Gabriel Alves: simplesmente enorme
Sim, nós sabemos. Todos nós sabemos que, na cerimónia de abertura do Mundial de Espanha, ele disse "e agora entram as danças sevilhanas da Catalunha"; ou que, no Mundial de 94, afirmou que um estádio tinha "uma humidade relativa superior a 100%". E que falou de Maradona, "26 anos, argentino, nascido em Buenos Aires, joga com a bola nos pés", que saudou Cândido Costa como "um jogador que joga bem pela esquerda, pela direita e pelos flancos", que enalteceu Vítor Baía como "provavelmente, o melhor jogador do Mundo e da Europa", que falou num "golo sexual" do Boavista, que disse que a selecção do Mali tinha "um futebol com perfume selvagem e com um odor realmente fresco", que descreveu "Hélder a romper... mas a altura exacta em que devia ter aberto", e que gritou "Épaaaahhh, Silvino a levar as mãos às bolas!!", e que caracterizou Jardel como "um jogador com um tempo de salto de quase 70cm" ou Giggs como "um jogador que remata bem, do meio-campo para a frente", ou ainda "Kenneth Anderson, 1 metro e 94 de golo". Sabemos que disse, ai pois disse: "Steeeeeeeveeee Harknesssss... jogador possante e forte ao nível físico... gosta de passar férias no Algarve... e o seu actor favorito é Michael Caine", "Totiiiiiiiiii... é um estilista" ou "António Veloso, 1,70m, pai de família, vive em Almada".
Sim, nós sabemos. Vimos, ouvimos e lemos, não podemos ignorar. Sabemos de tudo isto. Ouvimo-lo dizer "neste estádio ouve-se um silêncio ensurdecedor", ouvimo-lo dizer que "a selecção não jogou bem, nem mal, antes pelo contrário", ouvimo-lo a gritar "remate rasteiro... por cima!", a caracterizar Beckenbauer como "um grande libero", "um senhor de futebol", que ganhou "o Campeonato Mundial da Europa de 1974". São dele, só dele, mais nenhum, as frases imorredouras "um passe para a zona de ninguém, onde realmente não estava ninguém!", "jogador a trabalhar muito bem debaixo das pernas do adversário", "e as palmas saem de cima para baixo" ou "fica na retina um cheiro de bom futebol". Que ninguém, absolutamente ninguém, tenha a ousadia de levar-lhe a palma e a autoria do histórico, do épico, "podemos ver que o público está vestido", do não menos histórico e épico "esférico para um lado, bola para outro!" e ainda, e sempre, "Costinha é excelente nestes lances porque a bola está morta e passa a estar viva!"
Sim, nós sabemos. Como sabemos, porque ele nos disse, que "no campeonato germânico jogam muitos jogadores alemães"; sabemos de "Michael Thomas, médio possante, fã de Robert de Niro"; sabemos do "e aqui está, um golo substantivo que não pode ser adjectivado"; sabemos que definiu Romário como "um jogador baixo, possante, possuidor de um grande...Perdão! De um baixo centro de gravidade, pelo que roda muito bem sobre si, e tem grande estabilidade nas curvas."
Pela Internet fora, há compilações e registos de dezenas e dezenas das suas frases, umas talvez apócrifas, outras rebobinadas, mas todas de antologia: "Os adeptos do México funcionam como um autêntico 13.º jogador"; "E aí está uma enorme cavalgada de Thuram... este homem é um leão!"; "Juskowiak... a vantagem de ter duas pernas!"; "repare-se na movimentação dos jogadores do Bayern, movimentam-se como figuras geométricas... o futebol é uma arte plástica!"
Agora, o homem: Gabriel Alves, cujo prato favorito é polau de cabrito, nasceu em Lourenço Marques, actual Maputo, mas foi criado em Quelimane e aí fez o liceu até ao antigo 5.º ano. Morrumbala, Alto Molócue, Mutarara, Rio Chire, Mocuba, Namacurra, parecem nomes difíceis de pronunciar, mas foram locais por onde Gabriel passou quando jovem e, por isso, estão hoje imortalizados. Os pais conheceram-se e casaram-se em Moçambique, onde seu pai era topógrafo e agrimensor e, mais tarde, professor de matemática. Foi, segundo o próprio, um "miúdo sorumbático", que na escola, porque esta era mista, conviveu com várias "civilizações" e "outras maneiras de estar perante as coisas da vida." Em 1964, aos 16 anos, partiu para a metrópole, fazer o 6.ª ano em Santarém, onde não foi feliz, até porque só queria apanhar o comboio da uma e oito para Lisboa, que conheceu a pé e a fundo. Regressaria a África para completar o 7.º ano e, por essa altura, 1966, já com o bichinho do éter todo entranhado no corpo, começou a trabalhar no Rádio Clube de Moçambique (RCM), no emissor regional da Zambézia, Quelimane. Mais tarde, esteve dois anos nos quadros da DETA, a companhia de transportes aéreos de Moçambique, acumulando com a rádio, sempre ela. Muitos anos depois, em entrevista ao site Adiaspora.com, do Canadá, diria que o Rádio Clube de Moçambique fora a sua grande escola e enalteceu, uma vez mais, as virtudes da radiofonia: "a rádio é uma boa escola para todos. Faz com que tenhamos um grande convívio e intimidade. A rádio chega onde a TV não vai conseguir chegar. A pessoa vai numa autoestrada, faz 500 kms e vai a ouvir a sua rádio, o seu locutor ou jornalista. Esse comunicador é que lhe faz companhia... e isto é universal." Universal como ele, Gabriel, o Alves, quase apetece dizer.
Entre a tropa na Força Aérea e a rádio em Moçambique, andou de África para Portugal, e vice-versa (ou, como ele diria, "muito pelo contrário"). Esteve em Lourenço Marques, em Nacala, em Mueda e em Nampula, e, não sendo político ("eu nunca fui político, nem sou!"), enfrentou dissabores com as autoridades por causa das músicas que, em 1972, inocentemente mandara para o ar num dos seus programas, dos quais recorda, com orgulho, o "Show Musical", o "Extensão 10" e o "Sintonia 22" e, com enorme saudade, o "Doce Lar", feito em parceria com Lisete Lopes, sua inesquecível colega, mestra e amiga. Ainda hoje adora música, tem uma bela colecção de discos, CD"s e LP"s, sobretudo jazz, aprendido no Hot Clube, mas também música clássica, de que destaca o bolero de Ravel, Beethoven e Wagner ("acho que é um jazz fantástico o Wagner", diz, a brincar).
Começou no desporto por acaso e, com extraordinária humildade, confessa que teve de aprender tudo de novo na rádio, quando, depois de tapar as folgas de João de Sousa no "Bom diazinho", António Alves da Fonseca, das "Produções Golo", o convidou a fazer relatos de hóquei e de basquetebol, muito mais do que de futebol. A televisão surgiu também por mero acaso, e pela mão de Maria Leonor, mas esteve nela 32 anos (foi despedido ilícita e estupidamente da RTP, em 2007, pediu uma indemnização de 550 mil euros, a justiça laboral deu-lhe razão, chegou a acordo em 2011). Modesto, como sempre, agradece a quem o iniciou nos mistérios do desporto-rei, Nuno Brás, José Maria Pedroto, Hernâni "bitatites" Gonçalves, Artur Agostinho e sobretudo Serafim Marques, chefe do desporto da RTP, que lhe emprestou duas cassetes da BBC para ver e lhe explicou os dois pontos fundamentais da coisa: primeiro, "isto não é rádio, é televisão. Não precisa de explicar às pessoas o que estão a ver, tem de ajudá-las a ver"; segundo, "tem que fazer com que a pessoa que está sentada em casa, no sofá, se sinta no estádio". Gabriel Alves levou tudo isso à excelência, com esforço, com muito trabalho de casa. Não é por acaso que os jovens de agora lhes chamam "mítico", "Gaby" ou mesmo "Arcanjo".
Nós, mais entradotes, conhecemo-lo doutra maneira, tivemo-lo connosco aos domingos, ó privilégio, e àquela massa de carne, compacta; ao seu rosto coradito, à moda da Bairrada; ao orbicular da boca formando um coraçãozinho, muito xuxu; àquele biquinho no lábio, tipo marmota; às suas mãos sapuditas, postadas em oração sobre a mesa; aos seus olhinhos brilhantes, coruscantes, a mirarem-nos de baixo para cima, em falso estrabismo de hipnotizador barato (nos tempos gloriosos do serviço público, havia, de resto, um outro cuidado no cromatismo ocular dos comentadores: ele eram os negros-castanhos de Ribeiro Cristóvão, a fazer pendant com o cabelo-prata; eram os cinza de Gabriel Alves, duas pintinhas bailando num fácies de zé-povinho; os azuis-bebé de Rui Tovar, acentuando o ar de major inglês reformado da 2.ª Guerra). Ao longo dos anos, décadas, Gabriel melhorou muito a postura corporal: ao princípio, para dar movimento à fala, oscilava de um lado para outro, como um embarcadiço ou pinguço, deixando-nos a nós mareados; depois, passou a trabalhar só os ombros, ora avançando um, ora a avançando outro, como um gigolô na areia; finalmente, na etapa da maturidade, cinética minimalista, toda focada no olhar dançarino, matador, e com grande aposta nos trejeitinhos de boca. Gabriel Alves terá inspirado, ao menos em parte, diz-se, a personagem José Esteves, de Herman José, o que só por si lhe garante lugar eterno no panteão da cultura portuguesa contemporânea.
As imagens, as pujantes metáforas, as hipérboles, fazem dele, também, um maiores pensadores e poetas do seu tempo, mas é sobretudo pelos contorcionismos da voz que ficará conhecido, em especial pela modulação das oitavas na palavra Ivanov. Assim: sobe o decibel no i de Ivanov, até aos píncaros, prolongado lá em cima, e desce logo a seguir no -vanov, abruptamente. O efeito é parecido ao das grandes ondas da Nazaré ou das boas montanhas-russas e o resultado final, muito exigente para a região do palato mole, será qualquer coisa como ÍÍÍÍÍÍÍÍhh-Vá-Nóve!!!, sempre que bola rasa o poste ou nos cantos batidos à maneira curta (noutro plano, o Arcanjo revelou-se também um mago, muito mago, no arrastamento vocal da interjeição Oooohhhhhhhh.)
Aos leitores pouco familiarizados com a ciência do comentário desportivo deve esclarecer-se que são coisas como esta que distinguem os grandes mestres, pois, e agora falando sério, é por elas e através delas que se prende a atenção de quem ouve, que se dá colorido, ritmo e emoção a algo que, de outro modo, não passaria de uma enorme sensaboria. Experimentem tirar o som à TV: sem o calor do relato, dos vagidos, dos bramidos, o jogo perde emoção e suspense e rapidamente se torna numa disputa esparvoada por uma bola saltitante, e por sinal redonda. Mais do que visual, o futebol é um espectáculo auditivo e é por essas e outras que, num mundo ideal e a sério, Gabriel Alves ganharia pelo menos tanto como Ronaldo e Messi, ou mais. Em Gabriel, admitimo-lo, as vogais são sempre pronunciadas como um chiar de pneus no asfalto em brasa e os iiiis, sobretudo eles, sobretudo os iiiis, parecem grunhidos de um porco na matança. Arranham-nos muito a alma e o ventre, é certo, mas, sem eles, não haveria frisson que se visse, nem cócega a trepar a espinha.
É cedo, contudo, para sabermos se Gabriel Alves terá mudado o paradigma ou terá não mudado o paradigma do comentário desportivo nacional. Falta-nos ainda a distância, a perspectiva. Mas que o paradigma está a mudar, disso não restam dúvidas: "o paradigma do comentário futebolístico em Portugal tem sofrido grandes mudanças nos últimos anos", disseram-no ipsis verbis, e com todas as letras, Luís Vilar, comentador da CNN e docente da Universidade Europeia, e Tomás da Cunha, da Eleven Sports, aquando do Thinking Football, edição de 2022. Também não subsistem dúvidas de que Alves dos Santos trouxe e foi, todo ele, um paradigma, pelo que só falta saber se Gabriel Alves, Rui Tovar e Ribeiro Cristóvão - no fundo, a jeunesse dorée do "Domingo Desportivo I" - terão sido uma simples geração-charneira entre dois modelos históricos ou se foram mesmo, e efectivamente, protagonistas de um novo paradigma do comentário futebolístico. Para dilucidar essa questão, remetemos os leitores para outro catedrático do esférico, o filósofo Manuel Sérgio, e para o seu conhecido e importante ensaio saído nas páginas d"A Bola, que abre logo a matar, falando "na epistemologia kuhneana de investigação científica", mas que termina mais terra-a-terra, com as palavras: "abençoadas artroses que me afligem!" (cf. Manuel Sérgio, "Esta palavra «paradigma»", A Bola, de 8/8/2017).
Eternizado pela expressão-conceito "a força da técnica e a técnica da força", que dá nome ao podcast que hoje mantém no Observador, Gabriel Alves teve o privilégio único, irrepetível, de acompanhar de perto, desde os anos 60, os tempos dourados do "futebol-espectáculo", hoje desaparecido, ou vendido aos árabes. Conviveu de perto com os "símbolos dum futebol espectáculo vertiginoso", "marcas dum tempo fronteira do futuro", a quem não poupa elogios: Pelé ("a Referência Eterna"), Eusébio ("nos anos 60 trouxe uma sapatada, era um jogador-força"), Johan Cruyff ("a Inteligência sobre a Relva"), Maradona ("intempestivo em relação ao adversário", "tinha a questão ocular, que era dele, com uma visão periférica fantástica", "tem na História um Cadeirão de Ouro"), Messi e Ronaldo ("enormes"), Zidane ("um Deus da Elegância"), Chalana ("Arte em Movimento"), tantos e tantos outros - e com nós a ver.
Deixou de fumar pelos trinta anos (quatro maços/dia), quando o dr. Ruah lhe disse que, se não parasse, perderia a voz dentro de três meses. Trocou o tabaco pelo vinho, tinto ou branco, e, uma vez mais, com desarmante humildade, confessa que aprendeu muito com enólogos, produtores, veros conhecedores. Tem um "núcleo versátil e duro" de amigos com outros amantes dos vinhos, e não só, e é pai de uma Raquel e um Francisco, já crescidos, com quem forma uma família de, e cita-se, "intrínsecos e equidistantes". Nas suas páginas das redes, define-se, com graça e ironia, como um "simples amante da geometria desportiva." Muito grande, sempre.
Numa entrevista recente, à Rádio Observador, confessou: "nunca fiz da televisão o meu modus vivendi". Não fez o dele, mas fez o nosso. E agora, que aos domingos não o temos, está tudo muito pior.
*Prova de vida (9) faz parte de uma série de perfis de verão.
Historiador. Escreve de acordo com a antiga ortografia.