Num estudo sobre a construção da masculinidade portuguesa nos alvores do século XX, o historiador Paulo Guinote analisou, um a um, os retratos dos nossos deputados publicados nas páginas da Ilustração Portuguesa. Concluiu que 95% dos parlamentares eleitos em 1906 usavam bigode e que, em resultado disso, no estertor da Monarquia só existiam seis caras limpas em São Bento, três das quais de clérigos e outra de um deputado visivelmente jovem. A República iria mais longe: em 1911, numa amostra de 180 rostos políticos, 178 tinham bigode (99%), com 40 deputados com barba completa (cerca de 24%) e outros 12 com mosca ou com pêra..Na III República, caberia a António Guterres, Marcelo Rebelo de Sousa e José Manuel Torres Couto protagonizarem a transição histórica da pilosidade revolucionária para um escanhoado mais moderado e centrista, no fundo mais europeu, "Bruxelas style". Desse trio, um chegaria a secretário-geral da ONU, o outro a Presidente da República e o terceiro, enfim, foi co-fundador e dirigente da União Geral de Trabalhadores, além de trabalhador-estudante na empresa têxtil Intercorte, soldado na guerra de África (onde dirigiu o jornal ZOE), funcionário da empresa de seguros Império, parlamentar pelo PS em três legislaturas (círculos de Lisboa, Leiria e Setúbal), vereador da câmara municipal de Almada e deputado ao Parlamento Europeu durante a década doirada de 1989-1999. Aí participou em reuniões em Bruxelas e no Luxemburgo, mas também, informa a sua nota biográfica, no Togo, no Gabão, na Costa do Marfim, na Namíbia, nas Ilhas Maurícias, no Botswana, na Papua Nova Guiné, no Uganda e em Singapura. Mais esclarece aquela nota que, além do português, Torres Couto fala fluentemente inglês, francês, alemão, italiano e espanhol, que dirigiu uma revista chamada Novos Desafios e que estudou, e cita-se, Ciência Política, Economia Política, História das Ideias Políticas, Relações Internacionais, Instituições Políticas e Direito Constitucional, Direito Europeu e do Trabalho, Sociologia das Organizações e Relações Internacionais, tudo com maiúsculas, com Cursos e Estágios de Alta Direcção e Formação Avançada, também com maiúsculas, feitos na Dinamarca, no Reino Unido, na Suécia, no Japão e na China. Das distinções recebidas, e além do Mérito Industrial (em 1981, das mãos de Eanes), destaque para o emblema "Dedicação", em ouro, por 50 anos de associado do Sport Lisboa e Benfica..Não é fácil datar com precisão o momento em que José Manuel Torres Couto largou o seu inconfundível bigode-mariachi (mantendo, todavia, o cabelito armado de cantor romântico), mas tudo indicia que o abandono daquele look Trio Odemira coincidiu com a sua passagem do sindicalismo para a política, onde não foi feliz. Imagens dos arquivos da RTP mostram que ainda usava pêlo ao lábio em 1988, ou seja, numa fase já adiantada da história da democracia portuguesa, muito depois da nossa adesão à Europa. Porém, revistas sociais dos anos 1990, onde então era presença assídua, mostram-no já de cara glabra e alegre, mal fazendo adivinhar que, por essa altura, Torres Couto e mais outros 34 arguidos tinham sido acusados pelo Ministério Público do crime de fraude na obtenção de subsídio, entre outros delitos. O "processo UGT", com mais de 200 volumes de papel impresso, arrastar-se-ia durante décadas na langorosa justiça portuguesa e culminaria em 2007 com a absolvição de todos os acusados, tendo o tribunal considerado que o único crime que poderia ser imputado a um dos arguidos o de burla na forma tentada, já se encontrava devidamente prescrito. Couto, que, entretanto, fixara residência ao trópico, não assistiu à leitura da sentença por se encontrar no Brasil, país onde ainda hoje passa parte do ano; mas, em declarações à Lusa, proferidas do lado de lá do Atlântico, falou de "uma cruz que carreguei durante 20 anos" e lamentou ter a democracia portuguesa, nessas duas décadas, prescindido dos serviços: "sou arguido desde 1993 e desde então não me convidaram para nada.".Em 2009, o programa "Perdidos e Achados" da SIC perguntava "Que é feito de Torres Couto?" e dizia, já nessa altura, que, após uma "carreira fulgurante", se encontrava desaparecido há mais de 20 anos. Não era totalmente verdade: é certo que, na sequência do processo UGT, o antigo sindicalista-estrela entrou em estado vegetativo, semicomatoso, mas ainda assim nunca se absteve de pronunciar-se sobre os destinos da República, quase sempre em tom crítico e desalentado. Em 2013, foi até candidato do PS à presidência da câmara de Alcácer do Sal, mas, apesar do fragor da campanha, "com toda a competência de uma vida de experiência feita", perderia para o rival da CDU, que assim recuperou a edilidade para os comunistas. Em 2021, numa inflamada carta ao Correio da Manhã, disse estar na "finitude da minha vida", um manifesto e sombrio exagero, pois tem só 76 anos; de caminho, deu uma alfinetada a Mário Soares, considerando que a tese da corrupção na UGT fora apoiada "pelo inquilino do Palácio de Belém, à época, que repudiava, veementemente, os acordos por mim celebrados com os governos de Cavaco Silva". Em 2021, escreveria outra missiva fogosa, desta feita ao primeiro-ministro António Costa, na qual ameaçou demitir-se do PS caso a ministra Van Dunen não lhe pedisse desculpas por ter enaltecido a experiência do procurador José Guerra na investigação do processo da UGT; contudo, e que se saiba, nem a ministra apresentou desculpas a Couto nem este se demitiu do PS. Mais recentemente, em 2022, rompendo com a elegância que sempre fora seu timbre, classificou a liderança de Carlos Silva, seu sucessor na UGT, como "um desastre" e disse que a saída de Silva da direcção da UGT era um elementar acto de "eugenismo sindical" (foi em 2017, no mandato de Carlos Silva, que a UGT chegou a acordo com a Comissão Europeia para pagar 7.500 euros/mês, durante 25 anos, para saldar a dívida de 1,5 milhões de euros a Bruxelas por uso indevido de fundos europeus, o mais antigo processo existente nos arquivos da Comissão; para saldar tal dívida, os sindicatos associados da UGT acederam a duplicar a sua quotização para aquela central sindical)..Numa entrevista de vida concedida em 2011 ao programa "Grandes Negócios", da Económico TV, Torres Couto disse ter nascido no seio de uma família conservadora da "classe média-alta" da Foz do Douro e afirmou ter sido sempre uma "criança destemida e com capacidade de liderança". Datou a sua "primeira intervenção pública" numa etapa da vida muito precoce: o discurso que fez com apenas 9 anitos nas cerimónias da comunhão solene na Sé do Porto, a instâncias do bispo da Invicta. Com 11 primaveras, assistiu com sua mãe à carga policial sobre os apoiantes de Delgado, na Baixa do Porto, o que lhe provocou uma "indignação tremenda" e foi "um solavanco, um murro no estômago que muito pequenino eu senti, que criou em mim uma grande apetência pelas questões políticas e pelas questões da justiça e da injustiça". Terá sido então, parece, que despertou para a cidadania e para o serviço ao próximo, não sem antes ter aberto a primeira discoteca da capital do Norte com o dinheiro que o pai lhe dera para ir estudar Direito para a Alemanha. "Sou um homem muito determinado, sempre fui um lutador por natureza", disse à jornalista da Económico TV, acrescentando filosoficamente, com a mão no queixo e o olhar pousado no tecto do estúdio, "nós na vida não conseguimos nada sem lutar, nós se queremos alguma coisa temos de nos esforçar, temos de lutar, temos de nos empenhar." De seguida, flagelou o acordo de concertação social de 2011 e o papel nele tido pelo "engenheiro João Proença", seu sucessor na UGT, que, na sua "ingenuidade", não exigiu ao governo a aprovação, naquele convénio, de um vigoroso pacote de anti-corrupção, de outro de combate à fraude e à evasão fiscal e de outro ainda de criminalização do enriquecimento ilícito, tudo coisas que, a bem da transparência e da ética, ele impusera, in illo tempore, ao recalcitrante executivo de Cavaco Silva. Nessa entrevista, saudaria ainda, e muito efusivamente, a entrada do país na CEE, dizendo que com ela se abriu "o maior período de crescimento de Portugal na sua História.".Ironia das ironias: quando se preparava a adesão de Portugal às Comunidades e ao intervir numa Conferência sobre a Integração Europeia ao lado de outro prodígio piloso, Luís Kalidás Barreto, da CGTP, José Manuel Torres Couto afirmou que a pertença do país à CEE iria ser "um garrote ao pescoço dos trabalhadores portugueses". Para os trabalhadores, não terá sido; para ele, foi-o sem dúvida. No Linkedin apresenta-se hoje como "Superviser/Consultor de Relações Internacionais - New York e Fortaleza", mas, assevera aquela rede, não tem publicado recentemente..*Prova de vida (4) faz parte de uma série de perfis de verão.Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.