Inéditos TVCine com honras de grande ecrã
Quantas vezes nos perguntamos porque é que determinado filme vai direto para a televisão, sem passar pelas salas, quando é evidente o seu potencial de experiência cinematográfica? Parece ser em resposta a esse desajuste que nasce o TVCine FEST, uma janela aberta entre este sábado e domingo nalguns cinemas NOS espalhados por quase uma dezena de cidades (Lisboa, Porto, Viseu, Aveiro, Coimbra, Vila Real, Almada, Loulé e Funchal), que dão a conhecer algumas das novidades dos Canais TVCine. Enfim... nem só de filmes se faz o menu. A ideia é trazer também para a grande tela o tipo de produções que se consagrou como um exclusivo do pequeno ecrã: o formato da série.
Ao DN, o responsável de comunicação dos Canais TVCine, João Magalhães, explicou o intento e a origem do festival: "A nós move-nos a paixão pelas histórias, sejam elas no formato de longa-metragem, documentário, curta ou série. É por isso que, na qualidade de únicos canais Premium de filmes e séries em Portugal, somos parceiros de vários festivais que celebram os conteúdos no cinema, como é o caso do IndieLisboa, Doclisboa, Fantasporto, Curtas Vila do Conde, MOTELX, MONSTRA, Porto/Post/Doc ou a Festa do Cinema Italiano. Junto destes nossos importantes parceiros percebemos o valor que o público português dá à celebração desses conteúdos no grande ecrã e em contexto de festival." Uma consciência a que acresce "a vontade de, através desta iniciativa, apoiar uma instituição." Na sua edição número um, parte das receitas do evento revertem para a Casa do Artista.
Entre as novidades do primeiro dia saltam à vista Estúdio 666, uma espécie de comédia de terror musical protagonizada pelos Foo Fighters, O Jesuíta, thriller de ação com argumento de Paul Schrader e um trio de atores que mete respeito (Tim Roth, Brian Cox, Ron Perlman), e o primeiro episódio de Billy The Kid, a história do lendário pistoleiro americano, desde as raízes irlandesas à formação da imagem do cowboy e participação na Guerra do Condado de Lincoln. Dois filmes e uma série que correspondem aos chamados "inéditos TVCine": títulos que todos os meses chegam aos canais sem ter direito a uma exibição nas salas portuguesas. "A ideia por detrás do TVCine FEST passa precisamente por dar aos espectadores a oportunidade de ver estas estreias pela primeira vez no grande ecrã, oferecendo-lhes uma nova experiência. Tal como acontece com o processo de curadoria dos Canais TVCine, as escolhas de programação do festival guiam-se pelo nosso compromisso de apresentar propostas apetecíveis, variadas e relevantes, quer pelo elenco quer pelas histórias, ou pelo seu reconhecimento internacional", sublinha João Magalhães.
E a verdade é que, seja pelos nomes sonantes de atores, a importância das narrativas ou fenómenos de popularidade, o programa do TVCine FEST toca um bocadinho de tudo, concentrando a nata do cartaz no domingo. Nesse dia há, por exemplo, Mainstream, de Gia Coppola (neta de Francis Ford Coppola), um conto pop art na era da internet com Andrew Garfield e Maya Hawke, e a mais recente realização de Denzel Washington, Um Diário para Jordan, drama familiar inspirado na história verídica do primeiro-sargento Charles Monroe King (Michael B. Jordan), que escreveu um diário de conselhos para o filho recém-nascido enquanto se encontrava no Iraque. Mas é no sucesso The Handmaid"s Tale que se focam as atenções - o festival mostra em antestreia o primeiro episódio da quinta temporada desta série distópica, baseada no romance de Margaret Atwood, que confirmou Elisabeth Moss como uma das atrizes mais camaleónicas da sua geração.
A confirmar o carisma de Moss, encontra-se também aqui o filme Shirley, de Josephine Decker, um retrato biográfico (que não o é exatamente) da escritora Shirley Jackson e do seu imaginário gótico, a partir da presença prolongada de um jovem casal na sua moradia, a convite do marido (Michael Stuhlbarg). Para quem espera uma convencional ilustração da personalidade "artística" em processo criativo, chocará com um belo objeto estranho: Decker filma o ambiente doméstico da autora americana como se projetasse nele o universo mental patente nos seus romances e contos. Sem perder o pé nesse retrato livre (os factos da vida resumem-se aos surtos de agorafobia, consumo de álcool e infidelidades do marido), o filme produz um feitiço feminino que cresce à medida da sintonia de Jackson/Moss e da jovem convidada Rose/Odessa Young - juntas formam uma sedutora e inebriante matéria literária. Neste cenário, não se sabe onde começa a inspiração e acaba a realidade, mas é justamente por isso que Shirley escapa à rigidez dos biopics, convertendo a assombração de uma escritora em textura onírica. Se ainda restarem dúvidas: eis uma interpretação superlativa de Elisabeth Moss.
O outro caso sério deste TVCine Fest chama-se Help. Um filme de Marc Munden feito para a televisão, mas com uma Jodie Comer a transbordar realismo social de ímpeto cinematográfico. Nesta brilhante tour de force da atriz de Killing Eve assistimos ao amor, garra e revolta de uma cuidadora que, pouco tempo depois de começar a trabalhar num lar em Liverpool, se depara com as falhas graves de um sistema que não consegue dar resposta a uma pandemia... Estamos na confusão das primeiras semanas da covid-19 e o olhar meio desfocado de Munden leva-nos até ao ponto de convergência do cansaço, entre turnos inumanos e gestos aflitivos, enquanto a morte vai esvaziando os quartos do lar.
Comer assume no corpo e na expressão toda a angústia social do filme, mas não está sozinha na empreitada dramática. Stephen Graham, sempre admirável, faz-lhe companhia no papel de um residente com Alzheimer precoce. Um homem frágil que ela tentará proteger com todas as suas forças. Entenda-se: aqui não é o "tema" da pandemia que interessa, mas a imagem universal que se mistura com as emoções à flor da pele. Vale a pena descobri-lo no grande ecrã.