"Gama, Albuquerque e Magalhães tinham grandes capacidades de chefia, tenacidade, coragem e resiliência"
FOTO: Reinaldo Rodrigues

"Gama, Albuquerque e Magalhães tinham grandes capacidades de chefia, tenacidade, coragem e resiliência"

Historiador José Manuel Garcia vai dar segunda-feira uma conferência na Vidigueira sobre o descobridor do caminho marítimo para a Índia. Iniciativa é da Câmara Municipal e do Ministério da Cultura.
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Vasco da Gama é associado a Sines, mas também à Vidigueira. Qual o papel destas duas terras alentejanas na vida do grande navegador português?

Sines e Vidigueira tiveram a maior relevância na vida de Vasco da Gama. Sines porque foi a sua terra natal, pois nasceu no castelo provavelmente em 1466. Foi essa mesma vila que em 1499 ele pediu ao rei como recompensa do feito extraordinário de ter descoberto o caminho marítimo para a Índia. D. Manuel I prometeu doar-lhe Sines em 24 de dezembro de 1499, mas infelizmente ele não pode ficar com a vila porque D. Jorge, governador da Ordem de Santiago, se opôs a tal doação. Vasco da Gama chegou mesmo a ser expulso de Sines em 1507, tendo, entretanto, passado da Ordem de Santiago para a Ordem de Cristo. Apesar do rei ter recompensado Vasco da Gama em 1500 com muitas benesses e honrarias este acabou por exigir em 1518 o título de conde, ameaçando que deixaria Portugal caso ele não lhe fosse concedido. Foram então feitas diligências de forma a que em 1519 o duque de Bragança vendesse a Vidigueira a Vasco da Gama, permitindo assim que nesse mesmo ano D. Manuel I lhe desse o título de Conde da Vidigueira, alcançando então uma enorme proeminência social ao ficar integrado na mais alta nobreza. É ainda de lembrar que em 1518 Vasco da Gama habitava em Lisboa junto ao chafariz del-rei, perto da Casa dos Bicos. Lisboa teve igualmente uma grande relevância para Vasco da Gama pois foi daqui que partiu para as suas três grandes viagens à Índia em 1497, 1502 e 1524. 

Gama era alentejano, Pedro Álvares Cabral era de Belmonte, Fernão de Magalhães era do Porto, Gil Eanes era de Lagos. Todo o Portugal deu gente aos Descobrimentos?

Sem dúvida, o que revela que os Descobrimentos constituíram um fenómeno nacional, pois homens de todas as partes do país vinham a Lisboa para participar nas iniciativas descobridoras desde o tempo do infante do Henrique até D. João III. Embora os Descobrimentos tivessem estado centrados em Lisboa e durante algum tempo em Lagos eles foram realizados por pessoas de todas as regiões do país que estavam ansiosas por participar em tão grandes iniciativas, das quais esperavam obter benefícios económicos e sociais.

Qual era a experiência de mar de Gama quando D. Manuel lhe confiou a armada para ir à Índia, onde chegou em 1498?

A única indicação que temos sobre as atividades de Vasco da Gama antes da sua nomeação para capitão-mor da armada que descobriu o caminho marítimo para a Índia, consiste no facto de em 1492 ele ter dirigido iniciativas de D. João II que permitiram o apresamento de navios franceses no Alentejo e Algarve como retaliação pelo facto de franceses terem assaltado uma caravela vinda com ouro da feitoria / fortaleza da Mina. Tal facto revela que Vasco da Gama tinha experiência nas coisas do mar e capacidade de direção de empreendimentos importantes, como foi o caso. Vasco da Gama morava então em Setúbal.

Muitos elementos da família vão destacar-se além-mar, certo?

Assim aconteceu, com destaque para os filhos de Vasco da Gama, pois todos eles, com exceção do mais velho, que, sem ter saído da metrópole herdou o título de conde e o cargo de almirante, chefiaram naus da carreira da Índia e foram capitães de Malaca. Estêvão da Gama chegou mesmo a ser governador do Estado da Índia entre 1540 e 1542 e Cristóvão da Gama notabilizou-se por ter chefiado uma campanha na Etiópia para salvar o Preste João das ameaças dos turcos, tendo sido morto em combate em 1542. Além destas personalidades Aires da Gama, irmão de Vasco da Gama, participou igualmente em viagens à Índia como capitão de naus em 1511 e 1518, tendo neste último ano ocupado a capitania de Cananor. Os tios maternos de Vasco da Gama, Vicente e Brás Sodré, também foram com ele à Índia em 1502, ocupando cargos importantes e tendo morrido num naufrágio em 1503 na costa da Arábia, onde foram os primeiros portugueses a lá chegar.

Gama acaba por morrer na Índia, em 1524. Como é que da sepultura em Cochim se chega ao túmulo nos Jerónimos? É com passagem pela Vidigueira?

Com efeito Vasco da Gama morreu de doença em Cochim em 24 de dezembro de 1524 tendo sido sepultado na igreja do convento de São Francisco nesta povoação, mas com a indicação de que os seus restos mortais deveriam ser sepultados na Vidigueira, onde era conde. Foi o seu filho D. Pedro da Silva da Gama que em 1538 levou as suas ossadas para o convento de Nossa Senhora das Relíquias, na Vidigueira, de onde em 1898 foram trasladadas para a igreja do Mosteiro dos Jerónimos, sendo então colocadas num túmulo feito em 1894. Entretanto tinha ocorrido um equívoco em 1880 na trasladação dos restos mortais de Vasco da Gama, pois então foram retiradas ossadas da igreja das Relíquias que se supunha serem as suas para que fossem depositadas nos Jerónimos junto das alegadas ossadas de Camões, assim homenageando condignamente personalidades tão eminentes na História Universal. Infelizmente verificou-se ter havido um equívoco que levou a que fossem trazidas as verdadeiras ossadas em 1898. O que importa realçar é que perante o atual túmulo de Vasco da Gama na igreja do Mosteiro dos Jerónimos devemos continuar a homenagear e a manter viva a memória de tão ilustre personalidade cujo feito de descobrir o caminho marítimo para a Índia marcou o início de uma nova época da História, pois a partir de então passaram a estabelecer-se relações diretas, regulares e sistemáticas entre a Europa e a Ásia, alterando assim as realidades económicas, sociais, políticas, culturais e religiosas destes continentes. O feito levado a cabo por Vasco da Gama constitui uma das realizações que marcam de forma indelével não apenas uma época, mas a própria História da Humanidade. É por isso que, como escreveu Camões, Vasco da Gama se tornou um daqueles, “que por obras valerosas se vão da lei da morte libertando”.

José Manuel Garcia

"Graças ao Diário de Notícias foi possível preservar a imagem de um documento tão relevante como é a carta em que D. Manuel I concedeu a Vasco da Gama o título de Conde da Vidigueira, a qual está datada de 29 de dezembro de 1519"

A família ficou rica graças ao vice-rei?

Sim, as recompensas dadas por D. Manuel I a Vasco da Gama permitiram que os seus descendentes ficassem com o cargo de almirante das Índias; o tratamento especial de Dom; uma grande quantia de dinheiro; e posse de terras; a nomeação para cargos importantes e mantendo posições relevantes até ao século XIX na grande nobreza e ficado ligados às melhores casas da fidalguia portuguesa.

O que se pode hoje encontrar de Gama na Vidigueira?

O principal testemunho que Vasco da Gama deixou na Vidigueira foi um sino que ele mandou fazer quando foi viver para essa povoação, o qual se encontra na Torre do Relógio tendo gravado a seguinte inscrição: “Este sino mandou fazer o Conde Dom Vasco Almirante da Índia. Era de 1520.” Há ainda restos do castelo da Vidigueira onde Vasco da Gama viveu os últimos anos de vida em Portugal, tendo nessa torre sido colocado um brasão com as suas armas. Há também uma janela manuelina. Nas proximidades da Vidigueira encontra-se o Convento de Nossa Senhora das Relíquias, atualmente Quinta do Carmo, ao qual Vasco da Gama esteve ligado e onde esteve sepultado. Na Vidigueira, tal como em Sines, a memória de Vasco da Gama está assinalada na toponímia local e em estátuas que o representam. Até ao século XIX manteve-se na Vidigueira uma escultura de São Rafael que Vasco da Gama trouxe como relíquia da nau do seu irmão Paulo da Gama, a qual se encontra atualmente no Museu de Marinha em Lisboa, sendo o único testemunho que ficou da grande viagem.

Sei que na conferência desta segunda-feira na Vidigueira vai falar de um documento reproduzido numa primeira página do DN de 1898. Pode explicar?

Estamos de facto perante um caso importante em que graças ao Diário de Notícias foi possível preservar a imagem de um documento tão relevante como é a carta em que D. Manuel I concedeu a Vasco da Gama o título de Conde da Vidigueira, a qual está datada de 29 de dezembro de 1519. Tal facto tem passado despercebido sendo curiosa a sua história. Com efeito esse documento foi visto por Luciano Cordeiro em 1890, quando estava à venda. Infelizmente ele não conseguiu que fosse comprado pelo Estado português e por tal motivo essa carta acabou por ser comprada por um particular chamado Cunha Porto. Este entregou-o ao Conde de Alto Mearim para que o oferecesse ao Liceu Literário Português do Rio de Janeiro, o que ele cumpriu. Este conde mandou tirar uma fotografia ao documento no Rio de Janeiro e ofereceu-a ao Diário de Notícias, que a reproduziu na primeiro página do seu n.º 11 733, de 11 de agosto de 1898, tendo-se, entretanto, feito uma separata desse artigo com apenas 20 exemplares. Nessa publicação do Diário de Notícias conta-se a história desse documento onde se refere que ele estava “em magnífico estado, conservando intacto o selo em cera com as armas de D. Manuel, pendente das fitas com que era de uso ligar o pergaminho abaixo da firma real”. O texto desta carta foi lido por Gabriel Pereira e publicado por Luciano Cordeiro em 1892, tendo sido depois reproduzido por Teixeira de Aragão e Brito Rebelo, embora o seu paradeiro tenha ficado desconhecido. Diligências que fizemos no Rio de Janeiro para o encontrar não permitiram a sua localização, o que nos leva a supor que o documento terá desaparecido e talvez tenha mesmo ardido num incêndio que ocorreu no referido liceu, como nos foi referido.

Biografou Afonso de Albuquerque e Fernão de Magalhães. O que tinham estes em termos de personalidade em comum com Vasco da Gama?

Vasco da Gama, Afonso de Albuquerque e Fernão de Magalhães foram personalidades invulgares que têm em comum a capacidade de realização de feitos notáveis cujas difíceis realizações dependeram das suas grandes capacidades de chefia, tenacidade, coragem, resiliência e resistência. Um denominador comum que se encontra entre todas eles consiste na vontade e capacidade de levar a cabo as suas missões com grande autoridade. Quer Vasco da Gama quer Afonso de Albuquerque conseguiram cumprir as muito ambiciosas missões para que tinham sido encarregues por D. Manuel I. O primeiro para conseguir revelar o muito difícil caminho marítimo para chegar à Índia, de há muito procurado. O segundo para criar e gerir uma estratégia imperial que pudesse assegurar a Portugal o domínio comercial do Índico, tendo dado forma ao que foi designado por Estado da Índia através do controlo de três posições estratégicas que foram as cidades de Ormuz, Goa e Malaca. Quanto a Fernão de Magalhães o seu desígnio foi pessoal, pois foi ele quem delineou o projeto de conseguir chegar por ocidente às Molucas, na Indonésia, ao serviço do imperador Carlos V, depois de se ter agastado com D. Manuel I. Só a sua enorme força de vontade e capacidade de chefia permitiu que realizasse parcialmente o seu objetivo, pois chegou às Filipinas, que estão situadas a norte das Molucas onde queria ir. Desta forma, tendo saído de Sevilha e chegado a Cebu, completou uma volta ao mundo de forma indireta, já que anteriormente tinha ido com os portugueses às Molucas em 1512, quando completando então a primeira parte dessa volta ao mundo. O que importa relevar em Fernão de Magalhães é que ele conseguiu ter o conhecimento experimental da esfericidade da Terra concluindo assim o processo de conhecimento da Ásia iniciado por Vasco da Gama vinte e três anos antes de ele ter morrido em 1521.

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