Leandro Karnal: Portugal é o que é porque Angola, Moçambique, Guiné e Brasil existiram
Leandro Karnal, de 60 anos, é considerado um dos maiores pensadores contemporâneos do Brasil. Formado em História e com décadas de experiência como docente, já publicou mais de 10 livros e possui mais de cinco milhões de seguidores nas redes sociais, além de ser presença constante na TV brasileira. Os temas de que costuma falar vão desde assuntos ligados à formação em História, até sentimentos quotidianos, como a solidão, a fenómenos como a Inteligência Artificial e a religião.
Karnal acaba de lançar, no Brasil, a obra Preconceito: uma história, escrita juntamente com Luiz Estevam. Os escritores analisam as raízes profundas do preconceito e propõem “um convite para a desconstrução de aprendizados culturais que perpetuam o sofrimento de toda a pessoa entendida como diferente”. O livro ainda não está à venda na versão impressa em Portugal. Mas o país foi o primeiro escolhido para a apresentação internacional da peça/palestra Prazer, Karnal, que terá a primeira apresentação a 23 de janeiro, no Porto.
Depois do sucesso da digressão pelo Brasil em 2023, porquê a escolha de Portugal para ser o primeiro palco internacional deste trabalho?
Existe um produtor que entrou em contacto comigo e também o professor Mário Cortella, amigo meu, esteve em Portugal recentemente e gostou muito da experiência, da expansão de universos. Já fiz palestras em Lisboa há alguns anos, mas na vertente académica. Acho que hoje o momento é especial, porque a mensagem de reflexão, de tolerância, de convivência viva com a diversidade tem mais sentido do que tinha há alguns anos, e eu quero enfrentar esse desafio.
Fala em tolerância, é impossível não relacionar com a xenofobia cada vez mais evidente em Portugal.
É um fenómeno histórico. No fim do século XIX, quando começa a chamada grande imigração para o Brasil, existiu uma massa de portugueses que foram para o Brasil. O Rio de Janeiro tornou-se uma imensa cidade portuguesa. Existe até referência na literatura, como no livro O Cortiço. A imprensa brasileira foi muito xenófoba com a Carmen Miranda, por exemplo. A biografia do premiado Rui Castro exemplifica bem isso. Então, quando cresce um grupo, quando cresce a imigração, existe sempre o medo da perda da identidade e o medo da perda do controle. É o que foi chamado, nas Américas, de perigo amarelo para imigração oriental, a praga turca para imigração de áreas controladas pelo Império Otomano, ou a imigração judaica, que foi alvo de muita desconfiança no Brasil e na Europa em geral. É natural existir esse medo. O que eu gosto de ressalvar para as pessoas é que vivemos mudanças que são enormes e atingem todas as sociedades globalizadas. Nós temos é que aprender a tirar proveito dessa diversidade, não devemos ter medo, e isso é um desafio para todo mundo. Naturalmente, é necessário o máximo de tolerância, tanto para o imigrante quanto para aquele que recebe o imigrante.
Um dos preconceitos mais recorrentes é o da língua. Há quem acredite que o português do Brasil não é correto, que é inferior. O que pensa sobre isso?
Todas as colónias têm uma língua mais antiga do que as suas metrópoles. Os portugueses, tal como os espanhóis, são fruto de muitas invasões e de uma presença multirracial. Um português típico tem muitas origens e influências e isso faz parte da tradição, é isso que nos dá riqueza. Identificar uma pureza inventada, criada, é identificar que somos diversos na origem. Desde o fim do Estado Novo que Portugal vive uma interação com o mundo. São dores da modernidade, dores de um novo mundo do qual nós temos que abrir mão de um imaginário do passado. Nós brasileiros temos que ter um imenso respeito pela tradição da língua e de todos os nossos conceitos, até o fato de que é preciso olhar o mundo além de toda a nossa aldeia. As coisas transformam-se constantemente. As palavras japonesas que entraram no português pela presença pioneira de Portugal no arquipélago, as palavras portuguesas que entraram no cantonês séculos antes da Inglaterra conquistar Hong Kong com a Guerra do Ópio, as palavras africanas que os traficantes de escravos trouxeram de Angola para o Brasil dão hoje a cor e o significado. Temos, inclusive, um português que incorpora mais erros porque temos mais imigrantes. Pense na massa de italianos que o Brasil recebeu. Em italiano não se faz plural com a letra “s”, faz -se com “i”. No Estado em que moro há muitos anos, São Paulo, o plural é um fenómeno raro.
Parece haver um movimento de regresso ao passado e saudosista, que seduz até mesmo os jovens hoje.
Os portugueses são donos de uma nação antiga, foram o centro do mundo na época das grandes navegações, foi o primeiro império moderno a formar-se, e têm uma contribuição enorme para o mundo. Nós brasileiros temos muito a aprender com os portugueses, mas não há como reinventar o mundo com essa melancolia de um passado que não existe. Essa melancolia está em muitos lugares, como nos Estados Unidos e no Reino Unido, com o Brexit. Aqui na Alemanha, onde estou , discutíamos esse assunto com alemães, essa ideia de que quase toda a mão-de-obra não é de alemães. Em três dias aqui na Alemanha não fui servido à mesa por nenhum alemão. Esse mundo saudosista do passado é um mundo que não se relaciona e que vive fechado na sua identidade. É preciso lembrar que também é um mundo sem emprego, é um mundo rural, é um mundo não-dinâmico economicamente.
Em Portugal acontece o mesmo?
A pergunta é se os alemães ou os portugueses querem servir à mesa? Querem trabalhar na construção civil? Não é um debate fácil. Eu entendo o medo dos portugueses, entendo a dor portuguesa, porque muitas vezes o imigrante quer reconstruir o seu país noutro e não se adaptar. Isso aconteceu com irlandeses e italianos nos Estados Unidos, no Brasil também com italianos e portugueses. Por exemplo, a criação de sociedades, beneficências, grémios literários, mostra que as pessoas querem, de alguma forma, manter essa identidade. Isso só muda na segunda ou terceira geração ou depois. Sobre o idioma, a unificação ortográfica é bastante aceite no Brasil e em Portugal encontra muita resistência, que teve de abrir mão de mais características. Mas você não perde identidade quando distingue “fato” de “facto”, assim como o português de Portugal não perdeu identidade com o “ph” de farmácia. Você não perde identidade por imaginar que a identidade seja o congelamento de um momento passado, isso é ingenuidade cultural. Nós não somos menos brasileiros quando deixámos de escrever filosofia com “ph”. Os gregos de hoje têm extrema dificuldade em ler o grego de Platão, e não lhes foram impostos outras línguas ou ondas migratórias. Em todos os lugares da Europa existe esse debate,que mostra que quem não quiser dialogar a convivência das culturas terá como resultado a violência e a exclusão como vemos no Médio Oriente.
Outra questão é sobre o nascimento de filhos de estrangeiros.
É outro fenómeno mundial. As pessoas têm menos filhos hoje em dia. No Brasil será um problema, mas na Europa já é, onde morre mais gente do que nasce. Esse envelhecimento populacional representa um novo medo e acontece de várias formas no mundo inteiro. Nos Estados Unidos, o cidadão protestante branco tem menos filhos do que o imigrante latino e isso causa um choque muito grande. Vamos voltar ao passado? Mas qual passado? O passado em que os índios dominavam os Estados Unidos ou o Brasil? Qual passado nós queremos voltar? Portugal é a soma de uma história brilhante, e que se remontarmos a Viriato, como primeira resistência a um invasor estrangeiro, temos que pensar que os Romanos um dia foram tratados como invasores, tal como os Visigodos e os Arianos. Essa reclamação é o grito de cada geração. Há séculos que é o velho da Praia do Restelo, na obra de Camões que fica dizendo “não vão”. Sempre vai ter um velho no Restelo e não está errado, porque Portugal transformou-se profundamente com as navegações, isso afetou o mundo inteiro e o mundo é feito de interações. Por que no Brasil temos tantos pés de manga e jacas nas ruas que vieram da Índia e da Indonésia? Foram trazidos pelos portugueses. O Brasil é o que é porque de alguma forma Portugal existiu e, sei que é mais perigoso dizer, mas Portugal é o que é porque Angola, Moçambique, Guiné e Brasil existiram. O Brasil de hoje é o que é porque tivemos colonização, presença e transformação portuguesa. O Rio de Janeiro já foi a capital do império português. Não dá para mudar isso. A história não se detém por vontade de uma pessoa ou um grupo. Não adianta querer reconstruir o que passou. Esse tipo de reflexão é a preservação de um espaço imaginário que, na verdade, nunca existiu. É uma pena porque juntos somos muito mais ricos e dinâmicos.
O que o público poderá esperar das suas apresentações em Portugal?
Espero que, além dos brasileiros, tenhamos muitos irmãos portugueses participando das apresentações, cujo nome é Prazer, Karnal. É uma tentativa mais teatral de fazer uma palestra minha. Eu faço palestras há 20 anos, mas essa tem mais recursos teatrais. Eu vou representar, vou usar recursos cénicos e uma série de recursos que normalmente uma palestra não tem. É também muito difícil de definir, se é palestra, se é um teatro, se é uma aula. Acho que é um esforço que eu faço, enquanto professor, de dar acesso ao conhecimento de uma forma leve, densa e que aprendam rindo, algo que é bem importante para mim.
Parece haver um movimento de regresso ao passado e saudosista, que seduz até mesmo os jovens hoje.
Os portugueses são donos de uma nação antiga, foram o centro do mundo na época das grandes navegações, foi o primeiro império moderno a formar-se, e têm uma contribuição enorme para o mundo. Nós brasileiros temos muito a aprender com os portugueses, mas não há como reinventar o mundo com essa melancolia de um passado que não existe. Essa melancolia está em muitos lugares, como nos Estados Unidos e no Reino Unido, com o Brexit. Aqui na Alemanha, onde estou , discutíamos esse assunto com alemães, essa ideia de que quase toda a mão-de-obra não é de alemães. Em três dias aqui na Alemanha não fui servido à mesa por nenhum alemão. Esse mundo saudosista do passado é um mundo que não se relaciona e que vive fechado na sua identidade. É preciso lembrar que também é um mundo sem emprego, é um mundo rural, é um mundo não-dinâmico economicamente.
Em Portugal acontece o mesmo?
A pergunta é se os alemães ou os portugueses querem servir à mesa? Querem trabalhar na construção civil? Não é um debate fácil. Eu entendo o medo dos portugueses, entendo a dor portuguesa, porque muitas vezes o imigrante quer reconstruir o seu país noutro e não se adaptar. Isso aconteceu com irlandeses e italianos nos Estados Unidos, no Brasil também com italianos e portugueses. Por exemplo, a criação de sociedades, beneficências, grémios literários, mostra que as pessoas querem, de alguma forma, manter essa identidade. Isso só muda na segunda ou terceira geração ou depois. Sobre o idioma, a unificação ortográfica é bastante aceite no Brasil e em Portugal encontra muita resistência, que teve de abrir mão de mais características. Mas você não perde identidade quando distingue “fato” de “facto”, assim como o português de Portugal não perdeu identidade com o “ph” de farmácia. Você não perde identidade por imaginar que a identidade seja o congelamento de um momento passado, isso é ingenuidade cultural. Nós não somos menos brasileiros quando deixámos de escrever filosofia com “ph”. Os gregos de hoje têm extrema dificuldade em ler o grego de Platão, e não lhes foram impostos outras línguas ou ondas migratórias. Em todos os lugares da Europa existe esse debate,que mostra que quem não quiser dialogar a convivência das culturas terá como resultado a violência e a exclusão como vemos no Médio Oriente.
Outra questão é sobre o nascimento de filhos de estrangeiros.
É outro fenómeno mundial. As pessoas têm menos filhos hoje em dia. No Brasil será um problema, mas na Europa já é, onde morre mais gente do que nasce. Esse envelhecimento populacional representa um novo medo e acontece de várias formas no mundo inteiro. Nos Estados Unidos, o cidadão protestante branco tem menos filhos do que o imigrante latino e isso causa um choque muito grande. Vamos voltar ao passado? Mas qual passado? O passado em que os índios dominavam os Estados Unidos ou o Brasil? Qual passado nós queremos voltar? Portugal é a soma de uma história brilhante, e que se remontarmos a Viriato, como primeira resistência a um invasor estrangeiro, temos que pensar que os Romanos um dia foram tratados como invasores, tal como os Visigodos e os Arianos. Essa reclamação é o grito de cada geração. Há séculos que é o velho da Praia do Restelo, na obra de Camões que fica dizendo “não vão”. Sempre vai ter um velho no Restelo e não está errado, porque Portugal transformou-se profundamente com as navegações, isso afetou o mundo inteiro e o mundo é feito de interações. Por que no Brasil temos tantos pés de manga e jacas nas ruas que vieram da Índia e da Indonésia? Foram trazidos pelos portugueses. O Brasil é o que é porque de alguma forma Portugal existiu e, sei que é mais perigoso dizer, mas Portugal é o que é porque Angola, Moçambique, Guiné e Brasil existiram. O Brasil de hoje é o que é porque tivemos colonização, presença e transformação portuguesa. O Rio de Janeiro já foi a capital do império português. Não dá para mudar isso. A história não se detém por vontade de uma pessoa ou um grupo. Não adianta querer reconstruir o que passou. Esse tipo de reflexão é a preservação de um espaço imaginário que, na verdade, nunca existiu. É uma pena porque juntos somos muito mais ricos e dinâmicos.
O que o público poderá esperar das suas apresentações em Portugal?
Espero que, além dos brasileiros, tenhamos muitos irmãos portugueses participando das apresentações, cujo nome é Prazer, Karnal. É uma tentativa mais teatral de fazer uma palestra minha. Eu faço palestras há 20 anos, mas essa tem mais recursos teatrais. Eu vou representar, vou usar recursos cénicos e uma série de recursos que normalmente uma palestra não tem. É também muito difícil de definir, se é palestra, se é um teatro, se é uma aula. Acho que é um esforço que eu faço, enquanto professor, de dar acesso ao conhecimento de uma forma leve, densa e que aprendam rindo, algo que é bem importante para mim.