Esta aldeia global não é para poetas
Numa das primeiras cenas de Poeta, cinco jornalistas de um pequeno jornal conversam sobre o possível desaparecimento da língua cazaque num mundo globalizado em que o inglês se vai impondo quase como língua e cultura únicas na comunicação científica. Sem surpresa, o discurso intelectual de cada um deles, repleto de referências e citações, encaminha o assunto para a pureza da poesia, que é indissociável da pureza da língua. "A alma do poeta é frágil", ouve-se dizer a certa altura, em jeito de lamento sobre a atual condição daqueles cujo talento está condenado a não sobreviver numa sociedade insensível aos valores artísticos. Entre os cinco homens que dialogam (o diretor é interpretado pelo próprio cineasta), reparamos num que não abre a boca o tempo todo. Limita-se a ouvir atentamente os colegas sem tecer qualquer comentário, mas com uma fisionomia de discreta eloquência. Chama-se Didar e é poeta nas horas vagas.
Através deste início elucidativo, entramos no filme de Darezhan Omirbayev com as ideias bem acomodadas. Como se as imagens que se vão seguir - estas sem necessidade de muita conversa - tivessem naquele prólogo uma exposição verbal. Com efeito, Didar é um protagonista que se mantém quase sempre silencioso. Parece guardar a voz para os momentos de leitura. E essa voz narra aqui a história de um outro poeta do século XIX, Makhambet Utemisov, figura da resistência cazaque que fora executado pelas autoridades do seu tempo, depois de recusar dirigir louvores ao governante. Do passado para o presente, uma proposta idêntica é feita a Didar, que por sua vez também procura manter a respetiva honra no mundo moderno.
Estabelecido o paralelismo entre as duas histórias, o fascínio de Poeta passa sobretudo pelo modo como este herói desajustado e "frágil" atravessa diferentes circunstâncias à semelhança de Monsieur Hulot em Playtime. Tal como essa fabulosa crítica de Tati à vida moderna, com a uniformização urbana e o consumismo a concorrerem para a perda da expressão individual, o belo filme de Omirbayev coloca-nos naquele exacto ponto de desconforto e melancolia em que a modernidade se avoluma no campo de visão através de múltiplos ecrãs, mas também através de sensações mais ou menos frívolas, como a compra de um par de sapatos novos, a experiência de entrar num Cadillac ou num café literário decorado com fotografias de grandes poetas, enquanto conceito comercial...
Falando em comercial, importa sublinhar o caráter raro desta estreia: Poeta é o primeiro filme de Darezhan Omirbayev (n. 1958) a ser distribuído nas salas portuguesas, depois de uma retrospetiva dedicada à obra deste importante cineasta do Cazaquistão no LEFFEST de 2018. Trata-se de um olhar límpido, acutilante, por vezes humorístico, e serenamente inventivo sobre a solidão dos artistas que não encontram lugar num mundo de estímulos diversos, onde a linguagem individual perde valor a cada dia que passa. Uma solidão que não poderia ser melhor representada do que na imagem de um anfiteatro praticamente vazio, com apenas uma espectadora interessada em ouvir a leitura de Didar. São estes os nossos tempos.
dnot@dn.pt