Francisco Rodrigues dos Santos, a quem chamaram "Chicão"

Francisco Rodrigues dos Santos, a quem chamaram "Chicão"

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Francisco Rodrigues dos Santos, o jovem político que o país conheceu como “Chicão”, ficará para a História, que é madrasta, como o rapaz-coveiro do CDS-PP, um partido português de centro-direita criado logo a seguir à revolução de Abril, em 19 de Julho de 1974, e que, nas legislativas de 30 de Janeiro de 2022, obteve o seu pior resultado de sempre, pelo que acabou escovado do Parlamento e, em conformidade, passou a integrar a 2.ª liga da política nacional, ao lado de formações catitas como o PCTP/MRPP, o R.I.R., o Ergue-te ou o MAS – Movimento Alternativa Socialista. 

 Agora, e à boleia da nova AD, Nuno Melo conseguiu fazê-lo renascer das cinzas e o CDS não só regressou à Assembleia como garantiu até lugares no governo desta nação. Porém, e imagine-se, “Chicão” parece não ter gostado e, em entrevista à CNN, veio lamentar a “subalternização” do partido no seio da AD, criticando a “quase fusão” entre o CDS e o PSD. De caminho, lançou farpas à Iniciativa Liberal (“O Rui é rocha, mas as convicções são de palha”), fustigou o Chega por “vender utopias às pessoas”, apelou ao diálogo com todas forças do “arco democrático”, onde incluiu o partido de Ventura, mas não o Livre ou o PAN, e, enfim, terminou com um inesperado elogio a Pedro Nuno Santos, com quem disse que a AD tem mesmo de falar. Para justificar o diálogo com os socialistas, afirmou que as soluções políticas se constroem “ao centro” e descreveu o actual quadro político com recurso a uma metáfora de pastelaria, dizendo que o mesmo se afigura hoje como um donut, com “as franjas preenchidas, mas um grande buraco ao centro.” Além do donut (e de uma fábula sobre uma formiga e um elefante), achou poucochinho o triunfo da AD, “uma vitória com sabor a empate”, uma “vitoriazinha”, e, de caminho, ou carrinho, deu uma alfinetada em Portas e em Cristas (a campanha, quanto a ele, “não correu bem à AD” e não passou de “um desfile de protagonistas do passado que foram sinalizados em voto dos portugueses dizendo não queremos mais do mesmo”, o que talvez se aplique também a ele próprio). De permeio, menorizou os dois deputados que o CDS elegeu, afirmando que o líder prometera bem mais, quatro a seis parlamentares. De facto, dois parlamentares poderá ser pouco, mas sempre diremos que, assim como assim, sempre é melhor do que zero, o score averbado pela sua liderança nos idos de Janeiro de 22.                

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Num passado remoto, velho de cinco décadas, o CDS teve como fundadores Diogo Freitas do Amaral, Adelino Amaro da Costa, Basílio Horta, Victor Sá Machado, Valentim Xavier Pintado, João Morais Leitão ou João Porto, entre outros, e bastaria a enumeração desse elenco, e o seu confronto com a realidade dos nossos dias, para, sem favor nem esforço, darmos razão a Michel Houellebecq quando este aludiu um dia à “irreversibilidade absoluta de todo o processo de degradação” (l’irreversibilité absolue de tout processus de dégradation). De facto, entre Freitas/Amaro da Costa, de um lado, e Francisco “Chicão”, do outro, vai um plano inclinado rumo ao abismo, revelador de um dos maiores dramas da actual política portuguesa: a mudança ditada pelo desaparecimento da geração dos “políticos de Abril” e a sua substituição por líderes formados e recrutados exclusivamente nas “jotinhas”, com escassa ou nenhuma experiência profissional e de vida para além do estreito mundo da politiquice e do pantanoso reino das juventudes partidárias.  

O que mais impressiona e confrange no declínio do CDS-PP, que as passadas eleições mal disfarçaram, não foi, contudo, o ter sofrido um desaire eleitoral estrondoso em 2022, fenómeno conjuntural e passageiro, passível de resolução, mas antes, e isso sim, o facto de esse fracasso ser sintoma de algo bem mais vasto e profundo e, como tal, do domínio do irreversível ou, se preferirmos, do irrevogável. Com efeito, o desenho do nosso regime de financiamento dos partidos e das campanhas eleitorais, muito favorecedor para quem alcança lugares em São Bento, mas particularmente causticante para os que ficam de fora, a que acresce o desinteresse dos media e da opinião pública pelos “pequenos” e, no caso do CDS, o supremo opróbrio de ter descido para a divisão segunda, após décadas na liga cimeira e até de presença em governos vários, tudo isso dificulta sobremaneira a vida de qualquer liderança que se proponha devolver o partido à sua casa de morada de família, de onde foi sumariamente evacuado. Pior ainda: por atavismo ou timbre de povo invejoso, os portugueses são, de seu natural, impiedosos para com os perdedores e os falhados, sobretudo quando estes outrora foram poderosos, o que complica ainda mais a tarefa hercúlea, mas meritória, de fazer o CDS renascer das cinzas e da poeira. 

A débacle de 2022, como é evidente, não pode ser assacada a um homem só, até porque, nesse fatal sufrágio, o CDS de Chicão teve de afrontar uma tenaz esmagadora, com o eleitorado conservador a fugir-lhe para o Chega e o mais liberal capturado pela IL, duas formações que, além de tudo o mais, traziam consigo o encanto do “novo” e o chamariz de não estarem comprometidas nem corrompidas pelo “sistema.” No fundo, os populares viram-se confrontados, e entalados, pelo dilema conservadorismo versus liberalismo que desde sempre dilacera a direita, e que foi detectado, entre muitos outros, por Anthony Giddens em Beyond Left and Right: The Future of Radical Politics, 1994. Na verdade, como todo o ideário conservador radica no pessimismo, é-lhe muito difícil articular uma proposta política que não tenha na base o ressentimento (desde logo, ressentimento contra a modernidade), tarefa muito mais bem desempenhada por uma força outsider como o Chega do que por um partido que há décadas faz parte do regime e nele esteve integrado ao mais alto nível (o Chega, porém, que se cuide, pois com o passar dos anos, e num tempo cada vez mais volátil e sedento de novidades, irá perdendo o glamour de ser “jovem” e a força sedutora do “protesto”; convertido em partido do “sistema”, ficarão mais expostas as óbvias fragilidades do seu grupo parlamentar numeroso, prenhe de nulidades, e outros tantos meliantes; se acaso não riscar num governo, muitos dos seus eleitores perceberão então, afinal, que votaram só num boneco, mas também e só para o boneco).  

Restava ao CDS a alternativa do liberalismo, mas, como a IL bem intuiu, não é possível ser laissez-faire na economia e não o ser também em matéria de costumes ou moral privada. É certo que o partido de Ventura ensaiou, e aparentemente com êxito, essa quadratura do círculo, proclamando-se conservador nos costumes e defensor do mercado livre. Simplesmente, do Chega não se pede nem espera consistência nos planos doutrinal e programático, desde logo porque uma parcela significativa do seu eleitorado não se apercebe – ou se percebe, não se importa – das muitas incoerências de uma força nada e criada nos tempos do pós-vergonha. Eis outra desvantagem dos herdeiros de Freitas e Amaro da Costa.   

Sendo, pois, complexa e árdua a missão de Chicão, este fez questão de a dificultar mais ainda e, ao longo de meses de tumulto e fúria, a sua liderança nem sequer conseguiu segurar os nomes mais conhecidos e mais qualificados do CDS-PP, os quais, a solo ou em grupo, foram abandonando em catadupa o partido, alegando divergências várias, das quais a mais grave foi uma insólita suspensão do 29.º congresso dos populares, decidida por um conselho nacional marcado de urgência e realizado virtualmente, por via remota. Esta sangria desatada acabou por comprometer o activo mais importante dos populares, o bem mais precioso que estes tinham para oferecer ao seu eleitorado real e potencial, ou seja, os seus “quadros”, rostos conhecidos dos portugueses, muitos dos quais respeitados e prestigiados pela sua presença mediática ou pelas suas anteriores performances nos planos governativo ou parlamentar (sobre o tema, Francisco, sempre metafórico, afirmou com desdém, mas tendo alguma razão, que um partido não podem ser só quadros para embelezar as paredes).  

A debandada teve outro efeito colateral e indirecto: sem eles, sem os “quadros”, a posição do líder ficou desguarnecida, tornou-se mais solitária, quiçá mais autista, e em resultado disso mais exposta nas suas muitas debilidades. Convertido o partido em samba de uma nota só, Francisco começou a surgir aos olhos de milhões de portugueses como um daqueles meninos que, por serem os donos da bola, querem marcar os penáltis todos, e que no final acabam sozinhos no campo, com o esférico debaixo do braço – e uma lágrima a escorrer cara abaixo. Será esse, de resto, o maior e o mais grave pecado da sua efémera liderança: não ter preparado o partido para o desastre que se adivinhava e, sobretudo, para o day after das eleições, deixando o CDS/PP sem figuras ou pessoal político capaz de garantir a sua continuidade e, com sorte, o seu regresso aos palcos da grande política.    

Manda a verdade que se diga que, na história do regime democrático português, todos os partidos do “arco da governação” conheceram rixas de morte e atravessaram graves convulsões internas. O CDS-PP, porém, abusou um bocadinho desta tendência autofágica, havendo até registo de cenas de pancadaria e acusações de agressões entre barões, traço que se adensou nos últimos tempos da existência do partido, quando já era notório o risco da sua extinção a prazo, coisa que a todos era evidente, salvo para os dirigentes populares, que continuaram a digladiar-se alegremente enquanto o navio afundava. Ora, nos partidos grandes as lutas internas parecem ter mais sentido, pois está em causa alcançar o poder e o mando, ser governo do país, e as querelas entre facções são como  que esbatidas pela dimensão da máquina, pela vastidão dos lugares; nas forças políticas mais pequenas, como é o caso do CDS, as rivalidades intestinas rapidamente adquirem contornos caricaturais e anedóticos, muito pessoalizados, pois não se vislumbra o alcance e o propósito de tantas guerrilhas patéticas – e patetas –, as quais, vistas de fora, mais parecem uma monumental garotada ou zaragatas de formigas numa caixa de fósforos, travadas a troco de nada, de poder nenhum. A dado trecho, a vida do CDS-PP mais fazia lembrar os saudosos tempos da trolha no MRPP, dos insultos de antologia entre Garcia Pereira e Arnaldo Matos, esquecendo-se os populares que, aos olhos do eleitorado, o primeiro ónus que recai sobre um partido pequeno é o da credibilidade na frente interna, pois é grande, muito grande, o risco de os votantes não o levarem a sério, tomando-o por uma associação de estudantes ou uma reunião de condóminos desavindos.  

A trajectória descendente do CDS-PP, importa dizê-lo, não começou com Chicão, ainda que tenha acabado com ele. Já nas legislativas de 2019, a sua antecessora, Assunção Cristas, obtivera um dos piores scores da história do partido, com 4,25% e cinco deputados apenas, ainda assim mais um do que os quatro parlamentares “do táxi”, nos tempos de Adriano e das maiorias de Cavaco. Depois, em 1995, com Manuel Monteiro, o partido averbou um resultado histórico, conseguindo eleger 15 deputados, que bisou em 1999, e que alargou em 2009, onde chegou a 21 deputados, aumentados para 24 parlamentares em 2011. É este pretérito de altos e baixos, de surpreendentes quedas e de outros tantos regressos, que permite alimentar esperanças de uma recuperação, a qual, não sendo impossível, afigura-se bastante improvável, ao menos na actual conjuntura, mesmo com triunfo modesto no passado 10 de Março.  

 Nunca se saberá ao certo se o que aconteceu a Chicão, eleito no Congresso de Aveiro, em Janeiro de 2020, ocorreria com qualquer outro líder no seu lugar, já que às suas falhas conjunturais, e aos seus erros de estratégia e táctica, se associaram problemas mais vastos, ou mais fundos, podendo dizer-se que, em boa medida, a erosão de uma força democrata-cristã como CDS-PP decorre de movimentos e de tendências que em muito ultrapassam as respectivas lideranças, sobretudo quando estas se arvoram em protagonistas de “princípios” e de “valores” que, bem ou mal, dizem cada vez menos a parcelas muito significativas do eleitorado, em especial o mais jovem. O declínio do CDS-PP, na sua feição de partido defensor da família tradicional e dos valores cristãos, é um dos indícios mais expressivos da secularização da sociedade portuguesa, da erosão do “voto católico” e do peso da influência político-social da Igreja (e das Forças Armadas), da sexualização crescente da esfera pública, do predomínio de um hedonismo autocentrado e presentista, exponenciado no pós-Covid e patente no sucesso das rubricas de lifestyle ou dos gurus de autoajuda, e também, noutro plano, da desertificação do interior do país e da derrocada do “mundo rural” (ou “da lavoura”, como gostava de dizer um dos seus dirigentes).  

Ao concentrarem a sua agenda nas questões ditas “fracturantes” – o casamento gay, a adopção por homossexuais, a “ideologia de género”, o aborto e a eutanásia, a educação sexual nas escolas –, Francisco Rodrigues dos Santos e os seus colegas de direcção podem ter dado vazão às suas mundividências próprias, às preocupações existenciais do grupo a que pertencem – jovens quadros burgueses já instalados na vida, com lugares nas empresas e nas sociedades de advogados de Lisboa e Porto –, mas mostraram não estar em sintonia com a realidade de um eleitorado para quem, sobretudo entre os mais jovens, as angústias maiores não são essas, filosóficas ou “de princípios”, antes questões bem concretas, do domínio material e terreno, como a falta de saídas profissionais condignas para as qualificações que possuem, os salários baixos para as aspirações que têm, a falta de habitação, a emergência climática. Problemas, no fundo, de desesperança no futuro, muito intensos nas periferias das grandes cidades ou nas terras de província, problemas a que o CDS de Chicão não soube ou não quis dar resposta, ou sequer vaga promessa. Em campanha, Francisco chegou a falar de toiradas, defendendo-as (“uma arte performativa com raízes culturais”), sem ter, do mesmo passo – ou, pelo menos, sem as ter expressado de modo audível para o eleitorado –, propostas sobre o emprego, a habitação, o ensino, os transportes, o ambiente. Na recta final da campanha, a uma semana do acto eleitoral de 30 de Janeiro de 2022, propôs-se para ministro da Defesa – e Rui Rio mostrou-se disposto a isso –, centrando-se, uma vez mais, em questões de elevado simbolismo, mas destituídas de relevância para o futuro militar do país, como a situação dos nossos antigos combatentes e a trasladação para Portugal de corpos de soldados mortos na guerra de África. No fundo, e talvez sem se aperceber desse facto, o discurso do CDS-PP orientou-se ora para um mundo de ontem, hoje em franco recesso, ora para questões de elevada carga ideológica, ou simbolismo, simétricas das da cultura woke, umas e outras mediaticamente fulgurantes, é certo, mas alheias aos verdadeiros anseios de quem escolhe e vota.   

Muitos criticaram-lhe a juventude, o verdor dos anos, quando o seu problema era outro a inexperiência ou, pior ainda, a imaturidade: Freitas do Amaral tinha pouco mais de 30 anos quando fundou a CDS, a mesmíssima idade de Chicão quando foi eleito líder (e, de resto, Manuel Monteiro chegou a líder ainda mais novo, com 29 primaveras). Simplesmente, Freitas tinha um longo currículo atrás de si, era professor de Direito, fora membro da Câmara Corporativa, convidado por Marcello para ministro da Justiça, ao passo que Rodrigues dos Santos ocupara cargos diversos – dirigente associativo na Faculdade de Direito, adjunto de ministro, líder da Juventude Popular, membro da assembleia municipal de Carnide, deputado municipal de Lisboa –, nenhum dos quais de relevo. A Forbes, é certo, qualificara-o em 2015 como “um dos 30 jovens mais brilhantes e influentes da Europa” (ao lado do bailarino Marcelino Sambé e das empreendedoras de vestuário de luxo Filipa Neto e Lara Vidreiro), mas essas coisas valem o que valem, ou seja, menos que zero. Para mais, e o ponto não é de somenos, enquanto aos 30 anos Freitas parecia ter uns 60, enquanto Manuel Monteiro se esforçava por parecer mais velho, no verbo e na pose (dedo em riste, blazers assertoados, gravatas às riscas, enormes óculos de massa), Chicão não conseguia iludir o ar de eterno miúdo, de olhar muito aberto, extasiado ante o mundo e as coisas nele existentes, o que, sendo um dos seus maiores encantos, sem dúvida, não se coadunava com o perfil de um candidato a primeiro-ministro. Nas entrevistas, dizia gostar de tofu, ter por hobbies o cinema e a leitura (história, política, biografias) e gostos musicais eclécticos – Coldplay, Beatles, Queen, Pearl Jam, Rui Veloso, Samuel Úria, B Fachada e até Zeca Afonso – enquanto apresentava o seu programa, bárbaro e muito oco: “o CDS deve ser uma direita que não tem problemas em ser disruptiva, uma direita que não tem medo de ser inconveniente, de atentar às vezes contra o establishment, contra algumas elitezinhas gourmet, socialista, bem-pensante. É um partido que vem para agitar as consciências, mas ao mesmo tempo é um partido que é moderado.”  

Apesar de breve e meteórica, a sua passagem pela política não foi isenta de certas polémicas. Assim, nas vésperas do congresso de Lamego, em 2018, os militantes da Juventude Popular receberam uma mensagem dizendo-lhes para se “diferenciarem dos restantes congressistas”, não levando fato e gravata, e, depois, no decurso dos trabalhos, dezenas deles subiram ao palco durante a noite e a madrugada, arrastando os debates até às cinco da madrugada, apenas com a exigência de que Chicão fosse integrado nas listas de candidatos a deputados, manobra cuja autoria o próprio não assumiu. Mais tarde, partilhou nas redes uma fotografia sua ao lado da noiva, com a legenda “Estabilidade Emocional”, numa indirecta ao Crédito Agrícola, que pagava à mulher do seu presidente uma avença para garantir a “estabilidade emocional” do marido. Lembraram-lhe na ocasião que a sua namorada também tinha sido avençada do CDS na câmara municipal de Lisboa, tendo ele dito que não tivera influência na escolha da contratada. Mais tarde, antes de um congresso, deu uma entrevista à Rádio Observador, na qual exigiu, muito Calimero, que largassem de vez o nome Chicão: “todos os políticos em Portugal são tratados pelo nome, menos eu. Por isso, chamem-me Francisco.” Por fim, em Dezembro de 2020, aquando do confinamento provocado pela epidemia da Covid-19, decidiu ir visitar os empresários da restauração que estavam em greve de fome às portas da Assembleia, tendo um deles, Ljubomir Stanisic, dito para Chicão se ir embora dali, em cena constrangedora (depois, Ljubomir pediria desculpas, mas o mal estava feito).  

De barretina na lapela, grosso cordão de prata e crucifixo ao pescoço, doente pelo Sporting, Francisco Rodrigues dos Santos representou, a seu modo, o estertor do betismo na política portuguesa. Outrora, não há muito tempo, essas características sociais, ou estético-sociais, digamos assim, tinham deveras importância para muito eleitorado de direita, ou centro-direita, tendo o seu auge nos sobretudos loden da campanha de Freitas, mas marcando também o dress code de todos os dirigentes centristas. Agora, no Parlamento, por banda da Iniciativa Liberal, vemos deputados desgravatados e em calças de ganga, pouco distinguíveis dos da esquerda extrema, e os parlamentares do Chega aperreados em fatos brilhantes que mal disfarçam as suas origens lumpen, a prova provada de que, do ponto de vista da composição sociológica, a direita mudou e muito nos últimos anos. Por um lado, devido a uma natural e saudável remodelação das classes e das elites, mas também, por outro lado, devido a uma transformação mais imperceptível, mas não menos decisiva, na esfera do “social”, agora rarefeito de titulares da nobreza ou empresários de vulto, e antes povoado de apresentadores da TV, jogadores da bola ou estrelas do Big Brother, num movimento democratizador, é certo, mas que transporta a arrasadora lei da vulgaridade e do kitsch até aos lugares de onde ela deveria estar militantemente ausente. São pormenores como este, só aparentemente menores, que mostram como, no Portugal deste século, até o conservadorismo mudou, um singular paradoxo carregado de significado político. Por isso, até por isso, tinham de ser outros, muito outros, o discurso e o registo de um líder conservador de direita, o qual, ao apostar em excesso no ataque à “esquerda gourmet”, acabou condicionado por ela.   

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Francisco José Nina Martins Rodrigues dos Santos nasceu em Coimbra aos 29 de Setembro de 1988, sendo portanto Balança ou Dragão, consoante o zodíaco que perfilhemos. O mais velho de três rapazes, filhos de um oficial do Exército e de uma advogada, viveu em Coimbra até aos cinco anos, altura em que, por conta do ofício do pai, a família se mudou para Vila Nova da Barquinha. Depois, aos nove anos, foi para o Colégio Militar, onde fez o secundário e aprendeu, diz, “valores que tenho no meu código de honra para a vida”. Aí foi distinguido com o Prémio General Jaime Banazol, em Outubro de 2006, e escolhido pelos seus colegas – ou, melhor dito, camaradas – para adjunto do comandante da 1.ª companhia. Ganhou também nessa época a alcunha de “rato”, transmitida aos seus irmãos (João, hoje controlador de tráfego aéreo, e Nuno, dentista). O petit nom “Chicão”, que não aprecia, só surgiu anos mais tarde, já nos tempos da Faculdade, devido às suas capacidades de liderança e à popularidade entre os seus pares, não sendo verdade, ao contrário do que dizem as más-línguas, que o epíteto se deva às posições conservadoras com que irrompeu no partido, quando se ergueu a favor da criminalização do aborto, posição que depois abandonou, ou quando recusou que as uniões de homossexuais pudessem ser chamadas de “casamento”, já que este, disse, “tem uma origem canónica”.  

Depois do Colégio Militar, seguiu em 2007 para a Faculdade de Direito de Lisboa, onde se formou em 2011, não sem antes ter sido presidente da Mesa da RGA da Associação Académica e, por inerência, da Comissão Eleitoral e do Conselho Consultivo de Representantes daquela Faculdade e membro do Senado da Universidade de Lisboa. A seguir ao curso, fez o estágio na ABBC Advogados, entre 2011 e 2014, data em que começou a trabalhar na sociedade de advogados Valadas Coriel & Associados, onde esteve até 2020. 

Antes de enveredar pela política, Francisco leu as cartas de princípios do CDS, do PSD (partido pelo qual o avô materno chegou a vice-presidente da câmara de Oliveira do Hospital e a presidente da junta de freguesia de Nogueira do Cravo) e até a do PS, mas esta “só por curiosidade”. Convidaram-no amiúde para se inscrever na JSD, chegaram a entregar-lhe para as mãos a ficha de militante, mas declinou, optando pela Juventude Popular, na qual se filiou em 2007. Depois, em 2011, matriculou-se no CDS-PP.  

Dois anos depois, foi eleito membro da assembleia de freguesia de Carnide, cargo que ocupou até 2017. Entretanto, em Dezembro de 2015 fora eleito presidente da Juventude Popular, funções que desempenhou até Janeiro de 2020 e que lhe valeram ter sido, entre 2016 e 2019, membro e vice-presidente da International Young Democrat Union (IYDU), entidade que hoje congrega 78 organizações nacionais de jovens de centro-direita de todo o mundo, “unidos por um desejo comum de mais liberdade e menos governo.”  

Entre Outubro e Dezembro de 2015 – escassos três meses, portanto –, foi adjunto do ministro da Solidariedade, Emprego e Segurança Social, Pedro Mota Soares. Noutro plano, e apesar de defender “ao futebol o que é do futebol, à política o que está reservado à política”, foi membro do conselho directivo do Sporting Clube de Portugal entre 2018 e 2020, nas listas de Frederico Varandas. Nas autárquicas de 2021, foi candidato à presidência da assembleia municipal de Oliveira do Hospital, fazendo-o, disse, em nome de três amores – amor à terra, amor à família e amor ao projecto – um argumento Marco Paulo que não convenceu os povos oliveirenses, que deram uma retumbante vitória ao PS, com 54,84% dos votos.  

Em 2020, foi eleito 10.º presidente do CDS-Partido Popular, do qual se demitiria dois anos depois, no rescaldo da catástrofe. Hoje trabalha como advogado num escritório de Lisboa, frequenta um curso de Psicologia e está voluntariamente afastado da política, e vice-versa. Casado com Inês Guerra Vargas, nutricionista, que conheceu nas fileiras da Juventude Popular, foi pai de um rapaz, José Pedro, por sinal nascido em 2022, o ano em que, por conseguinte, teve o maior fracasso da sua vida pública e o maior triunfo na vida privada. Talvez isso lhe mostre, esperemos, que é nesta última que será mais realizado, até porque tem todas as condições pessoais e familiares para sê-lo e, sobretudo, acima de tudo, porque o merece. Há dias, na televisão, disse “continuo a interessar-me pelo meu país, sou um patriota”, coisa de que não duvidamos. Já quanto a um eventual regresso à política, afirmou, sebastiânico, “não fecho essa porta, mas também não a abro.” Encontra-se, pois, a espreitar pelo buraco da fechadura, tal qual as crianças quando olham para o quarto dos crescidos. Esperemos que assim se mantenha, para seu e nosso bem, e que de caminho comente, como também tem feito amiúde, ou miúdo, as exibições dos leões, matéria em que é versado, e pelos vistos feliz.  

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