Maestro Victorino D’Almeida: “Se as pessoas começarem a ser drasticamente mais exigentes, os direitos acontecem. E a cultura é um direito!”
Paulo Alexandrino/Global Imagens

Maestro Victorino D’Almeida: “Se as pessoas começarem a ser drasticamente mais exigentes, os direitos acontecem. E a cultura é um direito!”

Uma conversa disruptiva a condizer com o entrevistado. O sempre revolucionário maestro António Victorino de Almeida partilha as suas preocupações com o futuro que aí vem.
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Dias depois de ter sido ovacionado de pé por uma plateia jovem no Coliseu dos Recreios, onde recebeu a Distinção pela sua Carreira pelos Prémios Play, fomos ao encontro do maestro António Victorino de Almeida em Campolide, onde vive. Num café de bairro onde cada vez mais as conversas entre vizinhos estão a ser substituídas pelos olhares solitários para os smartphones, Victorino de Almeida, que recentemente completou 84 anos, fala ao DN do que pensa sobre a sociedade portuguesa, a nova identidade de Lisboa, na qual não se revê, e um possível futuro com uma sociedade extremamente dividida.

O que é que significou receber este Prémio Carreira atribuído pelos Play?
Foi uma grande surpresa, não estava nada à espera. Estes prémios são recentes e confesso que nem sabia que existiam. Mas gostei da forma como o organizaram e como decorreu o evento, foi muito bom e nada chato.

Quando recebe uma distinção pelo seu trabalho que tipo de sentimento lhe proporciona?
Já recebi uns prémios. [Risos]. Recordo-me de um que recebi na Áustria e outro em França. Um estava à espera e outro, quando fui feito Cavaleiro da República Francesa, deixou-me espantado. A minha mulher era francesa, mas eu nunca vivi em França. Tenho as minhas filhas e as minhas netas por lá, mas nunca lá vivi.

Esteve mais de 20 anos na Áustria… 
Sim. Fui para Viena com 21 anos e depois voltei para Lisboa para dar 20 anos de vida ao meu pai. A morte da minha mãe foi muito difícil para ele e, como as minhas filhas estavam em Paris, decidi vir. Mas costumo dizer que não foi um tiro no pé, mas sim um tiro na cabeça. [Risos]. Digo isto porque as coisas em Portugal estão muito desordenadas, está-se a construir uma sociedade que esqueceu que tem de saber falar e escrever bem… Não respeito nada o Acordo Ortográfico, por exemplo. É uma vigarice que deu a ganhar milhões para fazer dicionários naquela língua que não existe. Escrevo como escrevia!

Regressando aos Prémios Play, na cerimónia no Coliseu apresentaram um vídeo com imagens suas em criança, em jovem, no início da carreira, desses primeiros anos em Viena. Como se sente quando o fazem olhar para trás?
Gosto muito do meu passado e tive uma infância boa. Cresci ali na zona do Campo Grande e foi algo que me marcou muito. Vivia no fim da Avenida da República e naquela altura só existiam hortas e campos por ali, brincava com a miudagem que lá andava, os chamados pés descalços, mas como que seguravam a identidade de Lisboa. Hoje em dia não gosto de Lisboa, não a reconheço e não consigo encontrar a sua identidade. 

Aliás, numa entrevista ao DN no ano passado, dizia que considerava que Lisboa não é uma capital como outras que existem na Europa, sobretudo pela falta de oferta cultural.
Disse e mantenho. Há um grande atraso e há uma grande diferença comparada com outras cidades. Há poucos teatros em Lisboa e nem sequer funcionam todos os dias. Em Viena, por exemplo, há vários concertos de música clássica por dia, sem falar dos outros géneros, como o rock e o jazz, que têm concertos diários.

E porque é que isso acontece em Portugal?
Não sei… uma capital que tem um concerto de música clássica por semana, como há na Gulbenkian, só é comparável a uma aldeia em França, na Áustria ou na Alemanha. E os nossos museus são uma desgraça. É complicado, porque ao mesmo tempo as pessoas de Lisboa são muito amáveis e simpáticas, mas a cidade, em si, e as suas estruturas são de uma tremenda hostilidade. E claro, não sou um fanático e nem preciso de ir todos os dias ao teatro, mas nos 27 anos que vivi em Viena, por vezes estava em casa e se me apetecesse sair para ver uma peça tinha muita escolha. Mas há outra coisa que me faz confusão é que a maioria das vezes que vou aos cafés em Lisboa vejo as pessoas a olhar para o telemóvel, mas porquê? Parece que tudo piorou. Por outro lado, em Portugal as pessoas querem ver coisas. E na música, nunca tivemos tantos e tão bons músicos.

Na cerimónia dos Play quando lhe pediram para se sentar ao piano e tocar uma música, escolheu um excerto da banda sonora que fez para o filme Capitães de Abril (2000). Quis passar alguma mensagem? 
Sim. Achei que era de lembrar que existem valores que o 25 de Abril criou e que estão cá e à disposição das pessoas, não é preciso ir para uma bicha tirar uma senha e ter direito a eles. [Risos]. Se as pessoas começarem a ser drasticamente mais exigentes, os direitos acontecem. E a cultura é um direito! 

Estava à espera de outra coisa, na área da cultura, 50 anos depois da Revolução. 
Esperávamos todos!

E o que se pode fazer para não se cair numa certa desilusão com o 25 de Abril?
Nunca houve tantos músicos tão bons como agora, mas não há estruturas de organização que possam dar vazão à qualidade extrema que cá temos, e isto sem falar nas dezenas que já foram para o estrangeiro. São mesmo de uma qualidade extrema e isso não existia antes do 25 de Abril. Mas é uma luta horrível para se conseguir fazer coisas. Temos músicos para fazer quatro ou cinco orquestras boas, mas faltam estruturas. Uma capital europeia tem dois, três concertos sinfónicos por dia. É assim, lamento. Nas capitais na Europa há ópera todos os dias e, para quem quiser ouvir jazz, há 20 casas a funcionar diariamente.

Mas não haverá culpa por, nas últimas décadas, ter-se criado uma certa erudição quase intangível na música clássica, e que eventualmente tenha afastado algumas pessoas?
Acho que não. As pessoas quando conhecem, recebem. E percebem porque se chegou àquele ponto. E claro, depois têm o seu direito de gostar ou não. Dizer mal ou bem é um direito, já ignorar não é o. Espanto-me que este ano ainda não se tenha feito a 9.ª Sinfonia de Beethoven [Risos], porque se insiste sempre nas mesmas coisas…

Tem compositores preferidos?
Não especialmente. Tem dias. [Risos].

É um defensor de CD para ouvir música…
Tenho 16 mil CD em casa. O vinil nunca prestou, foi bom porque era o melhor que havia na altura. E de repente vejo pessoas, às centenas, a deitar fora os seus CD e os leitores de CD… e hoje é difícil comprar um CD. Há cinco meses estive em Viena e confesso que ia de coração apertado a pensar que o mundo está a ficar mesmo doido a achar que esta porcaria do vinil é que é. Mas fui a uma loja onde costumava ir e vi que tem milhares de CD. Enquanto por cá, lojas como a FNAC são capazes de ter uns cinco CD à venda, o que é uma vergonha.

E hoje ainda há a desmaterialização da música que temos nos telemóveis e computadores.
Acho que é uma golpada para estupidificar as pessoas. É o mesmo que darem livros que só têm pedaços de capítulos. Porque quando um compositor faz uma peça não o faz por acaso. Uma valsa pode demorar dois minutos, OK, mas uma peça sinfónica só fica completa quando é ouvida na íntegra. O compositor escreveu quatro andamentos e não quatro peças, e não foi por acaso. Em termos de qualidade de som, o que temos nos telemóveis serve para os auscultadores, mas se colocarmos e ouvirmos numa sala não é a mesma coisa. Aliás, já fui espreitar as redes sociais e vi que  dizem que se pode ouvir milhões de músicas no telemóvel, só que não há milhões de músicas, há para aí um milhão. Desde os compositores da idade média aos compositores do século XXI se tiverem 100 Opus é muito. Para chegar aos milhões de músicas…; mas verifico que as pessoas só ouvem pedaços de músicas. Por que razão colocam pedaços de uma peça que dura 30 minutos, o que é que se ganha com isso? Se eu fizer o resumo de Os Irmãos Karamazov, as pessoas ficam na mesma, não percebem a obra. Se eu fizer um resumo das improvisações do Keith Jarret, ficam na mesma, e quem escuta assim, só trechos, está a ser enganado. Uma quadra do António Aleixo é uma quadra, não pode ser resumida. E preocupa-me que se ande a espalhar a confusão na cabeça das pessoas. Apesar de não querer entrar em teorias da conspiração, parece-me que a velha expressão “dividir para reinar” está a ser substituída por imbecilizar para reinar. Dizem que é prático, mas as pessoas ficam espantadas com as coisas práticas… o culto do prático já foi arrasado pelo Jacques Tati. A vida não é prática, a vida é uma luta, aliás começa logo como uma luta. Qualquer pessoa que esteja na rua, rico e pobre, tem direito a chegar a tudo, mas tem de querer fazê-lo. Portanto acho que se está a assistir a uma subversão da lógica interna que comanda o universo cultural.  Estão a convencer as pessoas de que, pelo facto de lerem uma banalidade à mesa do café, no telemóvel, no comboio ou sentado na retrete, tem acesso à cultura. [Riso]. E isso não é verdade. 

Como se pode contrariar isso?
Com uma revolução! Tem de ser sempre a revolução. Há revoluções que são calmas, há umas que são como uma serpente e outras como um rinoceronte, que dão cabo de muito. Aos 84 anos acho que é simpático da minha parte preocupar-me com o futuro, podia estar a marimbar-me. Mas tenho muito medo que se estejam a criar condições para uma futura sociedade de castas, de brâmanes e párias. Temos jovens incríveis e em todas as áreas, médicos, cientistas, músicos, escritores. Mas ao lado deles temos “patetinhas” que são aconselhados a ir ver tudo à internet. É como um supermercado em que lá está tudo, é útil e prático, lá está, mas o prático não é qualitativo. E, sinceramente, aflige pensar numa sociedade de brâmanes e párias, os muito bons que existem hoje - e que na minha geração não existiam - não vão querer dividir com os párias que não têm cultura, que não leem e que nem sabem escrever. E isso seria um retrocesso monstruoso na sociedade ocidental. Isso, para mim, é muito preocupante e tenho muito medo que dentro de 30 anos exista uma classe intelectualmente superior que não liga à ralé. Porque são muito bons, quando comparados com quem lê um romance em quatro páginas no telemóvel, ou porque ouviram um pedaço de sinfonia e pensam que é assim. E acho que se devia começar a lutar contra isso.

filipe.gil@dn.pt

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