Gal Costa. O Brasil perdeu um pouco da sua voz

Gal Costa, falecida aos 77 anos por causas ainda não divulgadas, teve carreira de 57 repleta de sucessos e inovações. Primeiro, ao lado de Caetano e Gil, conquistou a Bahia natal. Depois o seu país. E, finalmente, o mundo.
Publicado a
Atualizado a

A notícia da morte de Gal Costa, em São Paulo, ontem ao início da tarde, no horário de Lisboa, chocou o Brasil - e não só. Dona de uma das maiores e mais reconhecíveis vozes da história da música brasileira, Gal havia sido operada recentemente, para a retirada de um nódulo do nariz, razão pela qual adiara concertos até ao final do mês de novembro, mas, segundo os amigos mais próximos, nada fazia supor o seu falecimento, de causas ainda não divulgadas.

Ela estava em tournée com o espetáculo As Várias Pontas de uma Estrela, em que revisitava grandes sucessos dos anos 80 da Música Popular Brasileira (MPB), como Açaí, Nada mais, Sorte e Lua de Mel, estreado em outubro de 2021 em São Paulo. O sucesso de crítica e de público da tournée encheu a agenda da cantora, com presença em festivais, como o Coala, em setembro, em São Paulo, ou o Primavera Sound, no fim de semana passado, na mesma cidade, ao qual não compareceu por causa da cirurgia, sendo substituída por Adriana Calcanhoto. Tinha ainda digressão pela Europa em perspetiva.

Maria da Graça Costa Penna Burgos nasceu a 26 de setembro de 1945, em Salvador, capital do estado da Bahia, no nordeste do Brasil, e foi a voz de clássicos da MPB, como Baby, Meu Nome é Gal, Chuva de Prata, Meu Bem, Meu Mal, Pérola Negra e Barato Total, entre muitos outros. Foi ainda voz de temas de abertura de telenovelas, nomeadamente de Gabriela, a primeira exibida em Portugal, em 1977, com Modinha Para Gabriela, de Dorival Caymmi.

Filha de Arnaldo Burgos e Mariah Costa Penna teve na mãe a sua maior fã. Segunda dona Mariah, durante a gravidez ela ouviu música clássica para que o bebé nascesse com talento musical - e foi atendida. O primeiro ídolo e influência de Gal foi João Gilberto, conterrâneo da Bahia, cuja interpretação Chega de Saudade, tema de Tom Jobim e Vinícius de Moraes, em 1959, incentivou a jovem de 14 anos a seguir carreira no meio artístico.

Trabalhava, entretanto, ainda como balconista numa loja de discos quando as amigas Dedé e Sandra Gadelha a apresentaram aos respetivos namorados, Caetano Veloso e Gilberto Gil.

Começou a carreira - ainda sob o nome Maria da Graça - em 1965, há 57 anos, como intérprete de músicas inéditas de Caetano e Gil, baianos como ela, e ao lado também de Maria Bethânia, irmã do primeiro, formando o grupo Doces Bárbaros. O primeiro êxito, Eu Vim da Bahia, um samba composto por Gil, surgiu nesse período.

Gil e Bethânia lamentaram, emocionadamente, a morte da amiga nas redes sociais. Caetano publicou uma interpretação da música Sorte pelos dois ainda a morte da cantora não era conhecida do grande público.

Em 1968, cantou Baby, de Caetano, música originalmente composta para Bethânia, no álbum Tropicalia ou Panis et Circencis, tema que acabaria por se tornar um dos ícones da Tropicália, movimento musical, e não só, que tomou de assalto a cultura brasileira na segunda metade dos anos 60.

Ao longo dos anos 70, Gal Costa foi misturando estilos - samba, rock, baião, MPB - e multiplicando parcerias com alguns dos principais vultos da música brasileira e mundial, como Jorge Ben Jor, Luiz Melodia, Jards Macalé, Waly Salomão e Roberto Carlos e Erasmo Carlos, dupla que compôs para ela Meu Nome é Gal, numa reunião entre o movimento Tropicália, a que ela pertencia, e a Jovem Guarda, que eles personificavam.

Em 1977, lançou o disco Caras & Bocas, que traz os sucessos Tigresa e Negro Amor, e em 1978 o primeiro álbum de ouro da carreira, Água Viva, com os sucessos Folhetim, de Chico Buarque, Olhos Verdes, de Vicente Paiva, e Paula e Bebeto, de Milton Nascimento e Caetano.

Até ao final dos anos 80, Gal incorporou a imagem da "subversão tropicalista", revolucionando não só a música como os costumes da conservadora sociedade brasileira da época, sob ditadura militar. A partir dos anos 80, tornou-se uma intérprete mais próxima do mainstream das grandes emissoras de televisão e rádio e das principais editoras discográficas.

Já consolidada como uma das maiores vozes do mundo, lançou em 1991 um elogiado álbum produzido pelo americano Arto Lindsay - O Sorriso do Gato de Alice -, foi incluída no hall da fama do Carnegie Hall em 2001 e participou em digressões internacionais por algumas das salas de maior prestígio da Europa e nos Estados Unidos.

Nos mais de 40 álbuns que gravou, entre os quais os sucessos Fa-tal, Índia e Profana, cantou ainda temas de Cazuza, como Brasil, abertura da telenovela Vale Tudo, em 1998, ou, em 2018, de Marília Mendonça, jovem ícone do estilo "sertanejo sofrência" falecida no ano passado em desastre de avião.

O último álbum lançado foi Nenhuma Dor, em 2021, quando regravou músicas como Meu Bem, Meu Mal, Juventude Transviada e Coração Vagabundo, com cantores como Seu Jorge, Tim Bernardes e Criolo.

Deixa o filho Gabriel, de 17 anos, adotado por ela em 2007, depois de muitos anos sem conseguir engravidar por problema de obstrução das trompas detetado na adolescência. Gabriel inspirou o último álbum de inéditas da mãe, A Pele do Futuro, de 2018, o 40.º disco da carreira. Assumidamente bissexual, Gal nunca foi casada.

Numa das suas últimas aparições públicas, a cantora, muito crítica do ainda presidente Jair Bolsonaro, declarou voto em Lula da Silva, presidente eleito, no dia 30 de outubro.

Maria Bethânia: "Nunca pensei um dia chegar a vocês para falar sobre a dor de perder Gal, é triste demais, difícil demais, o Brasil que ela sempre encantou com sua voz única, magistral, hoje, inteiro, chora. Como eu. Uma amiga pela qual, mesmo longe, sempre mantive a admiração e respeito. Que Deus a receba na sua mais pura luz."

Gilberto Gil: "Muito triste e impactado com a morte de minha irmã gaúcha."

Lula da Silva: "Gal Costa foi das maiores cantoras do mundo, das nossas principais artistas a levar o nome e os sons do Brasil para todo o planeta."

Marcelo Rebelo de Sousa: "Portugal ouviu-a no genérico da novela Gabriela, que parou o País. E nunca deixámos de comprar os discos e de comparecer aos concertos, os últimos dos quais, marcados para este mês, o seu desaparecimento impediu, ficando a eterna lembrança de meio século de canções"

dnot@dn.pt

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt