Jacques Rancière. A arte como forma de fazer política
Nascido na Argélia em 1940, o filósofo francês Jacques Rancière é autor de muitos livros em que podemos encontrar, com pedagógica regularidade, uma interrogação em permanente renovação: qual a dimensão política da arte? Ou talvez, melhor: como é que o trabalho artístico é também uma maneira de fazer política? Reencontramos os seus ecos numa nova antologia de seis textos com um título tão preciso quanto sugestivo: As Viagens da Arte (tradução de Pedro Elói Duarte, ed. Orfeu Negro, 2025).
São todos eles textos resultantes de conferências, com “alterações de importância diversa”, uma delas realizada no Centro Cultural de Belém. Curiosamente, a primeira dessas conferências foi concebida como uma exposição, não para um auditório físico, mas para ser filmada para o YouTube, por solicitação de outro filósofo, Jean-Clet Martin (está disponível na sua conta, com a duração de 25 minutos). Aí encontramos uma hipótese que vai contaminar todos os capítulos do livro: a de que a perfeição ideal da arte envolve um convívio permanente com a sua própria imperfeição.
Não se trata, entenda-se, de avaliar o modo como a arte “reproduz” o que quer que seja, mas sim de reconhecer o seu poder de produzir um novo entendimento do mundo — utopicamente, um mundo novo. A esse propósito, noutra conferência, Rancière recorda o papel dos artistas nos primeiros anos da Revolução Soviética e as tensões que viveram, alguns deles pagando muito caro a ousadia de seguir um desejo criativo com tanto de artístico como de político.
Está assim em jogo um labirinto de ideias, perguntas e tragédias que atravessa todo o século XX. Esquematizando, poderemos recordar um ponto analisado com particular detalhe: o modo como a estética oficial soviética favoreceu o princípio de uma arte “ilustrativa”, ao serviço de determinadas diretrizes políticas, enquanto os artistas “fabricavam” a sua arte como, ela própria, um acontecimento político.
Exemplo esclarecedor avançado por Rancière provém de um dos clássicos absolutos do grande cinema soviético: O Homem da Câmara de Filmar (1929), de Dziga Vertov. Oficialmente, Vertov filmava as proezas concretizadas pelos políticos que dirigiam a revolução; em boa verdade, o seu propósito era menos esquemático e muito mais ambicioso na sua elaboração narrativa. Como escreve Rancière, estava-se perante um “trabalho da arte” que se quer tornar “indistinto das atividades da vida ordinária”.
Citando as muitas e muito inovativas (verdadeiramente revolucionárias) sobreposições de imagens aplicadas por Vertov, Rancière sublinha que a prática do cineasta surge como atividade semelhante a “todas as que são quotidianamente exercidas nas ruas, nas fábricas ou nos escritórios”. Daí as reações das autoridades soviéticas contra aquilo que classificavam como o “formalismo” de Vertov, acusando-o de praticar “arte pela arte”. Ora, estava a acontecer algo bem diferente. A saber: “a vontade de suprimir toda a diferença entre as formas de arte e as formas ordinárias da actividade social”.
Recordando um pouco da época (1920/30) em que tudo isso estava em movimento, Rancière cita também a experiência surrealista em França e a procura de “uma nova beleza, anunciadora de uma vida nova”. Daí a sua vibração contemporânea: “Escreviam assim um novo episódio das múltiplas aventuras da finalidade de que a arte ainda hoje se alimenta”.
Estética & política
Escusado será dizer que tudo isto adquire um significado especial num espaço social e mediático em que, para alguns dos atuais modelos de (des)informação, as práticas artísticas são assunto secundário, tendencialmente dispensável. A conferência proferida no CCB (18 março 2022), última no alinhamento do livro, como que faz o balanço de todas as questões anteriores, aliás a partir de um título que reflecte, desde logo, essa ideia de “contaminação” do que poderia parecer separado e separável: “Arte e política: a travessia das fronteiras”.
Rancière parte da observação de duas performances públicas (uma na Bienal de Veneza, em 2011, outra em Bogotá, em 2016). São acontecimentos encenados e “coisas” vividas que nos levam a reformular o próprio conceito de estética como algo que não se esgota na arte ou na beleza, significando “o que diz respeito à experiência sensível, à capacidade de construir ou de viver alguma forma desta experiência ligando percepções, associando-as a afetos, dando-lhes um significado”. Daí a conclusão: “A política, nesse sentido, foi sempre uma questão estética”. Ou ainda, em palavras cristalinas: “A política não é o exercício do poder em geral, mas sim o exercício do poder ligado à capacidade de perceber e de formular o que é comum a uma comunidade”.