David Lynch, o feiticeiro de Oz 

Na secção Heart Beat do Doclisboa, há um documentário que mergulha na génese criativa do cineasta a partir do mais intemporal conto de fadas.<em> Lynch/Oz </em>é uma viagem alucinante pela estrada do próprio imaginário americano.
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Nas primeiras páginas de Espaço para Sonhar, a autobiografia escrita com Kristine Mckenna, David Lynch faz menção ao filme que o marcou como nenhum outro: "Não me lembro do dia em que vi O Feiticeiro de Oz pela primeira vez, mas, seja lá quando foi, o filme tocou-me, permanece comigo. Não estou sozinho." É à volta desse clássico inesgotável, e da sua importância no universo cinematográfico do realizador americano, que gira o documentário Lynch/Oz, de Alexandre O. Philippe (dia 10, na Culturgest; dia 16, no Cinema São Jorge), uma das propostas mais sumarentas desta edição do Doclisboa que agora arranca. Ao juntar no próprio título duas grandes referências da cultura popular, o documentarista suíço (nome regular neste festival) aponta uma luz à nossa curiosidade, ao mesmo tempo que provoca o clique sobre a evidência da associação...

Em vez da breve passagem que citámos de Espaço para Sonhar, o documentário recupera outro momento em que Lynch, assumindo a habitual postura esquiva no que toca a explicações sobre o seu cinema, deixa no ar o mistério da sua relação com o filme de 1939. Aconteceu em 2001, numa conversa após a exibição de Mulholland Drive no New York Film Festival, e a declaração foi apenas esta: "Não há um dia em que não pense n'O Feiticeiro de Oz".

De certa maneira, Lynch/Oz nasce do espaço que estas frases curtas do realizador deixam para a interpretação alheia. Dividido em seis capítulos, o documentário de Philippe é um belo exercício ensaístico que reúne diversas análises sob o signo do mesmo tema, convidando críticos e cineastas a elaborar a sua própria visão sobre a forma como O Feiticeiro de Oz está tão entranhado, primeiro, na cultura americana, e depois, no ADN do cinema de Lynch.

Logo no capítulo número um, intitulado Vento, a crítica Amy Nicholson leva-nos (em voz off) no som das rajadas que o filme de Victor Fleming imprimiu no universo subterrâneo de Lynch. Para ela, mais do que os elementos óbvios (os recorrentes sapatos vermelhos, as cortinas de palco, etc.), há aqui uma ligação com a história pessoal do realizador, um rapaz de Missoula, "lugar não muito diferente do Kansas do filme", que decide fazer a sua viagem over de rainbow, como diz a canção - uma viagem de transcendência, ou não estivéssemos a falar de David Lynch.

Nicholson aborda ainda a questão de "nada ser exatamente o que é" no cinema de Lynch, assim como o seu interesse pelo que está debaixo da superfície, a sua pureza infantil e o desejo que tem de manter a magia, ou o segredo dos seus filmes, atrás da cortina, evitando a situação embaraçosa que ocorre com o feiticeiro de Oz, Frank Morgan, quando é descoberto... Tudo isto vai voltando nos capítulos seguintes, com ênfase em certos títulos, como Um Coração Selvagem (1990), Veludo Azul (1987) ou o referido Mulholland Drive, dando conta de um léxico muito americano e culturalmente enraizado nesta indústria cinematográfica: a eterna ânsia de voltar para casa, as dicotomias sonho/pesadelo, sonho/realidade, a Bruxa Boa e a Bruxa Má e o modo como tudo isto, consubstanciado em Oz, se reflete em gestos de autor justificados por um fluxo subconsciente.

Temos também, sempre em voz off, o cineasta John Waters a discorrer sobre a sua afinidade com Lynch, apesar das diferenças entre as duas filmografias, e realizadores mais jovens no panorama - David Lowery e a dupla Justin Benson e Aaron Moorhead - a levar a conversa da influência ora para uma perspetiva mais autocentrada ora para os grandes tópicos do sonho e do mito americano refletidos, não na personagem Dorothy, mas em Judy Garland. Afinal, o cinema de Lynch tem um bocadinho de ambas.

Escusado será dizer que a atração do documentário de Alexandre O. Philippe reside nesta prazerosa liberdade do ensaio, ou diálogo cinéfilo (sem recorrer às tradicionais entrevistas para o efeito), que permite observar ao detalhe as imagens e obsessões de um mundo fílmico aberto ao espírito da pesquisa de sentidos - o que não lhe confere qualquer rótulo de material exclusivo para devotos lynchianos. No mínimo, Lynch/Oz constitui-se como uma sagaz e bem nutrida homenagem ao homem que nos deu Twin Peaks.

Para além deste título, há outras sugestões que saltam à vista na secção Heart Beat do Doclisboa. Por exemplo: Godard Cinema, de Cyril Leuthy, um olhar em retrospetiva sobre a obra do cineasta que influenciou todo o cinema moderno, e que importa revisitar mais do que nunca perante o vazio deixado pela sua morte. Mas também uma trilogia assinada por Mathieu Amalric, Zorn I, II e III, em torno do saxofonista e compositor John Zorn; Still Working 9 to 5, de Camille Hardman e Gary Lane, um regresso ao assunto (desigualdade no trabalho) da comédia Das 9 às 5 (1980), protagonizada por Jane Fonda, Dolly Parton e Lily Tomlin; e produções portuguesas como Cinekomix!!!, de Edgar Pêra, outra trilogia, por sua vez com o foco em três autores de banda desenhada (Neil Gaiman, José Carlos Fernandes e Tommi Musturi), Margot, de Catarina Alves Costa, sobre a etnóloga Margot Dias, O que podem as Palavras, de Luísa Marinho e Luísa Sequeira, no rasto de As Novas Cartas Portuguesas, e A Viagem do Rei, de João Pedro Moreira, um retrato do músico Rui Reininho.

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