Isabel Rio Novo: “Camões foi um génio da literatura, poeta excecional que viu o mundo”
José Carmo

Isabel Rio Novo: “Camões foi um génio da literatura, poeta excecional que viu o mundo”

Das origens galegas ao modo como perdeu o olho, passando pelos amores, o serviço militar e a pobreza, autor d’Os Lusíadas é revelado em Fortuna, Caso, Tempo e Sorte - Biografia de Luís Vaz de Camões.
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Começo por lhe perguntar sobre o apelido Camões, da família, mas que o pai do poeta não utiliza. Conta na biografia que é de origem galega. Os Camões estavam há muito tempo em Portugal?
Ao que tudo indica, esse nome de Camões tem origem num topónimo, num local chamado Camós, onde eu estive, na Galiza. Os Camões vieram da Galiza para Portugal, no reinado de D. Fernando, e o trisavô do nosso Luís Vaz de Camões, veio juntamente com outros fidalgos galegos, inclusive um primo dele, também de apelido Camões, apoiar a causa de D. Fernando. Na altura, o nosso rei D. Fernando tinha pretensões ao trono de Castela. 

Estamos a falar, quase do final do século XIV, portanto, a família Camões tinha dois séculos de presença em Portugal.
Sim. A família Camões tem mais ou menos dois séculos em Portugal. Esse nobre chamado Vasco Pires ou Pérez de Camões, foi ficando em Portugal. E depois de morto D. Fernando, ficou ligado à viúva de D. Fernando, D. Leonor Teles, e apoiou a sua causa, e consequentemente a causa de Castela, nas guerras entre Castela e o futuro D.João I, o Mestre de Avis, e foi nessa altura que começou a cair em desgraça. Como sabemos, em Aljubarrota, venceu o partido do futuro D. João I.

No seu livro também deixa dúvidas sobre Lisboa como a cidade onde o poeta nasceu.
Sem dúvidas, não me inclino nada para Lisboa.

Fala do Porto, fala de Coimbra, e de outras. Qual é a naturalidade que acha mais provável? 
Há várias hipóteses que ao longo dos séculos foram sendo avançadas sobre a naturalidade de Camões, e que incluem essas, mas muitas outras, Santarém, Alenquer, Chaves. É quase como se cada parcela de Portugal quisesse reclamar um bocadinho do seu Camões. Mas digamos que duvido que tenha sido em Lisboa. Depois de ter visto a documentação existente, depois de ter lido e relido os primeiros biógrafos, inclino-me muito mais ou para Coimbra ou para o Porto. E o Porto, surpreende-me, e aliás digo isso de forma explanada no livro. E de alguma forma é esquisito, no mínimo, que nunca tenha sido uma hipótese explorada. Foi lançada timidamente no início do século XX, foi recuperada de uma forma igualmente tímida por alguns estudiosos, mas nunca foi estudada a sério.

Ou seja, há possibilidades de investigar mais para tentar comprovar a hipótese do Porto? 
Isso podemos dizer sobre qualquer aspecto da vida de Camões. É que, contrariamente ao que às vezes se repete com alguma veleidade, há de certeza documentos ainda escondidos nos arquivos. Simplesmente vasculhar todos esses arquivos é uma tarefa hercúlea que implicaria muito tempo. Implicaria provavelmente uma equipa de investigadores a trabalhar nisso durante muitos anos, e os financiamentos para a investigação nós sabemos como é que são. Mas em relação à sua naturalidade, Camões afirma-a duas vezes, numa carta em prosa e numa quadra meio jocosa, que surge numa compilação manuscrita da época, coisa que não faz em relação a Coimbra e coisa que não faz em relação a Lisboa. 

Ou seja, é esse o indício?
É o indício principal. Há outros, nomeadamente uma documentação que também já foi revelada há várias décadas e que é examinada no livro. Mas digamos que nenhum dos elementos isolados permitiria avançar sequer com a hipótese do Porto, mas todos eles juntos configuram pelo menos uma hipótese de trabalho que eu acho que deve ser equacionada.

Em termos da educação de Camões, Coimbra é decisiva, sendo que não foi estudante na Universidade de Coimbra, era quase como que um aluno externo. 
Sim, se bem que todo esse processo para nós é difícil de entender porque é muito diferente da forma como os estudos hoje se estruturam. Para já, Camões beneficia do facto de um tio paterno, D. Bento de Camões - e essa relação de parentesco está já amplamente comprovada -, ser na época ao mesmo tempo o prior-geral da congregação dos Frades Crúzios e, portanto, também prior do mosteiro de Santa Cruz de Coimbra, que era por si só um centro de conhecimento importantíssimo na época, com uma biblioteca riquíssima, cheia de crónicas medievais, inclusive crónicas que, como alguns camonianos já demonstraram, Camões leu de certeza absoluta. Mas esse tio, e precisamente na altura em que a Universidade e os estudos gerais são transferidos de Lisboa para Coimbra, vai paralelamente assumir, durante algum tempo, o cargo de cancelário, que era uma espécie de reitor da Universidade. Portanto, temos o tio de Camões numa posição privilegiada, capaz de franquear, por um lado, o acervo documental do mosteiro de Santa Cruz e, por outro lado, de lhe permitir o acesso às aulas da Universidade. Não existia ainda o edifício da Universidade, precisamente porque a Universidade foi deslocada. Os estudos ocorriam em vários lugares, inclusive em casas de colégios, e, portanto, não podemos imaginar Camões a entrar no edifício da Universidade, mas sim a ter acesso a esses lugares. Havia muitos alunos que, por razões variadas, que a maior parte das vezes tinham a ver com o custo das propinas, frequentavam as aulas sem estarem matriculados. Há legislação que o proibiu, o que significa que a prática estava instalada, e é provável que Camões, para mais com o beneplácito do tio, tenha feito isso.

A grande cultura clássica de Camões, principalmente dos latinos e dos gregos, virá desse período?
Tem de ter começado, através, como ele próprio reconhecia, de um honesto estudo. É impossível que a cultura de Camões, tão vasta, tão profunda, abarcando um conhecimento dos clássicos, abarcando um conhecimento também dos autores do seu tempo, tenha sido uma cultura meramente autodidata, ou, entre aspas, de escudeiro, como há 50 anos propôs o professor José Hermano Saraiva.

Teve de ter mestres que o ensinavam?
Sim, teve de ter mestres. Agora, extravazou isso. E Coimbra era também, na altura, um lugar onde, fora das salas de aula, havia uma convivência intelectual. Os estudantes, que também se dedicavam e muito à vida boémia, também eram interessados pela literatura do seu tempo. Muitos escreviam poesia, trocavam livros raros entre si, partilhavam leituras, partilhavam também aquilo que escreviam, e, portanto, foi dentro e fora das salas de aula que Camões começou em Coimbra esse estudo. Claro, depois prosseguiu esse estudo pela vida fora, mas temos de pensar no seguinte: desde os 20 e poucos anos, vemos Camões envolvido em desacatos, experiências militares, prisões, grandes viagens, vida de soldado, ou seja, as possibilidades que teve de ter tido um estudo continuado ocorreram certamente durante a adolescência e durante a primeira juventude.

Sobre os amores de Camões, é mais fama do que proveito, porque algumas das damas eram inalcançáveis e muitos também dos poemas eram feitos para outras pessoas, não sendo ele provavelmente o candidato?
Eu não diria mais fama do que proveito, porque eu acho que ele isso provou. Sabia bem do que falava, quando, no final do episódio da Ilha dos Amores, há um comentário um tanto malicioso que faz. Depois de narrar o encontro amoroso entre as ninfas e os marinheiros, Camões resume que é “melhor experimentá-lo que julgá-lo/, mas julgue-o quem não pode experimentá-lo”. Como quem diz, eu, pelo contrário, experimentei bem. Agora, sem dúvida que, e um dos primeiros biógrafos, Faria e Sousa, chamou a atenção para isso, muitas das damas que figuram nas dedicatórias dos poemas de Camões, da lírica de Camões que surge nos cancioneiros manuscritos da época, não devem ter sido damas por quem se interessou realmente, mas obras de encomenda, ou então damas que ele simplesmente cortejou, sabendo-as completamente fora do seu alcance.

Poemas por encomenda, porque uma das fontes que Camões teve de rendimento ao longo da vida foi escrever para outros.
O que era uma prática instalada, que todos os seus biógrafos antigos admitiram, sem qualquer tipo de preconceito, porque para eles era perfeitamente normal. Juntamente com esses amores mais ou menos platónicos, ele teve, isso sem dúvida, ligações com mulheres consideradas de baixa estirpe, certamente, as mulheres que ele encontrava nas tabernas, nos bordéis, nas casas de jogo. Eu diria que, e não sou a primeira a dizê-lo, é provável que Camões tivesse gostado também de algumas dessas mulheres, da mesma forma, que certamente também desejou as damas do paço inalcançáveis. Uma das quais julgo eu creio ter podido identificá-la sem grande margem para dúvidas, terá sido um amor contrariado que teve a maior importância na sua vida e que, indiretamente, muitas vezes referiu até na sua poesia. Dona Catarina de Ataíde de Sousa, que fazia parte do séquito da rainha. Ao que tudo indica, os dois apaixonaram-se e, evidentemente, era uma união impossível de acordo com os critérios da época, porque a dama era fidalga, era de um estatuto social superior.

Era completamente impensável para a época essa relação?
Os pais nunca consentiriam num casamento desigual, portanto, com um escudeiro, e alguém provavelmente já rodeado de alguma má fama. As mulheres eram, na altura, um instrumento graças ao qual, através de matrimónios vantajosos, as famílias procuravam sempre aumentar o seu prestígio social e a sua fortuna e nunca diminuí-la. Esses amores, que a dada altura foram notados, terão gerado algum burburinho e não sabemos até que ponto a intervenção régia foi veemente, mas sabemos que isso era usual na época. Camões sofreu um primeiro afastamento da corte, que terá sido o seu período de permanência no Ribatejo. E depois, também não sabemos exatamente as circunstâncias, mas estará relacionado com a reincidência desses amores proibidos, terá tido uma experiência militar no norte da África, no decurso da qual sofreu a sua mutilação no rosto.

Não há dúvida que foi nessa passagem por Ceuta, nos combates no norte da África, que Camões perdeu um olho?
Todos os testemunhos contemporâneos, ou quase contemporâneos, coincidem nisso. Perde o olho direito, e os dois únicos retratos que se conhecem, feitos em vida de Camões, que são a célebre sanguínea executada pelo pintor Fernão Gomes, na década de 1570, e o retrato de Camões na prisão de Goa, que eu redescobri, com alguma boa fortuna, são concordes em apresentá-lo sem o olho direito...

Esse retrato está na posse de um privado em Portugal?
Está na posse de um colecionador privado em Portugal. O retrato foi descoberto por Maria Antonieta Soares de Azevedo em 1972, estava eu a nascer, e foi estudado, foi apresentado e foi exposto. E a partir daí não deixou de ser reproduzido, está em muitas capas de livros...

Mas não está num museu, está na posse de alguém.
 Está na posse de alguém. Perdeu-se-lhe o rasto, tanto que Vasco Graça Moura, num dos últimos livros que escreveu, em que compilou os estudos sobre os retratos de Camões, tentou descobri-lo para que o retrato fosse reexaminado à luz da tecnologia então da época, e já não conseguiu descobrir o seu paradeiro. E foi nesse ponto também que eu comecei, sem saber, sem fazer a mínima ideia. Procurei por toda a parte, em bibliotecas, através de editores também, e depois com alguma sorte vim a descobrir que estava em casa de um colecionador.

E teve a oportunidade de vê-lo?
Sim, e mesmo antes de uma equipa de investigadores do Laboratório Hercules da Universidade de Évora o ter submetido a exames, eu tive uns deliciosos minutos a sós com o retrato de Camões.

Camões tem um período da vida muito intenso na Ásia, sobretudo em Goa. Também se fala muito de ter vivido em Macau, onde há a célebre gruta de Camões. Aquilo que me surpreendeu no seu livro é também a ida dele às ilhas das especiarias, a atual Indonésia. Camões acabou por ter a oportunidade, de certa forma, de conhecer bastante o Oriente?
Ele parte para o Oriente em 1553, contrariado. Parte para se salvar dos ferros da prisão do Tronco de Lisboa, para onde tinha sido enviado na sequência de uma agressão grave a um criado do rei. Criado esse que era cunhado de Dona Catarina Ataíde de Sousa. Portanto, mais um argumento em favor da identificação da dama por quem Camões se perdeu. E é como condição para a obtenção da Carta de Perdão por parte do rei D. João III a promessa de embarcar para a Índia. Camões embarca, de facto, tão em cima da hora que tem de trocar de lugar com um soldado que já estava inscrito. E os 17 anos que passa no Oriente permitem-lhe realmente conhecer boa parte do Império Português da época. Só não terá estado no Japão, não esteve também no Brasil, do outro lado do Atlântico, mas conheceu a maior parte dos lugares que depois irá descrever n’Os Lusíadas com tanta veracidade. N’Os Lusíadas e noutros poemas. Como soldado, e é na qualidade de soldado que ele embarca, Camões tinha um período mínimo de três anos para cumprir em termos de serviço militar, mas a maioria dos homens de armas que embarcavam para o Oriente teriam de servir pelo menos sete anos para reunirem um número suficiente de certidões militares, comprovativos de ações de combate, que lhes permitissem depois regressar ao reino e auferir uma remuneração correspondente. E ele esteve no Golfo Pérsico, esteve em várias regiões da Índia e esteve seguramente em Ternate, onde interveio num período de guerra, se assim podemos dizer, que houve a partir de um conflito causado pelo capitão que foi assumir a fortaleza de Ternate, que prendeu o rei de Ternate, sem grandes razões ao que parece. Por razões puramente de ganância, que é um dos problemas que Camões deteta logo nos portugueses no Oriente. E dessa permanência na ilha de Ternate, muito cobiçada pela produção das especiarias, nomeadamente do cravo, ele redige um poema onde faz várias referências geográficas da ilha, nomeadamente ao vulcão, que descreve com muita acuidade.

E em Macau, há algumas dúvidas da presença de Camões?
Se não tenho a mínima dúvida de que a Camões esteve em Ternate, em relação a Macau estou persuadida de que esteve lá, embora não se possa falar numa certeza documental. Mas pode-se falar, para além de vários testemunhos, quase contemporâneos, que o colocam como provedor dos defuntos em Macau - esse cargo ele exerceu, sem dúvida -, há um documento um pouco posterior em que o colégio de jesuítas de Macau refere, num documento de venda, uns terrenos que confinam com os Penedos de Camões. Ora, há vários Camões no século XVI, que provêm das ramificações dos dois primos que vieram da Galiza dois séculos antes, há Camões no Oriente também por essa época, mas apontamentos sobre um Camões no território de Macau e junto de uns penedos por essa altura, há apenas o nosso Luís Vaz. É mais uma achega em favor da tese de lá ter estado.

E o episódio do naufrágio ao largo da foz do Mekong? Salvar o manuscrito de Os Lusíadas a nado não tem grande base, pois não?
Bom, eu diria que salvar um manuscrito a nado, isto é, imaginar Os Lusíadas, que deviam ser um manuscrito bem volumoso e bem pesado, imaginar-se Camões a segurar o manuscrito com uma mão e conseguir nadar com a outra é capaz de ser pouco verosímil. Agora, aquilo em que os biógrafos concordam é que Camões salvou-se numa tábua, ou seja, terá sido num bote, ou um pedaço de madeira improvisado como jangada, e aquilo que ele se preocupou em levar consigo, de facto, não foram nem as riquezas que tinha amealhadas em Macau através do exercício do seu cargo de provedor dos defuntos, nem sequer os dinheiros de que ele era responsável precisamente no exercício desse cargo administrativo, terá sido salvar o manuscrito da sua obra. E isso, de alguma forma, tem uma simbologia tão ou mais importante, tão ou mais relevante, do que se ele tivesse conseguido a proeza atlética de segurar com uma mão o manuscrito e nadar com a outra.

Nesse naufrágio morre Dinamene. Há duas figuras femininas, muito interessantes, ligadas a Camões. Há Dinamene, que será uma chinesa, em princípio, e há Bárbara, a cativa, que será uma africana. Um dia entrevistei Manuel Alegre que me disse que o primeiro poema feito à beleza africana por um europeu é por Camões. Até nisto Camões é único, não é?
Sim, julgo que sim. Há um estudioso que escreveu recentemente, não é bem uma biografia, mas um livro que toca nas vidas de Damião de Góis e de Camões, que é Edward Wilson Lee, que refere que terá sido, de facto, o primeiro poema renascentista escrito à beleza de uma mulher negra. E no caso de Dinamene, esta não se chamaria, de certeza, Dinamene, que é um nome convencional, literário, que Camões usa mesmo antes de embarcar para o Oriente. Aliás, é provável que, como dizem Diogo de Couto e alguns dos seus primeiros biógrafos, se Camões realmente em Macau viveu maritalmente com essa rapariga de origens asiáticas, chinesa ou não, era provável que ela tivesse sido batizada e recebido um nome cristão. Mas, enfim, a rapariga que nós chamamos, por razões de facilidade, Dinamene, morre no naufrágio, e com isso Camões ficou muito desgostoso, muito sentido. Depois, a hipótese de Bárbara ter existido realmente é isso mesmo, uma hipótese. Não sabemos se esse belíssimo poema que desmonta os parâmetros petrarquistas da poesia do seu tempo, celebrando todas as características da beleza de uma mulher de raça negra, foi inspirado numa mulher só ou em várias. Na ilha de Moçambique, por exemplo, garantem ainda hoje os contadores de histórias locais que Bárbara era de lá, e uma mulher com quem Camões viveu durante os dois anos em que permaneceu nessa ilha. Há umas referências a uma Bárbara já em Portugal, depois do regresso de Camões. Seria uma das muitas mulheres, dão conta os cronistas da época, que vendiam marisco, que na altura era um alimento desprezado, pelas ruas de Lisboa. Uma mulher que ajudaria Camões dando-lhe esse alimento e dando-lhe até do dinheiro que ganhava e que se chamava Bárbara. Inclino-me a que aí temos que pensar que a poesia, a literatura, sendo recriação da realidade, esse poema pode ser uma homenagem a muitas mulheres.

Não é dedicado a única uma Bárbara?
Não a uma única Bárbara. Mas aí, enfim, por pura opinião pessoal, aqui a biógrafa também tem direito, não me espantaria que pudesse ser um elogio a essa beleza, se calhar na altura mais espiritual do que propriamente física, dessa Bárbara pobre, mas que era capaz de ser generosa para com alguém igualmente pobre.

Sobre a fase final da vida de Camões, sabe-se que chega a Portugal, traz o manuscrito d’Os Lusíadas, consegue publicá-lo em 1572, dedica-o ao rei D. Sebastião, e sabe-se até que teve ainda sucesso de vendas em vida do poeta. Mas mesmo assim Camões morre pobre. 
Sim. É evidente que a publicação d’Os Lusíadas traz-lhe reconhecimento, mas não lhe traz, obviamente, lucros. Não podemos imaginar que tivesse sido um bestseller ou sequer que um livro, na altura, trouxesse esse tipo de proventos ao seu autor. O que é que ele consegue, graças a Os Lusíadas? Consegue desbloquear a sua situação financeira, porque ele chega do Oriente, onde, recordemos, era um daqueles que eram soldados, com as suas certidões militares, para pedir a sua recompensa, que era ou a nomeação para um cargo e o regresso ao Oriente, como faziam muitos mais nobres, mais soldados e mais ambiciosos, ou então, pelo menos, o que acontecia na maioria das vezes, que a nomeação para um cargo, e, no caso dele, foi a feitoria de Chaul, que não chegou a assumir, fosse convertida numa tença, numa reforma, numa compensação monetária. Ele só consegue isso depois da publicação d’Os Lusíadas e o alvará, que lhe concede os famosos 15.000 reis de tença emitido por D. Sebastião, diz, claramente, que está a recompensar os serviços de Camões prestados na Índia. Quando muito o livro, que também é referido, terá sido um argumento adicional para desbloquear a concessão da tença. Os 15.000 reis de tença todos os primeiros biógrafos concordam que não devia ser grande coisa e, para mais, era paga de forma irregular. Os documentos que existem na Torre do Tombo testemunham uma história de atrasos constantes, de verbas que deviam ter sido pagas e não foram pagas por uma razão burocrática ou outra. Provavelmente, foi mal gerida, porque Camões era gastador.

É possível que tenha existido mesmo o tal escravo javanês, a pedir esmola para o seu amo ou amigo? 
Se não me custa nada admitir a existência de António - chamam-lhe Jau por ser de Java - junto de Camões, porque, mais uma vez, faço fé naqueles que escrevem poucos anos depois da morte de ambos. A estar junto de Camões é provável que ele fosse, não propriamente um escravo, mas alguém que tinha sido liberto ou alforriado, até por essa história da esmola, porque um escravo não poderia andar de noite nas ruas e o Jau de Camões, como conta Faria e Sousa, de noite pedia esmola para o seu amo ou amigo.

Há três figuras desta época na literatura europeia que são fascinantes, que é Shakespeare, que nunca terá saído de Inglaterra, Cervantes, que até combateu em Lepanto e foi espião em Argel, onde esteve preso, e depois há Camões, que conhece muito mundo. Isto torna Camões o primeiro poeta que verdadeiramente viu o mundo?
Sim, Camões é o primeiro poeta que verdadeiramente viu o mundo. E isso é extraordinário, porque Camões foi praticamente tudo aquilo que um homem podia ser no tempo que lhe foi dado existir, houve outros que foram soldados, houve outros que foram feridos, houve outros que tiveram experiências de naufrágio, houve outros que passaram por vários lugares do Império Português, mas ele somou isso tudo, e não é somou porque é algo que pré-existe, que existe simultaneamente e que existe sobre tudo isso. Foi um génio da literatura, um poeta excecional, que viu o mundo, e que não teve, apesar de tudo as condições que, por exemplo, Shakespeare teve para escrever. Ou seja, a pergunta com que eu posso terminar é até onde é que Camões poderia ter ido se tivesse tido uma existência um pouco menos atribulada, um pouco mais confortável, sabendo nós que a obra dele foi produzida nos intervalos disto, das guerras, dos combates, das experiências de prisão, dos muitos dissabores, da vida boémia, dos naufrágios e no meio disto tudo ele deixou o que deixou.

Fortuna, Caso, Tempo e Sorte - Biografia de Luís Vaz de Camões
Isabel Rio Novo
Contraponto
728 páginas
24,90 euros

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