Nostalgia, tempos sombrios e “reverência pelo passado mas esperança no futuro”. É com estas palavras e expressões que os fãs do bairro de Hell’s Kitchen são recebidos em Demolidor: Nascer de Novo. Numa aparente noite normal, em conversa corriqueira de amigos, fala-se de um diner que fechou, de uma cidade que tem de arranjar formas de se proteger, e aconselha-se uma mudança de óculos: o modelo que usa Matt Murdock (esse herói cego, mas com extraordinárias capacidades sensoriais) está ultrapassado e o dito futuro requer outras lentes… mesmo que sejam só um acessório. Sete anos depois do fim da série original, Demolidor (2015-2018), na altura lançada pela Netflix, a Marvel Television recupera personagens há muito aguardadas por quem viu nas aventuras nova-iorquinas do advogado cego do título um altamente palatável espírito old-school. A partir desta quarta-feira, está então disponível no Disney+ o “renascimento” de um universo que apresentou, não só esse homem das leis que à noite se transforma em justiceiro pelas próprias mãos, como o seu perfeito antagonista, Wilson Fisk, um criminoso encorpado cujas ambições entretanto evoluíram. Antigo chefe da máfia, Fisk tem agora aspirações políticas em Nova Iorque, usando de um estilo de campanha eleitoral semelhante aos moldes da América de hoje, com uma face pragmática que esconde um terrível vazio de consciência governativa. Ecos da realidade à parte, na conferência de imprensa virtual em que o DN participou não houve margem para aprofundamentos – vivemos na era anti-spoiler, onde cada frase é pesada em termos de significado vago, como forma de manter fresca a experiência dos espectadores. E foi dentro desse compromisso que o intérprete de Wilson Fisk, Vincent D’Onofrio, encontrou um ângulo curioso para falar do semblante da nova série: “Estamos os dois [Murdock/Fisk] a tentar viver à luz do dia. Temos isso em comum. E somos homens destroçados… Pense-se na metáfora dos vampiros a tentar viver de dia: é também a nossa luta. O Matt tem as coisas dele, eu tenho meu plano, e não nos podem pôr juntos na mesma cena muitas vezes, porque, nesse caso, não seria tão poderoso. Quantas cenas fizemos assim, eu e tu, nos últimos 10 anos?”, pergunta ao colega Charlie Cox. “Talvez cinco ou seis”, responde, divertido. D’Onofrio anui e Cox completa a ideia: “Mas juntar-nos no início da temporada, como aqui acontece, é algo que nunca tinha sido feito antes.” A novidade começa, pois, nesta dinâmica quase de “velhos amigos”, que passa para a ficção, e que está claramente entranhada nos dois atores. Por um lado, há a vantagem da familiarização com as personagens, por outro, eles são comparsas atrás da câmara. “Nos últimos 10 anos, tornamo-nos, obviamente, muito bons amigos. E parece que quanto melhores amigos nos tornamos, mais fácil é odiarmo-nos um ao outro!”, diz Cox. Com a absoluta concordância de D’Onofrio: “Eu apaixonei-me pelo Charlie. E quanto mais o amo, mais adoro odiá-lo... É ótimo! Agora a sério: o outro aspeto é a confiança. Nós confiamos imenso um no outro. Quando estou em filmagens, geralmente ele está noutro lado do estúdio, e nem sei o que está a fazer – mas sei que vai ficar tudo bem”. Uma Nova Iorque pulsante Com um rol de elogios mútuos pelo meio, chega-se, enfim, à questão de uma cidade que importa representar com a máxima exatidão e frequência cardíaca. Sobre isso falou Aaron Moorhead, um dos realizadores e produtores executivos de Demolidor: Nascer de Novo, que, juntamente com o seu parceiro criativo de sempre, Justin Benson, pôs de parte o historial de cinema independente para se dedicar às grandes produções televisivas (antes desta, assinaram dois episódios de Moon Knight: O Cavaleiro da Lua e quatro da última temporada de Loki). “Quando fomos chamados para o projeto, uma das coisas que nos pediram foi para tentar trazer algo do “sabor” de Nova Iorque”, conta Moorhead. “Não somos nova-iorquinos de origem, mas adoramos Nova Iorque e agora passamos muito tempo aqui. Acontece que temos uns amigos nova-iorquinos documentaristas e convidamo-los a criar uma espécie de documentário dentro da série, para medir a temperatura humana de Nova Iorque: eles entrevistam pessoas na rua e dessa forma sente-se o coração da cidade. Não é como filmar um prédio aqui, uma esquina ali… É antes um coração pulsante de experiências reais de rua.” Uma estratégia bastante invulgar numa série de super-heróis, mas a remeter para o passado independente da dupla de realizadores, ou não nos viesse à memória algumas cenas do filme O Interminável (2017). Nesta Nova Iorque reconhecível, está então tudo a postos para receber os “bad boys”, que Vincent D’Onofrio identifica como a paixão do público: “Ao longo dos séculos, os romances policiais, as histórias sobre a maldade sempre foram muito populares, por criarem uma distância do perigo. Com esta série passa-se a mesma coisa. É uma história urbana e tem aquele elemento do crime”... Que se mantenha a distância de segurança.