João van Zeller: “Angola crescia 8, 9, 10% ao ano. Os americanos deixaram-se levar por isso”
Nesta conversa como DN, e tendo em conta o tanto que 'Johnny Man' relata, o foco foi a relação de Angola com os EUA, de onde eram os investidores no Banco Inter Unido, onde trabalhou em Luanda entre 1973 e 1975.
No final da sua segunda passagem por Angola, e com o processo de descolonização que o leva a sair de lá em 1975, teve que refazer a vida. Acabou por encontrar um trabalho em Inglaterra, mas os Estados Unidos, que visitou, eram uma opção?
Não deixavam de ser uma opção. Eu visitei os Estados Unidos pela primeira vez em 1975. Não tinha uma cultura americanizada, apenas alguma cultura literária dos grandes autores norte-americanos, os policiais em especial, como Raymond Chandler. Também gostava do John dos Passos com a trilogia USA. Era de origem portuguesa, foi um dos que mais me influenciou. E o Francis Scott Fitzgerald também.
Quando vai à América nesse período a pensar numa opção de vida americana, a sua atração pela América, pois nunca havia estado lá, era via a cultura americana e sobretudo através da literatura?
Não, nem isso. Eu fui em trabalho, para uma reunião com os acionistas norte-americanos do meu banco em Angola. Fui visitar outros bancos noutras capitais, que eram com quem o Banco Inter Unido em Luanda tinha relações. E fui a Chicago, a Los Angeles, que era onde estavam os dois nossos principais correspondentes, e visitei outros bancos em Nova Iorque. Em Chicago, o presidente do banco quis que eu pensasse trabalhar no First National Bank of Chicago, se as coisas ficassem mal em Angola. Durante oito dias estive a ver o que é que se passava dentro daquelas portas. No final concluí que era velho para a América.
Estava nos 30 e poucos anos. Porque é que se sentiu velho para a América?
Tinha 33 anos. Senti-me velho porque não estava preparado ... Nós, portugueses, temos um relacionamento suave uns com os outros. Somos em geral afáveis e, portanto, a afabilidade no meu ambiente de trabalho português era a típica. Se fazíamos uma coisa bem, davam-nos pancadinhas nas costas, se fazíamos mal, não diziam nada, apenas aconselhavam. E eu percebi ao fim de poucos dias que na América ou se faziam as coisas bem e era-se premiado, ou faziam-se as coisas mal e era-se despedido. Foi a primeira experiência concreta que tive nisso. Mas começara a ter contacto através da visita dos administradores americanos do banco a Luanda, entre 73 e 75. Já então, apesar da gestão pertencer ao acionista português, que era o Banco Espírito Santo, o acionista americano Citibank, influenciava completamente a filosofia de gestão. E, portanto, eu tinha o reporting, aquelas coisas todas que eram muito formais e muito exigentes. Ao fim de três ou quatro reuniões, durante as visitas deles a Angola, percebi logo que ninguém me ia dar pancadinhas das costas.
Fala no seu livro também de uma figura luso-americana muito curiosa, que é o Edmund Dinis, o procurador que teve nas mãos o caso Ted Kennedy, do acidente de Chappaquiddick. Como é que o conheceu?
Foi em 1967, por ocasião das grandes cheias que houve em Lisboa, que mataram mais de 700 pessoas. Eu estudava na Faculdade de Direito, mas estava a trabalhar no SNI, que era o Ministério da Cultura e da Informação naquela época, na secção da imprensa estrangeira. Fui encarregado de receber Edmund Dinis, que veio a Portugal para entregar um donativo muito substancial para as famílias das vítimas. Era uma angariação que tinha sido feita pela comunidade portuguesa do estado de Massachusetts, para entregar à Cruz Vermelha. E fiquei muito amigo dele. Ele era açoriano, de São Miguel, e tinha ido aos três anos para os Estados Unidos, mas conservava afinidades culturais fortíssimas com Portugal. E quando fui para Angola pela primeira vez, como Chefe de Serviços de Imprensa Rádio e Televisão, em 1968, sugeri ao Governador-Geral para pedir ao ministro do Ultramar que convidasse Edmund Dinis, que nessa altura se ia candidatar ao Senado, para visitar Angola. Percorri meia Angola com ele, fui até à Huíla, fui até Moçâmedes, fui até lá abaixo à Baia dos Tigres.
E ele falava português?
Falava português, com acento açoriano, muito engraçado, acento açoriano com acento americano.
Acabou por ficar famoso por investigar um escândalo da família Kennedy.
Sim, foi um caso a envolver Ted Kennedy, o incidente de Chappaquiddick. Até foi à capa da Time. Ele era district attorney daquela região dos Estados Unidos, procurador-geral, se quiser, ou acusador público, e o Ted Kennedy, irmão mais novo do John Kennedy, teve uma inclinação séria por uma secretária, foram passear uma noite e, na exaltação do namoro no carro, ao atravessarem uma ponte, mergulharam num lago e ela afogou-se.
E a investigação dele desafiou a influência dos Kennedy e foi isso que lhe deu ainda mais prestígio?
O Ted Kennedy, arguido, e o Edmund Dinis, a investigar tudo, estavam nos jornais todos os dias, mas os Kennedy encarregaram-se de liquidar a carreira política dele. E, portanto, teve de voltar a ser advogado, empresário de uma companhia de seguros, tinha um hotel, tinha uma estação de rádio de língua portuguesa em New Bedford, hoje bem mais importante. No Massachusetts, tinha muita influência e usou-a para divulgar uma série de portugueses muito pouco conhecidos, o Miguel Corte-Real, por exemplo. Também foi quem deu a conhecer que Peter Francisco, herói da Guerra da Independência, era Pedro Francisco, português. Conseguiu erguer monumentos a esses e outros. Ninguém aqui em Portugal tinha alguma vez ouvido falar do Peter Francisco e pouco ou nada dos outros. O Edmund Dinis, que visitei em 1975, ainda me desafiou para entrar na administração das suas empresas, mas não aceitei.
Regressando a Angola, que é o tema grande deste seu livro, dedicado aos últimos anos de Portugal em África, este Banco Inter Unido que foi dirigir em Luanda era um investimento dos americanos. Um investimento que acontece num período em que, apesar de haver guerra, Angola está a ter um grande crescimento económico. Os americanos percebem que em Angola pode dar-se a independência, como acabou por acontecer em novembro de 1975?
Durante muitos anos, debati-me com essa questão, porque na minha carreira subsequente, a partir da altura em que fui trabalhar em Londres, fiquei responsável para a América Latina de um grande banco inglês, e as operações que se faziam nesse banco obrigavam à avaliação de risco soberano. Para a Argentina, para a Bolívia, para o Chile, para o Brasil, etc. Aprendi que uma das coisas fundamentais era a análise do risco político. O risco político era avaliado do resultado obtido na análise da contabilidade pública do país, ou seja, eu tinha que várias vezes falar com o ministro das Finanças, Banco Central, etc,. estudar em detalhe e questionar as contas públicas, perguntar e verificar como é que estava a correr a balança de pagamentos, a balança comercial, e efetivamente a única coisa que me interessava saber, tanto me fazia se eram de direita ou de esquerda, era se conseguiam pagar dentro do prazo. Portanto, se a economia era capaz de gerar recursos, e se aqueles projetos em concreto de centenas de milhões de dólares, podiam gerar resultados para liquidar aquilo dentro dos prazos.
Suspeita que os americanos não fizeram essa avaliação de risco em relação a Angola?
Tive o cuidado de telefonar para o Rio, em 2023, ao último ministro dos Negócios Estrangeiros do Marcelo Caetano, o Rui Patrício, que morreu há pouco tempo, e perguntei-lhe porque é que os americanos tinham investido aquele dinheiro todo em 1972-1973 em Angola, uma vez que a situação política em Lisboa já estava muito fragilizada, e, apesar do crescimento económico, e da guerra estar ganha em Angola, a política internacional não acompanhava os interesses de Portugal. E ele disse-me, pura e simplesmente, que eles confiavam em nós, e é capaz de ser uma razão importante.
Era então Richard Nixon o presidente dos Estados Unidos, figura muito mais simpática para Portugal do que tinha sido Kennedy antes, ou Lyndon Johnson.
Sim, o John Kennedy apoiou os movimentos de libertação, mas depois o governo norte-americano deixou de dar fundos à FNLA e ao MPLA. Com a UNITA foi muito mais difícil. Já depois da independência, quando havia guerra civil em Angola, Jonas Savimbi acabou por ser recebido com honras de chefe de Estado. Anos 80. Era o Ronald Reagan presidente.
Considera que os americanos, portanto, achavam que de alguma forma Portugal ia conseguir manter a situação colonial ou controlar a evolução política de Angola?
Confiavam devido ao comportamento da economia angolana, porque não era só o petróleo, sabe? Houve um ministro que foi dizer ao Salazar que tinha sido descoberto petróleo em Angola, muito petróleo, e o Salazar terá respondido, “só nos faltava mais essa”. É um país muito rico. Os recursos naturais do setor primário, designadamente os minerais, são colossais. Os que estavam explorados eram o ferro, era o manganés, o petróleo e os diamantes. Os setores da indústria e dos serviços experimentavam também um progresso colossal. Em 1975, o parque empresarial lá existente, era equivalente, aos valores de hoje, a cerca de 450 mil milhões de euros, segundo um estudo recente. Ou seja, o crescimento da economia angolana devia ser o maior da África naquele tempo, devia andar à volta dos 8, 9, 10% ao ano, isso é algo extraordinário. E, portanto, aquilo era de tal maneira surpreendente que eu creio que os americanos se deixaram levar por isso.
Mas há um momento em que Portugal, já depois da Revolução de 1974, começa a perder o controlo de Angola, conta isso no livro, e a independência vai avançar. E percebe-se que, no contexto da Guerra Fria, os soviéticos vão ter vantagem. E mesmo assim, os americanos não apostam forte em Angola, mesmo apoiando a UNITA.
Como lhe disse, durante muitos anos, eu perguntei-me sempre como é que aquilo tinha podido acontecer, o investimento americano primeiro e a perda de influência americana depois. Conheci o Henry Kissinger pessoalmente em 1992, e, aliás, tive uma conversa com ele sobre isso. Para mim, havia dois fatores: Portugal não podia ser, e ia ser, um dos players no mundo da OPEP, não podia, não tinha hipótese. É uma interpretação minha, era inaceitável para os outros players na OPEP. A outra é que o Kissinger, que chefiava a política externa do Nixon e depois do Gerald Ford, pura e simplesmente não se interessava por África. Durante muitos anos, eu pensei que tinha havido um Tratado de Tordesilhas entre os americanos e os soviéticos. A Rússia, naquela altura, era a União Soviética, 100% comunista. A partir de 1975, há uma coisa curiosa. A África fica comunizada pelas influências orientais, da Rússia e da China. Só agora se fala da China em África, mas há mais de 50 anos que a China está a investir em África, e em grande. E, portanto, eu achava que era isso. Que era uma divisão negociada. Afinal, a América Latina teve, a partir de 1975, uns anos de tranquilidade nas relações com os Estados Unidos. E a África passou a ter uma relação muito próxima com a União Soviética. A única explicação é que o Kissinger não se interessava. Ele dizia diz que África era o continente adormecido. O continente adormecido não lhe interessava. Ponto final.
Kissinger morreu em 2023, já centenário, e este ano assinalam-se 50 anos da independência de Angola, mas o que é curioso é que, por exemplo, os americanos demoraram até 1993, já depois das eleições, para reconhecer o governo do MPLA, e Joe Biden esteve em dezembro em Angola, naquela que foi a primeira visita de um presidente americano. Angola, pense o que pensar o agora presidente Donald Trump sobre África, volta a atrair as atenções dos Estados Unidos?
Foi uma visita importantíssima. Foi uma coisa de uma importância colossal porque o atual presidente de Angola, João Lourenço, deve ter pensado que valia a pena reestimular as relações amigáveis com os EUA. Alguma terminologia até mudou com esta visita, porque eu nunca tinha ouvido falar no corredor do Lobito, que afinal é o caminho de ferro de Benguela, que foi inaugurado no princípio do século XX e era de uma empresa que tinha sede em Londres, e o Estado português tomou uma participação. Aliás, o antigo ministro dos Negócios Estrangeiros de Salazar, o Franco Nogueira, foi administrador da Benguela Railways.
Essa alteração da nomenclatura quer dizer o quê?
O nome é outro, mas aquilo já funcionava assim antes, porque aquela ferrovia sempre foi um corredor permitindo a saída dos minerais da Zâmbia e do Congo. São quase dois mil quilómetros até ao Atlântico, a maior parte dentro de Angola. Eu fiz todo esse percurso de comboio. Andei dois dias e tal. As carruagens de passageiros, naquele tempo, eram muito confortáveis. O Lobito já então era um porto muito importante por causa do escoamento dos recursos minerais dos países sem acesso ao mar. Então, acho que a visita de Biden a Angola teve a ver com esta luta com a China pelos recursos minerais mundiais, e por isso há uma nova relação dos Estados Unidos com Angola. De facto, esta visita é uma viragem radical naquilo que eu comecei por ver em Angola. De início, não estavam virados para os norte-americanos. É claro que tinham a proximidade das empresas de petróleo. Não se esqueça da Texaco, da Cabinda de Gulf Oil. As companhias de petróleo pouco sofreram durante a guerra, colonial e civil. Fizeram acordos monetários com as forças em confronto para os deixarem explorar o petróleo tranquilamente. Nunca tiveram problemas sérios. Ao passo que uma empresa de serviços como é um banco, obviamente, é impensável. Aqueles empresas americanas continuaram em Angola sempre a explorar o petróleo. Os bancos, exceto o de Angola, foram riscados do mapa.
JOHNNY MAN
João van Zeller
Edições Afrontamento
534 páginas