Fernando Pessoa, o discreto provocador
Onde outros viram solidão e alcoolismo, João Pedro George vê autoconfiança intelectual e gosto pela provocação. Essa é a chave da biografia que dedica a Fernando Pessoa, a que deu o título de O Super-Camões.
Ao descrever o nascimento de Fernando António Nogueira Pessoa, às 15 horas e 20 minutos, do dia de Santo António de 1888, o sociólogo João Pedro George não hesita em considerar que vinha ao mundo "o bebé mais importante do século XX português." Assim, neste tom afoito, abre O Super-Camões Biografia de Fernando Pessoa, obra de 960 páginas, tão desconcertante no conteúdo como prometem título e capa. Sem temer a velha blague de que "tanto Pessoa já enjoa", o sociólogo e crítico literário avança para uma narrativa em que o poeta é visto sob uma luz diferente da habitual, menos trágica e mais humana. João Pedro George, hoje crítico literário na revista Sábado, e investigador do Instituto Português de Relações Internacionais, prepara neste momento uma biografia de outro poeta - Herberto Helder. Da sua bibliografia publicada destacam-se títulos que tornam evidente o gosto assumido pelo ato de desconcertar: O Meio Literário Português: Prémios Literários, Escritores e Acontecimentos; Couves e Alforrecas. Os segredos da escrita de Margarida Rebelo Pinto; Não é Fácil Dizer Bem. Críticas, obsessões e outras ficções; Vocês Sabem do Que Eu Estou a Falar, Biografia de Octávio Machado; Como Sobreviver a Um Terramoto em Portugal; P*** Que os Pariu! A Biografia de Luiz Pacheco ou Chatear o Camões. Inquérito à Vida Cultural Portuguesa.
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No mercado editorial português existem vários livros sobre a vida e obra de Fernando Pessoa, uns mais antigos e outros mais recentes. Se tivesse de apresentar as vantagens da sua obra a um leitor indeciso, o que diria?
Provavelmente diria que no meu livro encontram o melhor de muitos outros livros. Creio que consegui conjugar o resultado das boas investigações que já foram feitas e publicadas, articulando-as à minha maneira e de uma forma atrativa, simples, sem deixar de ser profunda. Pessoalmente acredito que quem escreve, investigador ou escritor, tem o dever de ser claro para falar às pessoas de coisas que podem ser complexas. Isto, apesar de eu considerar que o Fernando Pessoa não é um autor difícil de ler. O que pode assustar um pouco é este matagal de publicações, interpretações e jogos de linguagem feitas a partir dele. Criou-se um bocadinho a ideia de que Pessoa foi quase um extraterrestre e que é preciso um foguetão para chegar até ele. Na verdade, penso que foi um homem simples, nada pretensioso, sem deixar de ser profundo. Mas o meu objetivo é essencialmente atrair leitores para a obra dele e é também por isso que incluo muitos excertos de textos seus.
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O livro tem uma capa que podemos considerar pop. A ideia é mostrar o Pessoa como uma personagem quase de Banda Desenhada?
A ideia foi essencialmente essa. Quando discuti esse assunto com o Francisco Camacho, que é o editor, e com o Rui Garrido, que é o autor da capa, chegámos a acordo que com este título - O Super Camões - tínhamos de ser ousados.
Que também é um título provocatório, embora use uma expressão de um texto ortónimo dele...
É e também se podia usar o título Super Pessoa. Mas houve um dia em que eu liguei ao Francisco Camacho e disse-lhe: "Acho que já me lembrei dum título para o livro" e estivemos de acordo quanto ao Super Camões. A capa foi pensada a partir desta opção porque remete para os comics e para os super heróis, mas também para a estética pop do Roy Lichtenstein. Não queríamos mesmo tratar o Pessoa como uma figura sagrada. Como cidadão, ele era um homem simples, reservado, educado, que trabalhava como correspondente comercial para vários escritórios de Lisboa. Seria aquilo a que hoje chamaríamos um freelance.
O facto de ser muito fluente em Inglês, quando pouca gente o era em Portugal, tornava o seu trabalho muito requisitado?
Seria, de facto, das poucas pessoas bilíngues neste idioma, no Portugal da época, o que também lhe proporcionou uma cultura muito sólida. Na África do Sul, estudou num ambiente inglês e numa sociedade colonial, muito marcada por essa influência. Leu na escola as grandes obras dos autores ingleses. Shakespeare, Milton, Shelley. Mais tarde, quem o introduz na literatura portuguesa é Henrique Rosa, o irmão do padrasto, que o levará também para os meios literários de Lisboa. Apresenta-o, por exemplo, ao poeta Camilo Pessanha.
Ele vinha dum meio culto. O pai, que morreu muito novo, escrevia sobre música no DN. Esse ambiente foi importante?
Eu diria que foi fundamental. Nascer numa casa com livros transmite, antes de mais, uma confiança social muito grande. No caso dele, como no de toda a gente.
O pequeno Fernando foi uma criança acarinhada?
Eu penso que sim. Um dos aspectos que distingue esta biografia de outras é demonstrar que a infância do Pessoa não foi especialmente infeliz ou muito traumática. Teve as dores que a maior parte das pessoas tinham nessa época: a morte prematura do pai e a de um irmão que morreu criança. A mortalidade infantil era elevadíssima e raras eram as famílias que não tinham vários casos destes. A morte do pai foi com certeza um momento marcante mas, ao contrário de vários biógrafos (sobretudo do Gaspar Simões), eu não creio que o segundo casamento da mãe tenha sido uma fonte de sofrimento para ele. Não me parece que o padrasto tenha sido um intruso, os dois tinham, aliás, uma boa relação. Na verdade, o casamento da mãe proporcionou-lhe melhores condições de vida. Temos de nos lembrar que, ao ficar viúva, a mãe do Fernando Pessoa teve de mudar de casa, teve de vender móveis porque iam para uma casa mais pequena. Na África do Sul, onde o padrasto foi colocado, eles tinham uma vida de classe média alta, que não teriam de outro modo, embora a família da mãe, originária dos Açores, tivesse alguns meios de fortuna. Há um momento de conflito entre os dois, sim, mas quando o Pessoa já estava em Lisboa e desistiu do curso na Faculdade de Letras. É possível que o próprio pai tivesse feito o mesmo, se fosse vivo. Também neste aspecto, estou convencido que o Gaspar Simóes (durante muitos anos o único biógrafo de Pessoa) quis alimentar o mito do escritor maldito.
"Pessoa não tinha a preocupação de distinguir a alta cultura do que é mais popular. No fundo, tudo é cultura e tudo pode ser objeto do nosso olhar e da nossa atenção, o que torna as coisas importantes é a maneira como as tratamos."
Quando antevia o aparecimento de um super Camões, Fernando Pessoa estava já a atribuir-se esse papel? Estava a pensar em si mesmo?
Ele não apreciava particularmente Camões, achava que este teria sido pouco original em relação ao que outros autores europeus da época escreveram. Eu não sei se ele estaria a pensar em si mesmo mas é provável. O que é facto é que a profecia se cumpriu e ele acabou por se tornar um Super Camões, muito mais conhecido por esse mundo fora. Isto não é indicativo da qualidade de um e de outro, mas parece que o Pessoa diz mais coisas a mais gente.
Ele não apreciava Camões por aí além, mas gostava muito de António Nobre...
Sim, gostava muito do Nobre mas também podia deixar de gostar de um momento para o outro. Creio que ele gostava bastante de desconcertar os outros, de ser paradoxal, de ser contraditório,
No seu livro também se refere ao talento de Pessoa para a publicidade, sendo muito conhecido o seu slogan para a Coca-Cola: "Primeiro estranha-se, depois entranha-se". Nesta relação da poesia com a publicidade, ele também foi um pioneiro?
Ele é mesmo um dos pioneiros da publicidade em Portugal, foi contemporâneo da que terá sido a primeira agência no nosso país, a Agência Hora. Mais tarde, veremos que a poesia passou a estar associada à publicidade, através de outros autores como Alexandre O"Neill ou Ary dos Santos. O Pessoa era um tipo com um enorme talento para as palavras, para brincar com elas, e a publicidade também precisa disso. Penso que ele não fazia grande distinção entre aquelas coisas que a nossa sociedade considera muito sérias e as que não o são. Pessoa não tinha a preocupação de distinguir a alta cultura do que é mais popular. No fundo, tudo é cultura e tudo pode ser objeto do nosso olhar e da nossa atenção, o que torna as coisas importantes é a maneira como as tratamos.
Era um espírito livre nesse aspecto?
Podemos dizer que sim e era sobretudo um indivíduo com uma grande segurança quanto à sua inteligência. As pessoas muitas vezes agarram-se a esse tipo de rótulos por insegurança em relação aos seus próprios gostos intelectuais. Preferem agarrar-se ao que já está consagrado há muito tempo do que correr o risco de manchar o verniz.
A relação de Pessoa com a política é tudo menos simples. Como caracteriza essa evolução?
A relação dele com a política evolui das formas mais inesperadas e contraditórias. Quando chega a Portugal, torna-se um republicano ferrenho, ataca a monarquia nomeadamente na questão do cacau de São Tomé, que ele usa para atacar quer o Império Britânico, quer o governo monárquico de Portugal que permitia que continuasse a ser usada mão-de-obra forçada nas colónias portuguesas, apesar da escravatura ter sido abolida. Depois desilude-se muito com a República e começa a interessar-se por governos liderados por elites progressistas ou figuras carismáticas, capazes de motivar nas pessoas um espírito de mudança. Mesmo quando o Salazar chega ao poder, ele manifesta um certo interesse e até alguma simpatia, mas rapidamente percebe que o caminho também não é por ali. Isto acontece sobretudo após a entrada em funcionamento da censura e o aliciamento de intelectuais para a propaganda do regime. Em reação a isso, ele torna-se um feroz anti-salazarista. Os seus textos de ataque à ditadura não foram publicados em vida, mas quando surgiu o decreto-lei que proibia as associações secretas (nomeadamente a Maçonaria, que era o principal alvo desse decreto-lei) ele escreveu, no Diário de Lisboa (4-2-1935), um artigo muito bem feito que o tornou muito conhecido do grande público, extravasando os meios culturais e artísticos. Quando eu disse que o Fernando Pessoa, se vivesse hoje, votaria na Iniciativa Liberal, as pessoas ficaram muito chocadas. No entanto, não se cansam de discorrer sobre a sexualidade dele, ora dizendo que era virgem, ou homossexual e, para afirmações dessas, é que não há mesmo bases nenhumas.
Ao apoiar o poeta António Botto, que era assumidamente homossexual e por isso veio a ter graves problemas com o regime, Pessoa estava à frente do seu tempo?
Demonstrou muita coragem. Foi capaz de fazer o que estava certo, numa época em que isso era bastante mais difícil. Também a esse propósito não faltou quem dissesse que o melhor período literário deste não era mais do que um heterónimo do Pessoa. Ou seja, teria sido Pessoa a escrever o que ele assinava nesta época. Outros dizem ainda que Pessoa projetou a sua suposta homossexualidade nos elogios que fez à poesia do Botto.
No entanto, Mensagem, o único livro de Pessoa publicado em vida, está carregado de um imaginário imperialista.
Mas ele era uma pessoa do seu tempo. Terá dito coisas que nos parecem racistas ou sexistas, sim. Mas ninguém é uma coisa só. Todos nós somos uma coisa e o seu contrário.
Esta biografia também vem contrariar o mito do poeta solitário, arruinado pelo alcoolismo e pela solidão?
Há, aliás, uma velha tendência para ver o artista ou o poeta como alguém que está contra ou à margem da sociedade, movido pela luta contra forças mais poderosas. A nossa civilização assenta sobre essa ideia de Jesus Cristo contra o império romano. O João Gaspar Simões criou o mito do Pessoa solitário, que, em sofrimento por causa dessa solidão, se tornou alcoólico e teria morrido por causa disso, ainda novo, consumido por uma luta solitária e pela incompreensão. As culturas judaico-cristãs gostam muito desta narrativa. Com o Romantismo, a coisa agudizou-se ainda mais. Não é por acaso que o século XIX é a época áurea das biografias, uma tendência depois contrariada no século XX pelas Ciências Sociais, nomeadamente a História e a Sociologia.
Mas esse individualismo persiste associado à Literatura?
Persiste, de um modo geral, nos meios artísticos, onde ainda encontramos resquícios de uma mentalidade aristocrática. Como se quem os integra ainda tivesse direitos especiais que os outros não têm. Ouvimos frequentemente: ah, ele era um tipo intragável mas era genial. Ora, com o Fernando Pessoa, que não parece ter sido intragável (fartava-se de brincar com os sobrinhos e era, de um modo geral, um homem gentil), houve a necessidade de dizer que criou todos aqueles heterónimos porque foi um homem muito sozinho e infeliz. E que morreu cedo por causa disso. Mas pode muito bem não ter sido assim.
dnot@dn.pt
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