Homem da montanha (nasceu em Gouveia, na Beira Alta), Vergílio Ferreira tomou-se de amores pela alentejana Évora, quando, ainda jovem, foi colocado como professor de Português no liceu local. Desse amor, às vezes gémeo da raiva, assombrado pela melancolia e pelos constrangimentos sociais do Portugal da década de 1950, nasceu o romance Aparição e um sem número de testemunhos, como este que o escritor publicou na revista Vértice: "Évora é uma cidade branca como uma ermida. Convergem para ela os caminhos da planície como o rasto da esperança dos homens. E como a uma ermida, o que a habita é o silêncio dos séculos, do descampado em redor. Conheço, dos seus espectros, a vertigem das eras, a noite medieval mora ainda nas ruas que se escondem pelos cantos, nas pedras cor do tempo ouço um atropelo de vozes seculares. Vozes de populaça, gritos de condenados, eco de reis, senhores, estrépito de guerras, ódios e sonhos, sob a imobilidade dos mesmos astros (...)"..Essa consciência de um tempo vivido de forma diferente parece ser um dos trunfos de Évora, Capital Europeia da Cultura 2027. Para a coordenadora de equipa de missão, Paula Mota Garcia, o conceito-chave da candidatura, o que a distinguiu entre todas as outras, expressa com rigor essa relação com o tempo que passa e com o mundo que vai desfilando à porta do histórico Café Alentejo: "O termo que encontrámos, depois da consulta de muitos documentos e a realização de muitas entrevistas, é Vagar, que não tem tradução em língua alguma. Não é o tempo lento, não é o slowly, e muito menos será preguiça. O que propomos é uma mudança de paradigma para o mundo, ao mesmo tempo que lançamos um desafio ao país sobre a leitura que tradicionalmente é feita do Alentejo.".Uma leitura que é, no mínimo, estigmatizante. Paula Mota Garcia sentiu-o na pele, quando, em Março de 2020, a duas semanas do primeiro confinamento imposto pela pandemia, se mudou para Évora. Oriunda do norte do país, recebeu muitas mensagens de amigos e familiares a brincarem com a situação, a perguntarem-lhe, por exemplo, se já tinha feito a sestazinha. "O turista nacional vem para o Alentejo por achar que aqui encontra um tempo de descanso, mas esta região é muito mais do que isso. Tem uma grande profundidade de História, feita de resiliência política, social e cultural.".Neste momento, quando se está a constituir a estrutura de governança que vai gerir todo o processo da Capital Europeia da Cultura, é já possível dizer, como sublinha a coordenadora, que "teremos um programa artístico e cultural de dimensão europeia, mas muito ancorado na relação com a comunidade residente." De resto, sublinha, "a questão da participação pública e do envolvimento da comunidade" foi, desde o início, um dos aspetos mais trabalhados quer pela Comissão Executiva, quer pela Câmara Municipal de Évora..Nesta comunidade há que incluir as valências da Universidade local: "O programa artístico está todo desenhado em função da relação com um departamento específico ou com investigadores da Universidade, em áreas disciplinares muito diversas entre si como a Inteligência Artificial, a História da cidade, a arqueologia, a antropologia, as energias renováveis, os direitos fundamentais dos cidadãos, entre muitos outros.".O programa está agora a ser desenhado, sem perder de vista o mapa das particularidades locais: "O nosso objetivo", diz Paula Mota Garcia, "é voltar a dar voz ao Alentejo, não apenas à cidade de Évora". Iniciado o trabalho preparatório da candidatura em 2020, a coordenadora sente que a introspeção ditada pelas circunstâncias levou a equipa a tomar consciência de que "o Alentejo já está a fazer um caminho de futuro há muito tempo." À medida que o trabalho de pesquisa se ia aprofundando, concluiu-se que, na verdade, esta região, um pouco menosprezada pelo país ao longo de décadas a fio, "tem todo o tipo de recursos que o mundo pede neste momento histórico de aflição.".A vertigem das eras, de que falava Vergílio Ferreira, toma, assim, uma consistência material, de coisa com que se come à mesa: "A ideia do tempo no Alentejo está muito presente. As pessoas estão diariamente a ser confrontadas com outras civilizações e com a ideia de que estamos sempre de passagem. A civilização romana e islâmica estão omnipresentes, bem como as primeiras sociedades recoletoras, como vemos no centro interpretativo dos Almendres.".Não menos importantes são as boas-práticas ambientais que esta região do Alentejo tem para partilhar com o mundo: "O próprio montado pode ser uma proposta de presente e futuro porque estabelece uma relação de equilíbrio entre o animal e a natureza. Por outro lado, a gastronomia alentejana, tão saborosa, evita o desperdício e há muito que os alentejanos introduziram a poupança de água nos seus hábitos, porque a consciência de que ela é um bem escasso não é de hoje.".Também o presidente da Câmara de Évora, Carlos Pinto de Sá, valoriza a relação da Capital Europeia com as estruturas implantadas na região: "Não iremos adquirir eventos no estrangeiro, mas sim construir projetos de raiz, usando muitas valências que já existem. Estou-me a lembrar, por exemplo, do projeto da construção do Centro Polifónico Internacional que parte da tradição da Escola de Música da Sé de Évora, que teve uma grande importância mundial. O mesmo acontece com o Centro Dramático de Évora (CENDREV), instituição histórica da cidade e do próprio país, já que, sob a direção de Mário Barradas, foi uma das estruturas pioneiras da descentralização cultural em Portugal, pouco tempo após o 25 de Abril. Queremos dar continuidade a esse legado, pondo-o em contacto com outras estruturas internacionais animadas pela mesma filosofia." Para o autarca, esta é, pois, "uma oportunidade única de transformação urbana e social que tem como base a Cultura, mas com implicações noutras áreas: a Economia, Ambiente, Sociedade, a formação e a inovação.".Fundamentado em três linhas temáticas - Tempo, Espaço e Matéria - o programa cultural e artístico de Évora 2027 propõe-se cruzar a arte e a ciência, os artistas e os seus públicos, o local e o global, para lançar questões urgentes sobre o futuro da Humanidade, a partir do conceito de Vagar, e do seu desdobramento em múltiplas dimensões. O programa apresentado no Bid book, peça indispensável do processo de candidatura, inclui vários projetos, e prevê ainda a possibilidade de integrar outros, desenhados para pôr em relação o Alentejo com a Europa e com o mundo. Entre os princípios que inspiram a estratégia do programa cultural e artístico de Évora 2027 está a ideia de que menos é mais, privilegiando a qualidade à quantidade; a sustentabilidade, enquanto esforço de contenção e cooperação, a importância da diversidade cultural da Europa e o seu reconhecimento através da inclusão e solidariedade; mas também a união do tradicional com o contemporâneo e o desafio de repensar o património edificado..Entre as áreas a privilegiar estão várias tradições com histórica implantação no Alentejo como as marionetas - basta recordar o longo percurso de sucesso nacional e internacional dos Bonecos de Santo Aleixo, dinamizado, uma vez mais, pelo CENDREV. Ou um marionetista como Manuel Dias, com atelier em Évora, que até já fez espetáculos acompanhado por viola campaniça. Para honrar esse legado, nos planos de Évora 27 está também a construção de uma Casa do Boneco. Mas também serão evocados os contadores de histórias que, em tempos sem televisão, nem internet, andavam de terra em terra a encher de encantamento e espanto as noites dos alentejanos..A par da valorização do legado de um povo, Paula Mota Garcia realça que "todo o programa vai buscar grandes questões atuais comuns às agendas nacionais e europeias, como é o direito à habitação". É, por isso, uma boa coincidência que 2027 seja também o ano em que o eborense Bairro da Malagueira, desenhado por Siza Vieira, comemora 50 anos de existência. Mas também haverá espaço e tempo para abordar os Direitos Fundamentais dos cidadãos, a partir do legado sinistro da Inquisição de Évora. Ou a solidão e o envelhecimento da população, as energias renováveis e as questões da mobilidade..Não se espere, todavia, que a programação decorra toda na cidade. "Não estaremos só em Évora, até porque queremos que as pessoas circulem e conheçam vários pontos da região. Não se visita o Alentejo, está-se no Alentejo", conclui Paula Mota Garcia..Na Capital Europeia da Cultura, o presidente da Câmara, Carlos Pinto de Sá, encontra o "pretexto" ideal para dar continuidade ao seu projeto de reabilitação e requalificação do centro histórico da cidade: "Quando chegámos aqui, em 2013, o centro estava quase morto, sem atividade, com muitos edifícios degradados e abandonados. Por isso, apostámos desde logo na sua revitalização, o que ganhou força com esta candidatura a Capital Europeia da Cultura". Nesta política integra-se a requalificação do Palácio de D. Manuel, que hoje acolhe o Centro Interpretativo da cidade, a primeira fase de obras no Teatro Garcia de Resende, que pertence à Rede Nacional de Teatros Históricos, e a recuperação do antigo cinema, Salão Central..O autarca está, no entanto, consciente de que a valorização de equipamentos é importante, mas só por si não basta. Fixar população (o último censo revelou que Évora, como o Alentejo em geral, perdeu população sobretudo em freguesias rurais) passa por tornar a habitação acessível: "Queremos manter a população no centro histórico, o que significa proporcionar condições para que as pessoas vivam aqui. Não tivemos os problemas verificados noutras cidades do país porque o Alojamento Local recuperou casas devolutas e não retirou gente, mas há que adequar as casas existentes às necessidades das famílias.".Um esforço que é para continuar porque, nos últimos anos, o concelho aumentou muito a sua oferta de trabalho, com a instalação nas imediações de várias empresas e o Parque do Alentejo de Ciência e Tecnologia. Isto sem falar nos estudantes e professores que fazem parte da comunidade escolar da Universidade de Évora: "Esta gente precisa de casa, bem como os profissionais que vierem trabalhar para o novo hospital central, que está a ser construído.".Quanto à Capital Europeia da Cultura, Carlos Pinto de Sá espera que se transforme num projeto de futuro, bem para lá de 2027, e que lhe sirva de trunfo para negociar com o governo questões como a paragem na Estação de Évora da projetada ligação ferroviária de Sines com Espanha: "Está pensada como transporte de mercadorias mas, para nós, faria todo o sentido que fosse também de passageiros.".Recorde-se que hoje, ao contrário do que aconteceu durante muito tempo, qualquer cidade pode iniciar o processo de candidatura por iniciativa própria, sendo a escolha da vencedora feita por um júri composto por 12 peritos independentes, dez dos quais nomeados por instituições e órgãos europeus e dois membros nomeados pelo Ministério da Cultura português. Em 2027, a par de Évora, teremos a cidade letã de Liepaja como Capital Europeia da Cultura..Por ora, a cidade alentejana prepara-se para o merecido estrelato europeu. Nas obras em curso do edifício dos Paços do Concelho foram encontrados vestígios muito bem conservados do que terão sido os sumptuosos banhos de um patrício romano, o que não surpreende muito os locais. Afinal, é o velho jogo do tempo a que Évora gosta de brincar com quem a visita. Está povoado de personagens fascinantes que parecem espreitar no Teatro Garcia de Resende, na Sé Catedral, no Palácio de D. Manuel e, claro, nas ruas da própria cidade, propícias a pensamentos sonhadores, como os de Florbela Espanca perante a janela quinhentista de Garcia de Resende: "Janela antiga sobre a rua plana / Ilumina-a o luar com o seu clarão / Dantes, a descansar de luta insana / Fui, talvez, flor no poético balcão."