Sergey Ponomarev/The New York Times
Sergey Ponomarev/The New York TimesSergey Ponomarev/The New York Times

“Istambul ainda tem a vibração cosmopolita de que desfrutou ao longo da sua história”

Este 'Istambul: A História de Três Cidades', da britânica Bettany Hughes, oferece uma perspetiva sobre a evolução ao longo dos milénios de uma urbe fascinante, situada entre a Europa e a Ásia, e que conheceu múltiplos nomes, até se ter tornado a bela vitrina da moderna Turquia.
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Santa Sofia, ou Haghia Sophia, é o grande símbolo de Istambul pela sua beleza, que combina diversas arquiteturas, ou pelo seu sincretismo religioso? 
Haghia Sophia é o meu edifício favorito no mundo. Dedicada à noção de sabedoria - Sophia significa uma compreensão divina e emocional e prática do mundo -, representa a beleza da empatia e do conhecimento, não apenas da cultura, mas das culturas. Haghia Sophia é impressionante pela sua ambição, sofisticação e audacidade. A engenharia para manter essa enorme cúpula metros acima do solo, que os contemporâneos diziam parecer que estava “suspensa por uma corrente de ouro do céu”, é notável. Tijolos da Ilha de Rodes foram utilizados para a sua beleza. Pinturas, pilares, arquitraves e tetos foram revestidos de prata. O mármore usado veio de todo o Império Bizantino. Dizia-se que as suas colunas interiores foram trazidas do Templo de Ártemis, em Éfeso (uma das Sete Maravilhas do Mundo Antigo), mas, mesmo não o sendo, são impressionantes, belamente esculpidas em pedra cinzenta e mostrando as iniciais entrelaçadas de Justiniano e Teodora. Haghia Sophia também é importante para todos nós e para a nossa compreensão da cultura global, porque foi reconstruída tanto sob a influência de uma mulher medieval (a imperatriz Teodora) que viveu há 1500 anos, como do imperador Justiniano. Durante 1000 anos foi o maior edifício cristão do mundo. 

Ainda resta algo de Bizâncio nesta gigantesca cidade turca do século XXI?
Sim, podem encontrar-se vestígios de Bizâncio em todo o centro histórico da cidade; nas muralhas (internas e externas) construídas por Teodósio, algumas das quais ainda existem, e em enormes sistemas de cisternas subterrâneas para coleta e armazenamento de água. As Cisternas da Basílica foram recentemente restauradas. A Porta Dourada - originalmente o terminal oriental da estrada romana, a Via Egnatia - também ainda pode ser visitada. O traçado da cidade bizantina ainda domina a Istambul moderna. Uma das principais ruas comerciais do centro histórico em torno de Sultanahmet era originalmente uma via processional para os imperadores bizantinos. Existem também belos complexos de igrejas bizantinas, como a Igreja de São Salvador, em Cora (Kariye Camii), e ruínas como a de São João de Estúdio, que ainda podem ser visitadas. Fico sempre impressionada com o traçado medieval da cidade - pequenas ruas sinuosas que sobem e descem pelas sete colinas de Istambul. Sim, esta é uma metrópole moderna e vasta do século XXI (que se estende por mais de 160 quilómetros), mas também ainda é uma cidade cujas características antigas e medievais podem ser facilmente percebidas. 

A localização entre dois continentes deu valor geopolítico à cidade desde o início ou é algo da época contemporânea? 
Istambul/Constantinopla/Bizâncio foram todas cidades criadas, em parte, pela sua posição crítica abrangendo dois continentes. Istambul é uma cidade que olha tanto para o Leste como para o Oeste, tanto para o Norte como para o Sul. A quantidade de batalhas travadas nas águas (e terras) em redor da cidade revela a verdade histórica de que esta é uma metrópole cobiçada em todos os pontos do horizonte. O Canal do Bósforo, que agora divide a Ásia e a Europa, só foi criado por volta de 5500 a.C., quando houve um enorme aumento no nível do mar (ali cerca de 70 metros em 300 dias). Debaixo das águas do Bósforo existe um rio submerso de água doce. A formação deste canal - porque significava que os povoados nas suas costas tinham acesso ao que hoje é a Ucrânia e a Rússia a Norte, mas também a África, a Sul - carimbou o potencial para todas as urbes que existiram onde Istambul se encontra agora se tornarem uma cidade de classe mundial.

Istambul: A História de três cidades
Bettany Hughes
Crítica
724 páginas
29 euros

O que atraiu Constantino a fazer da cidade, no século IV, a sua capital imperial?
Constantino, o Grande, tendo lutado para chegar ao poder contra os imperadores romanos seus rivais, queria um novo começo, queria capitalizar o poder que lhe vinha do Oriente, por isso escolheu Bizâncio em vez de Roma (ou mesmo Tróia - que Constantino também visitou, com o objetivo de reconstruir uma cidade ali) como seu quartel-general urbano. É uma cidade que possui ancoradouros e portos fantásticos, bem como acesso a dois dos maiores mares do nosso planeta - o Mar Negro e o Mediterrâneo. De forma prática e estratégica, está muito bem posicionada. Constantino sitiou o seu arqui-inimigo Licínio, quando este ocupava Bizâncio, e ao renomear Bizâncio de Constantinopla rebatizou um centro urbano já muito bem-sucedido. Os cronistas contam que Constantino foi levado a tomar essa decisão pela mão de Deus e que um arcanjo caminhou à frente do general romano enquanto este traçava o seu novo plano da cidade. É interessante que a influência de Constantino significou que Constantinopla seria o centro de um novo Império, liderado pelos cristãos, dado que o Cristianismo, claro, começou como uma religião oriental.

A beleza da cidade realmente surpreendeu os Cruzados, vindos da Europa Ocidental? 
Os Cruzados ficaram impressionados com a cidade de Constantinopla. Muitos dos que vieram - especialmente na Quarta Cruzada -  não sabiam ler, nem escrever, por isso esta teria parecido um lugar de notável sofisticação. É trágico que Constantinopla (uma cidade cristã) tenha sido atacada, ocupada e devastada por cavaleiros cruzados em 1204.

A conquista otomana em 1453 transformou a cidade, reforçando o seu cosmopolitismo?
Os otomanos eram uma cultura itinerante, uma sociedade da estrada - por isso a sua perspectiva era a da necessidade de abraçar o cosmopolitismo. De certa forma, os otomanos mantiveram muitas das características da Bizâncio antiga e medieval - mas é claro que houve muitas mudanças fundamentais. Incluindo a religião da cidade. Mas o sistema Millett, instituído sob controlo otomano, permitiu algumas liberdades e direitos a comunidades não-turcas e não-muçulmanas dentro da cidade.

Qual a razão para os otomanos manterem o nome oficial de Constantinopla, embora já se falasse de Istambul? 
Esta era uma cidade conhecida por muitos nomes por muitas pessoas. A própria Istambul quase certamente vem da frase “Eis Ten Polin”, que é “na cidade” em grego. O nome chinês da cidade, por exemplo, era Fulin (uma corruptela de Polin). “Islam-bol” significa que o Islão domina - e pode ser uma segunda raiz do nome da cidade moderna. A forma turca de Stanbulin (uma versão de “Eis Tin Polin”), Stambol ou Stamboul também foi usada. Durante séculos, viajantes e residentes também usaram a versão árabe de Constantinopla - al-Qustantinyya - Konstantiniyye em turco otomano.

Como reagiu Istambul à decisão de Mustafa Kemal Atarturk de fazer de Ancara a capital da República da Turquia?
É revelador que, mesmo quando a capital se mudou para Ancara - e, portanto, as embaixadas baseadas na Turquia se mudaram para muitas centenas de quilómetros a leste -, Istambul ainda manteve o seu coração internacional. Não só há vários consulados ainda abertos ali, mas é a cidade que comerciantes, viajantes e formadores de opinião de todo o mundo ainda optam por visitar.

Istambul é hoje a vitrina da Turquia moderna ou uma cidade completamente diferente do resto do país? 
Istambul é, em muitos aspetos, a capital não-oficial da Turquia. Ainda tem muita energia e a vibração cosmopolita de que desfrutou ao longo da sua história. A Turquia é um país vasto, com muitas características diferentes nas suas diferentes regiões - não há duas partes iguais. Viajar para Istambul ajuda a compreender a vasta gama de influências que ocorrem na Turquia - caucasiana, europeia, turca, norte-africana, persa, russa, levantina - para citar só uma pequena seleção.

Recorda-se da sua primeira visita a Istambul?
Lembro-me vividamente da minha primeira visita a Istambul. Eu tinha 18 anos, estava em busca de vestígios arqueológicos, viajando com um colega e mochilas cheias de livros de História e Arqueologia (foi em 1986, não havia internet naquela época!). Além de todas as experiências únicas, o chá turco, os ursos dançantes, a gentileza de estranhos, lembro-me de estar esmagada com a sensação de que havia tantas respostas para grandes questões sobre tanta História Internacional. Apaixonei-me instantaneamente - e esse é um caso de amor que continua até hoje.

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