Eliane, como é que você se sente em lançar pela primeira vez a tua obra aqui em Portugal?.Eu fico bem feliz, porque eu costumava ficar perplexa. Assim, porque é que não tem um livro meu em Portugal? Eu até hoje não entendo isso, porque nem precisa traduzir. E eu tenho obras até em búlgaro. .Como surgiu o livro de memórias 'Meus Desacontecimentos'?.Alguns dos meus livros - não todos, mas alguns - nascem de crises que eu tenho com a própria escrita. Eu escrevi esse livro depois de uma paralisia na escrita. Eu fui para a Bolívia fazer uma reportagem para um livro dos 40 anos dos Médicos Sem Fronteiras. Coube a mim conhecer o trabalho dos Médicos Sem Fronteiras sobre Doença de Chagas na Bolívia. Era uma situação aniquiladora, porque a maior parte das pessoas, famílias inteiras, crianças, já têm doença. O barbeiro tá em toda parte. É uma coisa omnipresente. Ver isso foi brutal. Eu acompanhei uma família, fiquei uns dias na casa deles, onde todos tinham Chagas, menos a netinha, que era uma criança pequena. Eu fiquei muito próxima de uma menina, a Sónia, que aprendeu espanhol na escola, os pais falavam Quechua. E quando eu fui me despedir, ela me agarrou pelos braços e me disse, “não me deixe morrer.”Eu já vivi e vivo muitas situações limite, de risco. Mas esse “não me deixe morrer” nunca tinha chegado diretamente a mim, com uma criança me dizendo. E eu disse à Sonia o que eu sempre digo, que vou contar a tua história para o mundo. E eu sempre acreditei que contar essas histórias faz muita diferença. Mas ali eu me senti muito mal, porque eu sabia que contar a história da Sónia mão ia salvar a Sónia. Eu voltei para o Brasil numa crise profunda, num dos maiores buracos..Como foi sair desse buraco?.Eu fiquei duas semanas sem escrever, perdi sete quilos. Para quê escrever, se escrever não serve para salvar a vida de uma criança? Aí eu fui entendendo, com a ajuda de pessoas também e algo que me sustenta até hoje: poder pouco é melhor do que não poder nada. Enquanto jornalista eu posso pouco. Aí eu consegui voltar. Eu escrevi a história da Sónia e chamei Os vampiros da realidade só matam pobres . Depois disso eu precisei mergulhar na minha história com a escrita, buscar como a palavra escrita deu sentido à minha vida, como a palavra escrita me salvou de alguma maneira. Não que a palavra salve, porque nada nos salva, salva para nos lançar de novo num redemoinho. Mas a palavra escrita tornou minha vida possível, ela me estrutura, me dá chão. Eu consigo dar lugar para todas as realidades e poder viver. Aí eu escrevi esse livro. Fui buscar lá na minha infância toda a minha história com a palavra..Como foi esse processo de revisitar o passado?.Foi um processo delicado, mas foi muito bom escrever. Sempre é muito bom escrever. É um alívio. Eu me sinto muito habitada pelas vozes que vivem dentro de mim. Eu vou escutando, escutando, então eu pego isso que está dentro e coloco num lugar que está fora, fora de mim. No livro eu consegui recuperar a tessitura dessa menina que me tornou a mulher que eu sou. E consegui resgatar a palavra para mim e seguir o meu caminho como escritora e recuperar a tessitura dessa menina que me tornou a mulher que eu sou. E consegui resgatar a palavra pra mim. É muito importante dar lugar pras coisas fora da gente..Você diz no livro que escreve para não morrer, mas também para não matar. Esse sentimento foi se intensificando ao longo da carreira?.Acho que sim. Eu sempre fui muito sensível, desde criança. Eu conto no livro que a dor das pessoas sempre me chamou atenção. Eu sempre tive muita capacidade de alcançar a dor, de escutar a dor, de perceber a desigualdade. Eu lembro de quatro meninos na minha rua em Ijuí, com camisa de manga curta no inverno, com temperaturas abaixo de zero. Ninguém fez nada por eles. Eu lembro bem desse desamparo, dessa indiferença, do racismo, tão grande lá, no Rio Grande do Sul, no Brasil, no mundo. Mesmo que eu não soubesse nomear, isso me doeu e foi aumentando. Foi raiva. Eu sou movida a raiva. Raiva é uma coisa muito importante pra mim. Diferente de ódio. Ódio é uma coisa pavorosa, destruidora. Mas a raiva me dá energia pra lutar. Eu escrevo pra não matar, escrevo pra não colocar fogo na prefeitura [Câmara Municipal], como conto no livro. Eu sinto a dor, eu vejo a injustiça e preciso agir, de ação. E a escrita me dá isso. Eu entendi isso naquele momento que eu conto o livro que eu resolvo botar fogo na prefeitura. Porque esse era o inimigo, na minha interpretação de criança. Não tinha escrita, como eu faço hoje. Na escrita eu denuncio, eu grito na escrita. Eu escrevo pra não matar, pra não botar fogo, pra muitas coisas, risos..Você deixa claro a importância de escrever. E como é ser lida, você que é a jornalista mais premiada do Brasil?.Já li vários escritores falando que eles escrevem porque precisam e escrevem para si. Eu escrevo porque preciso, mas eu escrevo para ser lida. Eu quero falar com o mundo. Meus livros são cartas. Minhas reportagens são cartas. Meus artigos de opinião são cartas. Sem leitura, sem leitura esse movimento não se completa. Então, muitas vezes eu me surpreendo que as pessoas leem mais do que eu escrevi. Às vezes, eu entendo o que eu escrevi pela leitura de outras pessoas. Claro que eu sei o que eu escrevi, mas tem alguns leitores tão qualificados, tão perspicazes, que eles encontram sentidos que daí eu percebo. Outras vezes, eu me surpreendo muito que eu jamais escrevi aquilo, mas cada leitor faz o seu livro. E aí eu também não vou discutir. Porque o livro não é mais meu. A escrita vai se aventurar. É um mundo de riscos. Na minha opinião, eu sou muito mal entendida. Mas é o risco, e a gente corre o risco. E hoje eu sinto, como hoje eu escrevo muito sobre o colapso que a gente está vivendo, sobre o que está acontecendo na Amazônia, o que está acontecendo no planeta. Eu sinto que eu escrevo cartas que não chegam aos destinatários. É como se fossem cartas extraviadas. Eu escrevo, as cartas se perdem no caminho, não chegam ao seu destino. Ou se elas chegam, elas não são abertas. Ou se elas são abertas, não são lidas. Ou se elas são lidas, elas não são entendidas. É uma sensação bem dura essa. Eu falo, escrevo sobre isso, mas o movimento não se completa para a maioria das pessoas..Você se mudou para o coração da Amazónia em 2017, antes da eleição de Bolsonaro. Como foi viver essa época lá?.Acho que viver o governo Bolsonaro em qualquer parte do Brasil e do mundo é brutal. O principal projeto do Bolsonaro era abrir a Amazónia à exploração predatória. E ele realmente abriu e estimulava os destruidores da Amazônia a seguir destruindo. Tratava os destruidores como pioneiros, como empreendedores, como empresários rurais. Essa elite extrativista local que sempre teve muita força e sempre dominou as cidades, mesmo antes do Bolsonaro e antes do fortalecimento da extrema direita no Brasil, ela se sentiu muito autorizada. Tudo se tornou muito mais de risco para quem está na resistência, especialmente para os povos indígenas e para as comunidades nacionais que defendem a Amazónia com seus corpos. Os grileiros botavam fogo nas escolas, que é um jeito de impedir que as pessoas permaneçam, porque a escola é muito importante para as famílias permanecerem na terra. As crianças tinham medo de serem queimadas vivas. O Bolsonaro chegou a negar água potável aos indígenas. Lideranças, grandes lideranças indígenas morreram na pandemia, o que também enfraquece a resistência. Tudo isso teve um impacto, mesmo que a extrema direita não volte ao poder, é muito possível que ela volte, o impacto segue, porque quando você abre uma porta, esse subterrâneo e as pessoas passam a se sentir autorizadas, é muito difícil reverter isso. A violência na Amazónia ficou muito mais palpável. Foi um horror. Bolsonaro é um genocida. Ele só não foi julgado e condenado. Nós sabemos que ele é um genocida. Nós estávamos lá..Você foi para a Amazónia morar e criar seu próprio projeto jornalístico, o Sumaúma. Porque esta decisão?.Eu fui pra Amazónia por coerência, por defender que a gente precisa fazer um deslocamento urgente dos conceitos hegemónicos do que é centro e do que é periferia. Que os centros do mundo são os enclaves onde a natureza resiste, não os centros financeiros e económicos onde a destruição da natureza é decidida. Ou seja, os centros do mundo são a Amazónia, são as outras florestas tropicais, são os oceanos. E não Londres, Washington, Pequim, Frankfurt, ou mesmo Lisboa, São Paulo. O centro é onde está a vida. E isso não é retórica ou discurso bonitinho. São os factos. É onde está a natureza resistindo. É o que faz a gente ainda ter uma vida possível. E aí eu pensei, se eu defendo que a Amazónia é um dos centros do mundo e eu sou jornalista, por que eu estou morando em São Paulo, na periferia do mundo? Na periferia do Brasil. E aí eu me mudei para lá. Na pandemia, eu e um grupo de amigos ativistas a gente começou a ficar muito assustado com o discurso que vinha dos mercados e comprado pela imprensa, que era do novo normal. Como se o que a gente tivesse vivido até então era algo que pudesse ser chamado remotamente de normal. E a gente fez esse movimento chamado Liberte Futuro que era para a gente imaginar um mundo onde a gente pudesse viver, onde a gente quisesse viver. Então esse exercício nos tornou possível para a gente imaginar Sumaúma, essa plataforma trilingue de jornalismo baseada em Altamira. Não é baseada numa capital da Amazónia, e muito menos numa capital do sudeste do Brasil, mas no interior ali, num dos epicentros da destruição. .Você acha que a Europa está olhando para a Amazónia?.Não, a Amazónia está olhando para a Europa. E parte dos europeus olham para o que está acontecendo na Amazónia e pensam que é coisa de bárbaros de lá. E não percebem que são eles que estão comendo a Amazónia. O boi do desmatamento está sendo comido aqui. A soja do desmatamento alimenta os porcos da Europa. A madeira, as árvores que deixam de regular o clima para virar móveis aqui. O ouro que causa genocídio, como os povos Yanomamis, causando deformações nas crianças Munduruku, pela contaminação por mercúrio, está nas joalherias aqui. Aqui deveria ter uma linha de frente de proteção da Amazónia, de pressão sobre os parlamentos, sobre os governos e parar de comer a Amazónia. Porque a Amazónia está sendo comida aqui. as pessoas morrem lá na Amazónia defendendo a floresta que garante a vida de todos. Só que aqui se segue comendo a Amazónia, o sacrifiício será com os corpos dos outros. Se o Trump for eleito então, meu Deus. As pessoas não entenderam que o amanhã não está garantido..Neste outono você está em Barcelona, numa residência. Pode nos contar um pouco destas atividades?.Isso é algo muito novo para mim. É no Centro de Cultura Contemporânea de Barcelona, um lugar muito particular. E não é bem uma residência, porque é para fora. Eu fiz conferências públicas, ciclos de seminários com convidados cientistas, antropólogos, artistas, vou agora fazer um ciclo de entrevistas que eu escolhi as pessoas. Eu convidei três lideranças indígenas da Amazónia, duas do Brasil e uma do Equador, todas mulheres, que é um ciclo de entrevistas que chama A Floresta é Mulher. Fora isso, eu tenho encontros com um monte de pessoas que estão pensando, a ideia é fazer alianças, contar o que está acontecendo na Amazónia para a Europa, de certa forma. Contar o que está acontecendo na Amazônia e chamar, mostrar que a Amazônia está no prato da Europa. Tenho dado muitas entrevistas sobre isso. Toda essa troca está sendo extremamente rica e importante para mim, para entender, para fazer as alianças e poder fazer as denúncias. amanda.lima@dn.pt