João Gil: “Vêm aí tempos de rock’n’roll”
Tivesse demorado a Revolução um pouco mais e é bem possível que um rapaz da Covilhã, transplantado, com a família, para Lisboa no princípio da adolescência, fosse enviado para a guerra, que então se travava nos matos da Guiné-Bissau. Talvez tivesse voltado para os seus, talvez não, talvez regressasse quebrado física e psicologicamente por uma guerra alimentada pela teimosia cega de um regime em autocombustão. Na História, já se sabe, não há “ses”, mas, na vida do músico João Gil (é dele que se trata), como na de cada um de nós, pode haver a perceção muito clara do que poderia ter sido, se um acontecimento muito maior não alterasse as vidas de todos.
Meio século depois da Revolução de Abril, em pleno ano de comemorações, o músico João Gil vai ao baú de memórias desse “dia levantado e principal” (para usar a expressão feliz de José Saramago, em Levantado do Chão) e evoca a exaltação de se descobrir livre. Mas se, em Só Se Salva o Amor (assim se chama o novo disco), reflete sobre os muitos ganhos pessoais e cívicos da Democracia, também fala sobre a sua fragilidade e sobre o que poderia ter corrido melhor neste meio século.
Sem hesitações, João Gil assume, pois, que este é um disco com causas, concebido com a simplicidade aparente da música de intervenção dos tempos imediatamente anteriores à Revolução e, depois, no PREC - Processo Revolucionário em Curso.
Todas as letras são da autoria de João Gil, à exceção de Ao Deus Dará, de Paulo Ribeiro, de Não Era a Vida Que Eu Queria, de Maria do Rosário Pedreira, e de A Constituição, que cita o preâmbulo da Constituição da República Portuguesa.
As músicas foram todas compostas pelo autor, exceto A Constituição, com música de Artur Costa. Conta ainda, no videoclip de O Dia Mais Bonito, com fotografias de época cedidas pelo fotojornalista Rui Ochôa.
O cantautor está de regresso à estrada, agora com estes temas a juntarem-se a um cancioneiro de décadas, composto para bandas como Trovante, Rio Grande, Ala dos Namorados ou a Filarmónica do Gil, ou para intérpretes a solo, incluindo ele próprio.
Neste disco, lançado no cinquentenário do 25 de Abril, evoca as memórias de uma certa música de intervenção, muito popular na época, mas até que ponto é que também resgata as suas memórias pessoais?
O que quis fazer foi perceber como é que os mesmos olhos veem o país e o mundo com uma distância temporal de 50 anos. Quando o 25 de Abril aconteceu, eu já era ativista e o que me movia era o medo de ir parar à Guerra Colonial. Estava à beira de ser mobilizado, provavelmente para a Guiné-Bissau, que era para onde o pessoal estava a ir, porque era onde as coisas estavam mais complicadas. Mas este álbum não é só sobre Portugal.
Paulo Spranger/Global Imagens
Como é que se traduzia esse ativismo?
Quando eu era miúdo, assaltei várias vezes o meu liceu - o D. Pedro V, em Lisboa -, que tinha uma rede enorme, cortávamo-la, munidos de alicate e spray e escrevíamos: “Abaixo a Guerra Colonial”e “Abaixo o fascismo”. No outro dia, entravamos como se nada fosse, mas secretamente orgulhosos da obra feita. Lembro-me que, nessas ações, participavam também outros alunos como o Miguel Portas ou o António Maria Guimarães. Mas hoje chego ao meu liceu e tenho o ímpeto de proteger a rede. Não posso deixar que ninguém a corte. Tenho de pôr toda a vigilância democrática a proteger aquilo. O exemplo de França mostra-nos que os democratas perceberam onde é que está a rede. O grande inimigo comum é a extrema-direita e os protofascistas.
Evoca depois o 25 de Abril, a que dá o nome de O Dia Mais Bonito?
Sim porque é a data fulcral. É o dia que contém todos os outros. Termino o disco com um tema sobre a Constituição, que cita expressamente o preâmbulo. E, de repente, o disco fica com um ar completamente revolucionário. Claro que sinto que é estranho, em 2024, um artista vir a terreiro defender o Parlamento, a polícia, o Serviço Nacional de Saúde, a escola pública, os partidos, a Justiça. Sinto que essa é a rede que nos afasta da barbárie. Quando os inimigos da Democracia tentam tomar a polícia por dentro, temos de a proteger. O mesmo acontece na Justiça. Devo ter medo ao falar destes temas? Acho que não. Não podemos voltar a ter medo. Recordo que estávamos ainda no tempo da Joana Marques Vidal quando fui tocar com o coro da Procuradoria-Geral da República e adorei a experiência. No final, dei os parabéns à procuradora porque quando abriram as portas, tudo aquilo se encheu de luz. A instituição abriu-se aos cidadãos. É essa luz que tem de entrar. Assino todos os abaixo-assinados que forem precisos para que a Justiça não seja instrumentalizada. E se houver um risco de alguém manipular o Ministério Público, nós vamos todos para a rua. E é para defender a Democracia.
Agora a pergunta inevitável: Onde é que estava no 25 de Abril?
Tinha 17 anos, mais um aninho e estaria a embarcar para a guerra. Às sete e tal dessa manhã recebi uma chamada, em que me diziam que havia qualquer coisa, mas ainda não se percebia de que lado era. Na segunda chamada, perto das 8.00 horas, já era para irmos para a rua. Quando chego ao Chiado, ainda éramos muito poucos e andávamos a correr de um lado para o outro para parecermos muitos. Passei o dia a correr e as ruas, que eram largas, tornaram-se pequenas. E tudo mudou. Éramos um país atrasado, muito triste, deprimido, cheio de medo.. Agora Portugal é um país acolhedor e aberto, se calhar para compensar o que correu mal.
Paulo Spranger/Global Imagens
Neste disco, fala de várias coisas que não foram resolvidas em 50 anos de Democracia como a pobreza e as enormes desigualdades sociais. Sente que estes são os calcanhares de Aquiles da Democracia?
Há outras coisas também. Este disco fala também de mentalidades bacocas que ainda persistem entre nós, como o facto de precisarmos de validação dos estrangeiros para nos valorizarmos. É algo que demonstra até que ponto continuamos periféricos. Mas o pior é a pobreza e a injustiça social. Falo dela na canção Não Era a Vida Que Eu Queria, com uma belíssima letra da Maria do Rosário Pedreira e música do Paulo Ribeiro, em que damos voz a um sem-abrigo. O que nos colocou uma série de problemas: com que registo é que cantas? Não pode ser com euforia, mas também não pode ser com lamechice. Há que conferir dignidade àquela voz. Acabou por ser um exercício de procura de bom senso e equilíbrio estético.
Este disco também aborda questões internacionais e há até um tema dedicado ao Papa Francisco. Porquê?
Dedico um tema ao Papa e dou umas ferroadas sobre o conflito israelo-árabe. Mas não me armo em paternalista, não dou pistas nem soluções, apenas alerto para realidades que são muito más. Aqui há uns tempos, estava a fazer o desmame do Twitter, o que considero ser uma grande vitória pessoal, porque aquilo é completamente tóxico... Quando estava neste processo, li um post em que se dizia que o Papa era cobarde. Aquilo teve um enorme impacto em mim. Sinto no Papa alguém que é mais do que um líder religioso.
É crente?
Não sou praticante (apesar da educação católica que tive, até ajudei à missa), mas acredito num Deus que não é o regulador da vida íntima de cada um. Da Igreja Católica há que reter as coisas boas, como a solidariedade social que, apesar de tudo, vai prestando por esse mundo fora. Claro que não me esqueço dos abusos e de todas as coisas muito negativas que têm acontecido no seio da Igreja, mas o mundo não é a preto e branco. O Papa mostrou que falar de paz é um ato revolucionário. E isso é fundamental nos tempos que vivemos. Gerou-se uma cassete no mundo inteiro que nos leva a aceitar a ideia de que, em breve, estaremos a mandar os nossos filhos para a guerra. Estamos num formigueiro que caminha para a morte. Esse tweet sobre o Papa alarmou-me muito sobre a manipulação da opinião pública promovida através das redes sociais.
A música tem também esse papel de contrariar essa manipulação? Os artistas assumem-no?
Os artistas vão ter de acordar mais tarde ou mais cedo. Eu diria que estão um bocadinho anestesiados, na sua lufa-lufa pela sobrevivência. Quando dei ao disco este título de Só Se Salva o Amor, fi-lo porque estou preocupado com uma série de coisas. Um abraço especial é algo único na Humanidade, seja esse abraço dado a outra pessoa, seja às grandes causas do mundo. Não é o Make Love, Not War, Take 2, não é um neo-hippismo qualquer. Neste momento, há uma inércia fácil de manipular. Mas sou um otimista: eu diria que vêm aí tempos de rock’n’ roll. Estamos a precisar de acordar, senão seremos acordados.
Em termos musicais, este é um disco minimalista?
Reduzi deliberadamente os artefactos e o espetro sonoro, dando toda a importância à palavra para recuperar a estética dos anos pré e pós-25 de Abril. Tenho o Pedro Vaz, que toca viola, o Pedro Pires, que toca e canta, e o Rui Costa, que tocou comigo na Filarmónica do Gil, e é um excelente músico. É muito fixe cantar aquelas canções a vozes. Sinto que estou a voltar a ser o puto que era, a sentir-me desconhecido artisticamente.
Desconhecido, como assim?
Ando a divulgar o meu cancioneiro, as coisas que fui compondo ao longo destes anos todos. Há dias fui a Torres Vedras e quando toquei temas como O Postal dos Correios vi o espanto das pessoas: “Então, mas foi este gajo que fez esta música?” E outros temas, que, afinal, fazem parte das vidas delas. Isto dá-me imensa pica. Tenho uma pequena banda, que faz o espetáculo a vozes, o que me permite recuperar muitas das minhas referências da juventude como os Crosby, Stills, Nash & Young. Sinto que é um ciclo que se completa e isso é maravilhoso.