Eduardo Lourenço, o homem que pensou Portugal
"Eduardo Lourenço - Uma Vida Escrita" é o título do colóquio que marca esta 3.ª feira, na Fundação Gulbenkian, a abertura das comemorações do centenário do pensador. Um homem que, ao longo dos seus 97 anos, nunca se cansou de nos interpelar.
Dizia José Saramago que "às vezes é preciso sair da ilha para ver a ilha". Talvez por isso poucos tenham dissecado tão amorosa e persistentemente a identidade portuguesa como o seu amigo Eduardo Lourenço, que andou por várias partes do mundo, até se radicar em Vence, no Sul de França, na década de 1960.
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Dois meses antes da celebração do centenário, a Fundação Gulbenkian promove esta 3.ª feira, 28, o colóquio " Eduardo Lourenço - Uma Vida Escrita", destinado a abordar a multiplicidade da sua obra e pensamento. Comissariado por Pedro Sepúlveda, professor e investigador da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, o encontro reúne especialistas no estudo do pensamento de Eduardo Lourenço, mas também amigos e leitores que evocarão a vida e os temas fundamentais da sua escrita, produzida durante uma vida tão longa como intelectualmente fecunda. De referir ainda que esta homenagem incluirá a apresentação, no palco do Auditório 2 da Gulbenkian, de A Noite Transfigurada, de Arnold Schönberg, uma das obras do reportório clássico preferidas de Lourenço, que será interpretada por um sexteto de cordas da Orquestra Gulbenkian.
A ocasião servirá ainda de pretexto para o lançamento do último volume de As Obras Completas de Eduardo Lourenço, com o título O Labirinto da Saudade e outros Ensaios sobre Cultura, coordenado por João Dionísio, bem como para a inauguração de uma exposição de retratos da autoria do fotógrafo Vitorino Coragem, intitulada "Ver é Ser Visto". Aqui, ser-nos-á dado a ver o resultado de uma sessão fotográfica com Lourenço, realizada em março de 2015 no Cais do Funchal, no âmbito do Festival Literário da Madeira.
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Nascido em São Pedro de Rio Seco, distrito da Guarda, a 23 de maio de 1923, o jovem Eduardo Lourenço passou boa parte da sua adolescência no Colégio Militar, uma experiência que lhe deixaria memórias pouco felizes, como recordaria, em 2007, em entrevista à revista Visão: "Um tipo do meu género engaiolado! Não era e não sou de me adaptar a uma disciplina rigorosa. E esta só contribuiu para a minha indisciplina, o meu gosto contestatário. Mas a lembrança mais dolorosa é a de ficar no colégio durante as férias da Páscoa. Em vez dos habituais 400 alunos, restavam uns 20, como que excluídos do estatuto da maioria. Sentia uma espécie de abandono, que me pode ter marcado. Já a maior alegria era ir ao cinema, na Amadora, com os meus tios."
Em 1940, já livre desta "tortura" e sem qualquer intenção de prosseguir na vida castrense, ingressa na Universidade de Coimbra, onde encontra um ambiente aberto e propício à reflexão cultural, apesar da apertada vigilância da ditadura salazarista. Torna-se amigo de Eugénio de Andrade e estabelece mesmo ligação com pessoas mais velhas como Miguel Torga, que, contra o seu costume, lhe oferecia os seus livros com afetuosas dedicatórias. Católico praticante,, membro do Centro Académico de Democracia Cristã (CADC) em Coimbra, o estudante aproxima-se dos neo-realistas, mas sempre com uma postura de independência crítica. Neste caso, a ligação mais próxima terá sido com o também escritor Carlos de Oliveira, seu colega de curso, dois anos mais velho.
Em 1946, licencia-se em Ciências Histórico-Filosóficas, tornando-se rapidamente assistente de Joaquim de Carvalho (1892-1958), reputado especialista internacional na obra de Bento Espinosa. É nesse período que o jovem Eduardo Lourenço publica, em edição de autor, o seu primeiro livro, Heterodoxia (1949), que reúne uma parte da sua tese de licenciatura, O Sentido da Dialéctica no Idealismo Absoluto. Em 1949 realiza um estágio na Universidade de Bordéus 2, com uma bolsa do Programa Fulbright. Leitor de Cultura Portuguesa entre 1953 e 1955 nas universidades de Hamburgo e Heidelberg, exerce idêntica atividade na Universidade de Montpellier, de 1956 a 1958. Após um ano passado na Universidade Federal da Bahia, como professor convidado de Filosofia, estabelece residência em França, na década de 1960, depois de casar com a cidadã francesa, também professora, Annie Salomon.
Não se pense, todavia, que a vida no estrangeiro o alheou da realidade portuguesa, sobretudo após o 25 de Abril de 1974. Em 1975 recusa assumir a pasta de ministro da Cultura no VI Governo Provisório, mas em 1980 apoia a candidatura de Ramalho Eanes à Presidência da República, bem como as de Maria de Lourdes Pintasilgo (na primeira volta das presidenciais de 1985) e a de Mário Soares, na segunda volta. Com mais doze intelectuais, subscreveu ainda um documento apoiando a formação de um novo partido político, de inspiração eanista, o Partido Renovador Democrático - PRD.
Essas filiações, todavia, nunca lhe condicionaram o pensamento ou tolheram o gosto pela ironia. Pelos mesmos anos, publicava livros, cujos títulos já eram uma provocação em si mesmos: Os Militares e o Poder, em 1975; O Fascismo nunca Existiu, em 1976, e Situação Africana e Consciência Nacional, também de 1976. Mas o livro que o tornaria mais conhecido dos portugueses seria publicado em 1978. Falamos de O Labirinto da Saudade - Psicanáise Mítica do Destino Português, em que o autor se debruça sobre a identidade (ou identidades) nacional, como anuncia logo na abertura da obra: "Se a História, no sentido restrito de conhecimento do historiável, é o horizonte próprio onde melhor se apercebe o que é ou não é a realidade nacional, a mais sumária autópsia da nossa historiografia revela o irrealismo prodigioso da imagem que os Portugueses se fazem de si mesmos. Não nos referimos às simples deformações de carácter subjectivo ou de natureza ideológica, não só por serem inevitáveis, como por não arrastar com elas uma fatal transfiguração no sentido desse irrealismo. O que visamos é mais largo e profundo, pois afecta na raiz a possibilidade mesma de nos compreendermos enquanto realidade histórica."
Esta leitura crítica da nossa relação connosco próprios estendia-se também à própria língua, como anos mais tarde escreveria em Atlas da Língua Portuguesa na História e no Mundo: "Não se pode dizer de língua alguma que ela é uma invenção do povo que a fala. O contrário seria mais exacto. É ela que nos inventa. A língua portuguesa é menos a língua que os portugueses falam, que a voz que fala os portugueses. Enquanto realidade presente ela é ao mesmo tempo histórica, contingente, herdada, em permanente transformação e trans-histórica, praticamente intemporal. Se a escutássemos bem ouviríamos nela os rumores originais da longínqua fonte sânscrita, os mais próximos da Grécia e os familiares de Roma."
A questão da identidade e a vida e obra de Fernando Pessoa tornar-se-ão uma constante da sua vasta bibliografia, em que se destacam obras como Fernando Pessoa Revisitado. Leitura Estruturante do Drama em Gente; Tempo e Poesia - À Volta da Literatura; Situação Africana e Consciência Nacional; O Complexo de Marx ou o Fim do Desafio Português; Poesia e Metafísica - Camões, Antero, Pessoa; Fernando, Rei da Nossa Baviera; Nós e a Europa ou as Duas Razões; O Canto do Signo - Existência e Literatura (1957-1993); A Europa Desencantada - Para Uma Mitologia Europeia; O Esplendor do Caos, Portugal como Destino seguido de Mitologia da Saudade; O Lugar do Anjo - Ensaios Pessoanos; A Morte de Colombo - Metamorfose e Fim do Ocidente como Mito; A Esquerda na Encruzilhada ou Fora da História? - Ensaios Políticos; Do Colonialismo como Nosso Impensado; Do Brasil, Fascínio e Miragem ou Crónicas Quase Marcianas.
Irónico também com esta diversidade de interesses, Eduardo Lourenço admitia, com um pouco da coquetterie que lhe atribuía o seu amigo Helder Macedo, antigo titular da Cátedra Camões no King"s College de Londres, que muitos destes seus livros eram de circunstância. Escreveu-o no DN, em 1998: "Cada um dos assuntos porque me interesso daria para ocupar várias pessoas durante toda a vida. Por isso, como não possuo vocação heteronímica, tenho procurado encontrar um nexo entre as minhas diversas abordagens da realidade. No fundo é a procura de um só tema. E, de facto, se virmos bem, o fio condutor do que venho fazendo, e procuro ainda fazer, é uma reflexão constante sobre o tempo. Ou melhor, a temporalidade." E acrescentava mesmo: "Já só escrevo de empreitada: fulano vai fazer uma conferência a tal parte, é preciso que eu escreva, eu escrevo. Senão não escrevia nada. Nunca teria nenhum destes textos."
A escrita, no entanto, era a própria essência do pensamento de Lourenço. A esse propósito, referia Michel de Montaigne, o francês que, no século XVI, "inventou" o género ensaístico: "Montaigne não sabia quem era e, para o saber, decidiu escrever-se", tendo convertido "o espanto sem fim deste encontro" com a sua própria existência em "vida escrita". Como se escreve na apresentação do colóquio desta 3.ª feira: "A articulação entre a experiência pessoal e universal será precisamente uma das marcas distintivas da ensaística de Lourenço, sem paralelo no campo do ensaio em língua portuguesa."
Em 1989, assumiu funções como conselheiro cultural junto da Embaixada Portuguesa em Roma, até 1991. Colaborador de longa data da Fundação Gulbenkian, foi seu administrador não executivo entre 2002 e 2012. Em sua homenagem, o Centro de Estudos Ibéricos, com sede na Guarda, criou o prémio que leva o seu nome, atribuído desde 2005 e destinado a agraciar personalidades ou instituições com intervenção relevante no âmbito da cultura, da cidadania e da cooperação ibéricas. Foi um dos principais signatários do Manifesto contra o Acordo Ortográfico de 1990, petição online que, entre maio de 2008 (data do início) e maio de 2009 (data da apreciação pelo Parlamento), recolheu mais de 115 mil assinaturas. Tomou posse em 7 de abril de 2016 como conselheiro de Estado, designado pelo Presidente Marcelo Rebelo de Sousa.
Ao longo da sua vida, o pensador recebeu numerosas distinções, como o Prémio Europeu de Ensaio Charles Veillon (1988), o Prémio Camões (1996), o Prémio Pessoa (2011) e o Prémio da Academia Francesa (2016). Entre outras condecorações, recebeu as Grã-Cruz da Ordem de Sant"Iago da Espada da Ordem do Infante D. Henrique e da Ordem da Liberdade. Foi ainda nomeado Officier de la Légion d"Honneur e consagrado Doutor Honoris Causa pelas Universidades do Rio de Janeiro (1995), Universidade de Coimbra (1996), Universidade Nova de Lisboa (1998) e Universidade de Bolonha (2006).
Morreu, em Lisboa, aos 97 anos, a 1 de dezembro de 2020. Na homilia fúnebre, o Cardeal José Tolentino de Mendonça referiu-se à importância do desafio que o pensamento de Lourenço nunca deixou de ser para a nação: "Teixeira de Pascoaes, que escreveu Arte de ser português, quis ser enterrado num caixão em forma de lira. O caixão de Eduardo Lourenço tem, qualquer que seja a sua forma, a forma de Portugal, do qual ele foi (e será para muitas gerações futuras) um explorador e um cartógrafo, um detetive e um psicanalista do destino, um sismógrafo e um decifrador de signos, uma antena crítica e um instigador generoso e iluminado. Depois dele, todos podemos dizer que nos entendemos melhor a nós próprios."
dnot@dn.pt
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