles dias, a sua encruzilhada histórica e o modo como tudo isto se reflete no nosso presente.

“Numa altura em que há uma eleição bastante importante em Novembro, uma narrativa que fala da fragilidade destas instituições, e de como devem ser mantidas e defendidas, parece relevante”, sublinhou à revista Town & Country Tobias Menzies, o brilhante intérprete de Edwin Stanton.

Na realidade, ele acaba por se tornar o protagonista de Manhunt, aquela categoria de personagem que fixa a elevação humana de qualquer série através de uma postura despojada de sinais de ufania.

De resto, o ator estava interessado no “tipo de criaturas políticas que governaram os EUA naquela época”, como disse ainda recentemente à publicação Radio Times. “Eram homens de grande propósito moral, com uma grande visão sobre o que deveria ou não ser o país que estavam a construir, e acho também que eram homens de argumentação.”

Isso mesmo se testemunha, por exemplo, nas cenas de flashback com que Beletsky intercala a intriga política e a linha de ação principal - várias dessas cenas entre Lincoln e Stanton, em conversas cúmplices sobre a esperança da reunificação -, conferindo um contexto mais largo e alguma bagagem emocional ao presente da série. É uma arriscada opção de montagem, que noutro registo dramático poderia correr mal, enquanto estratégia de “enchumaço” narrativo, mas que aqui permite desacelerar um pouco o ritmo enérgico da perseguição, e inclusive alimentar o potencial do thriller em torno da conspiração confederada.

Edwin Stanton (Tobias Menzies), o amigo de Lincoln que não descansou enquanto não apanhou o assassino.

Quem era John Wilkes Booth?

Do homem que assassinou Abraham Lincoln sabe-se que era um ator relativamente conhecido (não tanto como o pai e o irmão), e um simpatizante dos Confederados, que se opunha à abolição da escravatura nos Estados Unidos. Um perfil repetido em qualquer livro de História, claro, mas sem espessura para existir enquanto personagem.

Será então essa a missão de Anthony Boyle (ator também em destaque noutra produção atual da Apple TV+, Mestres do Ar), que confere a fibra certa de vaidade a esta figura desesperada por reconhecimento, capaz de recusar, na sua fuga, a sugestão do México como destino, apenas porque lá não é visto como um símbolo: “Eu sou um símbolo em Richmond!”

Em vez de uma mente calculista ou de um homem com indícios de sociopatia, o John Wilkes Booth de Manhunt é um idiota vulnerável, que vai definhando a cada passo, à medida que o seu ego e desejo de glória ficam encurralados - Boyle interpreta-o maravilhosamente nesse ponto de equilíbrio entre a pequenez humana, os maus sentimentos e uma certa fragilidade.

Os direitos dos cidadãos negros

Outra personagem que ganha vida neste cenário, alguém em vias de se tornar uma peça essencial na investigação de Stanton, é uma jovem negra, Mary Simms (Lovie Simone), que consegue libertar-se do homem que a escravizou, ao ter acesso a uma propriedade. Ela começa a explorá-la com o irmão... mas esse pedaço de futuro é-lhe retirado de novo, numa questão de dias, em consequência da morte de Lincoln e da sucessão de Andrew Johnson, que implicaram a reversão de medidas já tomadas. Haverá exemplo mais concreto de como o desaparecimento de um político influenciou a vida na América, em especial, a dos afro-americanos?

Mais uma vez, notamos que Edwin Stanton/Tobias Menzies surge em Manhunt como o herói sem fanfarra, a prolongar, após a morte de Lincoln, uma expressão de integridade inabalável. E é talvez o único que olha para personagens como Mary Simms com olhos de ver, inspirado pela tal esperança que cultivou nas conversas com o seu presidente. Que isso seja matéria dramatúrgica nesta série, não é coisa pouca. E para quem possa achar que cheira demasiado a “lição de História”, a boa notícia é que a agitação do enredo policial nunca deixa Manhunt ceder à insipidez ilustrativa. Está tudo muito vivo neste quadro de 12 dias concentrados em sete episódios.

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