E se em vez de Henry Fonda, Tony Curtis e George Kennedy tivéssemos Keira Knightley e Carrie Coon? Não é apenas uma hipótese no ar. O Estrangulador de Boston de Matt Ruskin opera essa mudança, distanciando-se do filme com o mesmo título de 1968 ao trazer para a linha da frente duas figuras femininas verídicas que à época dos acontecimentos em causa ficaram na sombra da narrativa masculina. Baseado no caso do assassino em série que matou 13 mulheres nessa cidade norte-americana entre 1962 e 1964, a versão que se "confronta" agora com a de Richard Fleischer - a tal protagonizada pelos referidos atores - tem realmente um novo ângulo, e não é apenas um exercício feminista forçado..Loretta McLaughlin e Jean Cole são interpretadas, respetivamente, por Keira Knightley e Carrie Coon, duas atrizes que na conferência de imprensa virtual em que o DN participou se mostraram deliciadas com a oportunidade de representar o lado oculto de uma história já antes levada ao cinema. "É chocante que estas mulheres tenham sido tão essenciais para resolver o caso, forçando os departamentos de polícia a partilhar informação, e os seus nomes nunca sejam mencionados", notou Carrie, depois de o realizador Matt Ruskin contar que, como alguém que cresceu em Boston e sempre ouviu falar do Boston Strangler, nunca tinha compreendido as reviravoltas deste mistério. "Em muitos aspetos, [o filme] é uma história sobre a cidade naquela altura. E quando descobri estas jornalistas, Loretta McLaughlin e Jean Cole, percebi que foram as primeiras repórteres a relacionar os assassinatos. Na verdade, foram elas que apelidaram o "Boston Strangler" no curso da sua investigação", sublinhou..Mais do que os locais dos crimes e o assassino em si, Ruskin interessou-se pela dinâmica das jornalistas numa redação masculina que não as queria a fazer o trabalho deles. Logo no início vemos Loretta aborrecida na secção Life Style, à procura de uma matéria estimulante para os leitores do jornal, sem conseguir convencer o seu superior (Chris Cooper) de que está preparada para outros voos. É mais ou menos nesse momento, e quase por teimosia, que o bichinho da investigação se apodera dela, levando-a por caminhos que a afastam cada vez mais da realidade doméstica - outro aspeto do drama contemplado pelo filme. Aliás, como disse Carrie Coon na conferência, referindo-se à sua própria personagem de mulher desembaraçada que se torna o braço-direito de Loretta, "as histórias de como elas se tornaram jornalistas, individualmente, são muito cativantes e comoventes. Devo dizer que ecoou em mim a vida das mulheres do meu mundo, que cresceram no Midwest. A minha mãe era enfermeira, uma das minhas avós era professora e a outra dona de casa. E estas eram na altura as oportunidades disponíveis para as mulheres, além de secretária. Portanto, a luta de Jean para se tornar repórter foi muito tocante para mim.".Já nas palavras de Keira Knightley, o filme é mesmo "uma canção de amor para as mulheres jornalistas de investigação." Uma ideia bonita, que a atriz britânica não desenvolveu, mas que encontra um eco realista noutro episódio contado por Carrie, sempre expedita, tal como a sua personagem, na descrição da mesma: "Jean queria um aumento, porque ganhava 30 dólares por semana e a creche dos filhos custava 25. Então avançou para pedir esse aumento e todos os homens da redação foram com ela para a apoiar! O que mostra a importância de ter aliados masculinos num lugar como este. De resto, penso que era uma feminista muito prática, alguém que baixava a cabeça e fazia bem o seu trabalho. Isto era tudo que elas podiam fazer naquele cenário: tentar não irritar ninguém." (A história do aumento é muito curiosa, mas não se espere encontrá-la no ecrã...)..De facto, se seguimos aqui os passos das duas protagonistas, também é certo que a atitude de ambas não passa apenas pelo gosto e ambição pessoal de investigar um enigma. Há uma aliança feminina que extravasa a papelada em cima da secretária, a genica dos telefonemas e as corridas para o local do crime - elas querem, genuinamente, alertar as mulheres de Boston para o perigo que as rodeia, e assim tentar que se protejam..Ruskin chamou também a atenção para que se contextualize um tempo e lugar pouco familiarizados com os métodos de investigação: "Convém lembrar que isto foi uma década antes de o termo "assassino em série" sequer existir, e o Departamento de Polícia de Boston era um instrumento bastante cego à época. O campo da Criminologia estava ainda na sua infância..." É algo bem visível no modo como se percebe uma espécie de inação por parte dos detetives, enquanto as profissionais de serviço vão abrindo caminho entre as pistas, que ora se cruzam, ora invertem conclusões..Em estreia hoje no streaming Disney+, com o prestígio de uma produção 20th Century Studios, o que o novo Estrangulador de Boston prova é que se pode usar as ferramentas clássicas do género (thriller, true crime) para experimentar outras perspetivas, sem incorrer na tentação moderna do objeto com mensagem, tantas vezes sufocado pelas boas intenções. Como disse o veterano Chris Cooper, também presente na conferência (e é difícil não o subscrever): "Os filmes que me interessam são de humano para humano. E, meu Deus, como isto mudou!... Veremos cada vez menos filmes desses. À falta de melhor termo, chamo-lhes filmes dos "bons velhos tempos", tão simples quanto isso.".dnot@dn.pt