Fausto. O adeus do navegante de canções
Morreu no ano em que se celebra o quinto centenário de Camões e há, nessa mera casualidade, um arremedo de justiça poética. O músico e compositor Fausto Bordalo Dias, que morreu ontem, vítima de doença prolongada, aos 75 anos, deixa-nos, em forma musical, a antiepopeia das navegações portuguesas pelo mundo, ditada mais pela miséria do que pela ânsia de conquista. Uma espécie de História Trágico-Marítima cantada, em que a melancolia se desprende de versos como este: “Vai ao fundo / E Vai ao fundo, sim senhor / Que vida boa era a de Lisboa.” (Tema Navegar Navegar).
De resto, Carlos Fausto Bordalo Gomes Dias era, desde o nascimento, a 26 de novembro de 1948, um navegante, já que veio ao mundo em pleno Oceano Atlântico, a bordo de um navio da Companhia Nacional de Navegação, Pátria de seu nome, que levava a sua família, oriunda do Concelho de Trancoso, para Angola.
Ali, no planalto de Huambo, cresceria o rapaz, que, desde cedo, mostraria um gosto forte pela música. Ainda em África, encantou-se pelos ritmos pop e formou uma banda chamada Os Rebeldes.
Quando se fixou em Lisboa, em 1968, Fausto veio estudar no Instituto Superior de Ciências Sociais e Política Ultramarina (antecessor do ISCPS), onde veio a licenciar-se em Ciências Sociopolíticas. Mas os tempos eram de movimentações estudantis contra a ditadura, e, por extensão, contra a Guerra Colonial, abraçou com entusiasmo a causa da resistência.
Em 1986, numa das poucas entrevistas que deu ao longo da vida, disse ao jornalista Baptista Bastos (em texto publicado pelo JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias) : “Optei pela atividade profissional de músico (...) em primeiro lugar para garante da minha felicidade, em segundo para descanso da minha consciência e, em terceiro, para poder olhar para mim próprio e sentir-me mais útil.”
Em 1973, quando já revelara publicamente a oposição à guerra, Fausto não se apresentou ao Serviço Militar Obrigatório, assumindo a difícil condição de refratário. É obrigado, por isso, a suspender os estudos universitários, permanecendo, ao contrário de outros com idêntica opção, de forma clandestina no país. Chegou a “conduzir um carocha, sem carta de condução, que só viria a ter em 1975”, lê-se na biografia sobre o músico, integrada na Enciclopédia da Música Ligeira Portuguesa, dirigida pelos irmãos Luís e João Pinheiro de Almeida.
Ainda assim, a paixão pela música leva-o a contornar as dificuldades, aproximando-o de compositores como José Afonso, Adriano Correia de Oliveira, Manuel Freire e, mais tarde, José Mário Branco e Luís Cília, que então viviam no exílio. Surge como músico acompanhador e nos coros de alguns dos álbuns destes artistas.
Muitos anos mais tarde (em 2011), contaria ao jornalista António Loja Neves, em entrevista ao Expresso, como tudo acontecera: “Quando cá cheguei, em 1969, trazia a música que fazia à sombra dos trópicos, que, aliás, concentrei no disco A Preto e Branco [1988], com coisas dos meus 15, 20 anos... A alteração de padrão deu-se através do contacto com a balada. Conheci o Adriano Correia de Oliveira, o Manuel Freire e depois o Zeca Afonso, que andava sempre atrás de quem pudesse acompanhá-lo, pois ele não tocava lá essas coisas. Acompanhei-os muito, a ele e ao Adriano. A determinada altura, deixei de cantar. Eles cantavam tão bem, e eu dizia: ‘Não canto coisa nenhuma...’ (…) Algumas vezes, cansados, pediam-me duas ou três canções... Eu lá cantava, muito contrariado. Com isso, ganhei confiança. Achava a balada musicalmente rudimentar para o que eu podia desenvolver com a guitarra, mas foi ela que me colocou em contacto com a música tradicional portuguesa.”
Imediatamente após o 25 de Abril integrou o GAC - Grupo de Ação Cultural, coletivo de cantores e músicos politicamente empenhados, juntamente com José Mário Branco, Afonso Dias e Tino Flores, que se encontraram numa sessão de canções revolucionárias em Almada.
Mas a discografia de Fausto em nome próprio começava também a afirmar-se. Surgem Pró que Der e Vier (1974) e Beco com Saída (1975), dois trabalhos marcados pela sua experiência revolucionária. Seguir-se-ia Madrugada dos Trapeiros (1977), que inclui o tema Rosalinda que assinala a sua intervenção social, na oposição à anunciada construção de uma central nuclear em Ferrel, junto a Peniche.
O tema das viagens portuguesas pelo mundo, com os seus feitos, desgraças e contradições, começará a interessá-lo a partir do final da década de 1970, quando publica o disco Histórias de Viageiros, que abre caminho a Por Este Rio Acima (1982), baseado na obra Peregrinação, de Fernão Mendes Pinto.
Em 1988, recebeu o Prémio José Afonso e, em 1994, foi condecorado com a Ordem da Liberdade pelo então Presidente da República Mário Soares. Viriam depois os discos O Despertar dos Alquimistas (1985), Para além das Cordilheiras (1987), A Preto e Branco (1988), Crónicas da Terra Ardente (1994), A Ópera Mágica do Cantor Maldito (2003), com uma perspetiva sobre a História Portuguesa pós-25 de Abril, e o derradeiro, Em Busca das Montanhas Azuis (2011).
A 8 de julho de 1997, em Belém, realizou um dos seus mais marcantes concertos, celebrando os 500 anos da partida de Vasco da Gama para a Índia, no mesmo dia em 1497, a convite da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrimentos Portugueses.
Em 2009, com José Mário Branco e Sérgio Godinho, fez o espetáculo Três Cantos (quatro concertos, dois no Campo Pequeno, em Lisboa, e dois no Coliseu do Porto) sobre o repertório dos três músicos, dando posteriormente origem a um álbum com o mesmo nome. Em declarações à Lusa, Sérgio recordou este disco como um trabalho com um “som muito próprio e muito inspirado”, porque Fausto “era um compositor muito inspirado”, com “belíssimas canções, muito fortes que retratam também uma maneira muito forte de estar no mundo, muito portuguesa”. E acrescentou: “Fausto criou uma estética própria, uma estética própria que seguiu muito essa cartilha que ele tinha criado.”
Regressou aos palcos em 2022, 40 anos anos após a publicação de Por Este Rio Acima, para dois concertos na Aula Magna da Universidade de Lisboa. Foram os derradeiros. Em Lisboa, agora sem o músico, fica o Tejo a ver navios.
As cerimónias fúnebres terão lugar hoje na Voz do Operário entre as 18:00 e as 23:00. O funeral, amanhã, será reservado à família.