De Columbano a Joana de Vasconcelos, a saga da coleção Gulbenkian
No efervescente mercado de arte da década de 1960 causava alguma estranheza, e até tensão, que uma instituição com sede em Portugal aparecesse onde importava e fizesse aquisições importantes. Vivia-se ainda em ditadura, a que se somava o isolamento internacional causado pela Guerra Colonial, e Portugal, com uma imensa taxa de analfabetismo e uma estética oficial muito conservadora, dificilmente aspirava a entrar no "campeonato" dos grandes centros mundiais de arte, como eram, nessa época, Londres, Paris ou Nova Iorque. No entanto, a determinação de José de Azeredo Perdigão (1896-1993), primeiro presidente da Fundação, falou mais alto do que algum desdém externo e assim se foi constituindo uma coleção de arte moderna e contemporânea, que hoje ultrapassa as 12 mil obras.
Este é o fio condutor da exposição Histórias de uma Coleção, que inaugura esta 6.ª feira, na Fundação Calouste Gulbenkian, em Lisboa, com o propósito de celebrar os 40 anos da criação do Centro de Arte Moderna e a sua importância para as artes plásticas em Portugal e no mundo. Patente ao público até 18 de setembro, a mostra revisita algumas das obras mais marcantes da coleção, revelando também peças menos conhecidas, ou mesmo inéditas (algumas adquiridas recentemente), nunca expostas.
Com um design expositivo que propõe diferentes modos de dar a ver a arte, "Histórias de uma Coleção. Arte Moderna e Contemporânea do CAM" contempla novas narrativas e interpretações, abrangendo diferentes épocas, geografias e práticas artísticas. Estarão expostas, entre outras, peças de artistas nacionais e estrangeiros como Alberto Carneiro, Ângela Ferreira, Amadeo de Souza-Cardoso, Ana Jotta, Ana Vieira, David Hockney, Fernão Cruz, Francisco Tropa, Helena Almeida, Joana Vasconcelos, José de Almada Negreiros, Ofélia Marques, Luisa Cunha, Malangatana, Maria Helena Vieira da Silva, Mónica de Miranda, Nuno Cera, Patrícia Garrido, Paula Rego, Rosângela Rennó, Rui Chafes e Susanne Themlitz.
A exposição assinala os momentos-chave da constituição da coleção do CAM e é acompanhada de um catálogo com ensaios inéditos das quatro curadoras da exposição: Ana Vasconcelos, Leonor Nazaré, Patrícia Rosas e Rita Fabiana, da arquiteta da exposição, Rita Albergaria, bem como um ensaio da curadora independente Antonia Gaeta.
Na origem de tudo, explica-nos Leonor Nazaré, esteve a consciência de que o encerramento, ditado pela pandemia e pelas obras de remodelação, não podiam significar a quebra do laço com o público: "Quando percebemos que íamos ficar fechados durante vários anos tivemos de agir, de planear estratégias para que a coleção e o CAM continuassem presentes nas vidas das pessoas. Com esta exposição, a ideia foi contar como a coleção de arte moderna e contemporânea foi sendo constituída ao longo de décadas".
A exposição, composta por 207 obras de 187 artistas, está organizada em quatro grandes núcleos, a saber: "Início" (com as primeiras aquisições); "É indispensável inaugurá-lo" (citando uma afirmação de Azeredo Perdigão no final dos anos 1970, em que se referia à necessidade de criar um espaço próprio para mostrar a coleção, já considerável na época); "Depois das Belas Artes", que corresponde ao questionamento dos cânones das Belas-Artes no período da direção de Jorge Molder e o último, intitulado "Permanentes e Temporárias", corresponde à época entre 2006 e 2016. Para além destes núcleos principais, há 11 obras fora do espaço da sede. "A prioridade", explica Ana Vasconcelos, "foi dada às obras que representam o modo como evoluiu a coleção desde a década de 1950 à atualidade."
O percurso começa com um mural que representa todos os períodos de aquisições, desde o pintor Nuno Siqueira, nos primeiros anos, até a obras Jorge Queirós ou Fernão Cruz, adquiridas no ano passado, onde nem sequer falta um Columbano Bordalo Pinheiro, que demonstra que a coleção também tem algumas obras anteriores ao Modernismo. Por outro lado, a variedade deste mural, que é quase um pórtico, é proporcional à diversidade geográfica dos artistas incluídos, com mais de dez nacionalidades representadas.
O primeiro núcleo dá-nos a ver o papel mecenático que a Gulbenkian desempenhou nos anos 1950 e 1960. Como nos diz a curadora Ana Vasconcelos: "Aqui temos os artistas mais apoiados pela Fundação neste período. Estão aqui o Cutileiro, mas também os quadros de Maria Helena Vieira da Silva e de Amadeo de Souza-Cardoso, comprados à viúva (embora as negociações já se arrastassem desde 1965), adquiridos por Azeredo Perdigão nessa importante viagem de 1968." Hoje o CAM tem 200 obras de Amadeo e 170 de Vieira da Silva, o que segundo outra das curadoras, Patrícia Rosas, demonstra a preocupação de continuidade nas aquisições: "Houve sempre uma determinação de constituir núcleos que se manteve ao longo do tempo. Por um lado, procuramos adquirir o maior número possível de obras de artistas importantes, por outro, partimos deles para outros nomes, que lhes são próximos pessoal e esteticamente. Foi a partir da Vieira da Silva que chegámos ao marido, Arpad Szenes, por exemplo."
A partir daqui, a narrativa será cronológica: Sabemos que a Gulbenkian adquiriu as primeiras obras de arte moderna no final dos anos de 1950, com o objetivo de as exibir em exposições temporárias itinerantes que levassem a Arte a todo o país. Pela mesma época, foi também adquirindo obras aos seus bolseiros, no âmbito da sua política de apoio aos artistas. Assim viriam a ser incorporados nomes fundamentais no panorama artístico nacional e internacional, como José de Almada Negreiros, Jorge Vieira, René Bertholo, José Escada, Palolo, Lourdes Castro ou Paula Rego, entre outros. Em 1962, realizar-se-ia a primeira exposição itinerante nos Açores e na Madeira, mas três anos depois já se levaria uma primeira grande exposição internacional ao Rio de Janeiro.
Era o princípio da internacionalização. Em 1966, usufruindo das relações especiais da Fundação com o Iraque, é realizada uma exposição em Bagdad, com obras de autores portugueses e britânicos, algumas das quais viajam diretamente de Londres para Bagdad. Seguir-se-ia, em 1968, uma nova exposição internacional, que circula entre Londres, Madrid e Bruxelas. Para esta, explica Ana Vasconcelos, a Fundação adquire obras do Escada, Costa Pinheiro e do grupo KWY. Por outro lado, o contacto com a delegação da Gulbenkian em Londres vai permitir, com o apoio do British Council, trazer para Lisboa um núcleo importante de artistas da pop art britânica, emergente à época, como o então pouco conhecido David Hockney e Philip King, o enfant terrible da nova escultura inglesa, que trabalhava com materiais tidos por pouco nobres como o plástico e a fibra de vidro.
Já em Londres estava também Paula Rego, que expõe em Portugal em 1965, na Sociedade Nacional de Belas-Artes, em Lisboa. A Gulbenkian adquire-lhe então duas obras. Como refere Ana Vasconcelos: "São ambas peças muito políticas, apesar de nesta altura a matriz estética da pintora ainda estar muito ligada à arte bruta e ao pós-surrealismo." Da mesma artista podemos ainda apreciar o tríptico Vanitas, encomendado pela própria Gulbenkian, já neste século, para ilustrar o conto de Almeida Faria Vanitas: 51, avenue d"Iéna (morada de Calouste Gulbenkian em Paris).
Em Portugal, ainda antes do edifício da sede estar concluído, usaram-se pavilhões pré-fabricados no jardim para dar a ver parte da coleção, que, entretanto, ia crescendo antes e depois do 25 de Abril. Todas as curadoras são unânimes em reconhecer a importância da aquisição da coleção Jorge de Brito, em 1983, imediatamente antes da inauguração do edifício do CAM, a 20 de julho desse ano.
Este élan não se perdeu com o tempo nem com as mudanças de direção. Entre 2015 e 2020 entraram na coleção cerca de 500 obras, algumas das quais são mostradas aqui pela primeira vez. É o caso da obra do jovem artista Jaime Welsh ou dos Bunis, de Joana Vasconcelos.
Para Benjamin Weil (atual diretor do CAM) o encerramento para remodelação deste espaço não significou uma interrupção da relação com o público. Ao longo dos últimos meses já foram apresentadas várias exposições noutros espaços e foi desenvolvido o projeto CAM em movimento, que animou lugares tão diversos como comboios, contentores ou bibliotecas. A 18 de maio, na Gulbenkian, teremos uma exposição que porá em diálogo as obras dos escultores Rui Chafes e Giacometti, seguindo-se, em junho, aquilo a que Benjamin Weil chama a "temporada japonesa", com vários eventos programados em torno da arte da estampa daquele país. Quanto à reabertura do edifício do CAM, teremos ainda de esperar por meados de 2024.
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