Nos filmes de David Lynch, aprendemos a olhar a morte como um fantasma sem rosto que não gosta de anunciar as suas visitas. Dir-se-ia que, na sua cruel objetividade, a notícia da morte do cineasta poderia ainda pertencer a uma das suas ficções: ao princípio da noite de quinta-feira, soubemos do desaparecimento de Lynch, que sofria de um enfisema pulmonar — contava 78 anos. Não se trata de favorecer qualquer tipo de ligeireza, entenda-se. Acontece que a suave ironia que perpassa nos mais inusitados momentos da sua obra coexiste, agora, com a tristeza do momento. A prova disso mesmo provém da própria família, ao anunciar a morte de Lynch na sua página de Facebook. Agradecendo respeito pela sua privacidade, aí se escreve: “Há um grande buraco no mundo, agora que ele já não está connosco.” O que não impede que a informação termine com uma citação feliz do próprio cineasta: “Olhem bem para o donut, não para o seu buraco.” No mundo de Lynch, nada é secundário, incluindo os donuts. Eram mesmo vistosos alimentos de estranho e indecifrável simbolismo em Twin Peaks (1990-91), a série com que ele, muito simplesmente, revolucionou a história da televisão: a noção de série deixou de existir como algo necessariamente ligeiro e “juvenil” para integrar na sua estratégia o público adulto. Dela fez uma derivação cinematográfica, Twin Peaks: Os Últimos Sete Dias de Laura Palmer (1992), para mais tarde, em 2017, realizar uma continuação, de novo em formato de série — a estreia já não foi nos pequenos ecrãs, mas com pompa e circunstância no Festival de Cannes. ."Há um grande vazio no mundo". Morreu o realizador de cinema David Lynch. Tinha 78 anos.Nascido em Missoula, no estado de Montana, a 20 de janeiro de 1946, Lynch interessou-se desde muito cedo pela expressão artística. Os seus estudos, nomeadamente na Academia de Belas Artes de Filadélfia, pareciam encaminhá-lo para a pintura — aliás, nunca deixou de pintar, em particular nos últimos anos em que os seus novos desenhos e quadros proliferaram a par de uma continuada intervenção na Internet (com destaque para os vídeos que ia colocando no YouTube). O cinema adquiriu fundamental importância no seu trabalho graças a Eraserhead (1977), a longa-metragem de estreia que, em qualquer caso, alimentou (e continua a alimentar) o equívoco que leva muito boa gente a situar a sua filmografia no género de terror. Basta olhar para os valores dominantes do género, em especial na produção do século XXI, para compreender que Lynch é autor de uma estética singular fixada, não nos efeitos “visuais” do terror, mas nas zonas mais remotas da identidade humana — aí onde habitam os nossos medos. .O cinema de David Lynch em 5 canções.Importa, aliás, não esquecer a espantosa variedade de registos da sua filmografia. Logo após Eraserhead, dirigiu O Homem Elefante (1980), sobre a existência dramática, em plena época vitoriana, de um muito vulnerável ser humano de rosto monstruosamente deformado por uma doença rara — nele assistimos a uma inversão simbólica que, na altura, um crítico francês resumiu de modo exemplar: “o monstro tem medo”. Com Dune (1984) arriscou no campo da ficção científica, num registo bem diferente das recentes adaptações do universo de Frank Herbert assinadas por Denis Villeneuve, seguindo-se o lendário Blue Velvet/Veludo Azul (1986), dantesca parábola familiar que não enjeita o estabelecimento de uma relação perversa com a tradição melodramática de Hollywood. Em 1990, Coração Selvagem (1990) valeu-lhe a Palma de Ouro de Cannes; Lost Highway: Estrada Perdida (1997) e Mulholland Drive (2001) são verdadeiros rituais sobre a convivência do factor humano com os fantasmas do sexo e da morte, o que não o impediu de, pelo meio, com Uma História Simples (1999), reencontrar algo da pulsão realista de O Homem Elefante para narrar a história, realmente simples e comovente, do reencontro de dois velhos irmãos que a vida tinha separado. Donuts e café A obra cinematográfica de Lynch terminou, afinal, há quase duas décadas, com Inland Empire (2006), o que, estranhamente ou não, faz todo o sentido. Isto porque esse é um filme em que confluem as mais variadas componentes formais — da experimentação audiovisual à sedução das novas câmaras de vídeo —, para mais tendo como pano de fundo os bastidores de rodagem de um filme. Dir-se-ia que Lynch quis acertar as suas contas com todas as linguagens que foi aplicando, para entrar noutro capítulo, mais intimista, da sua própria existência pessoal. Logo em 2006, publicou um livro de meditações, Em Busca do Grande Peixe (edição portuguesa: Estrela Polar, 2008), que ele próprio apontava como uma viragem no seu modo de viver e pensar. Continuou a pintar, gravou discos (o último dos quais, The Big Dream, surgiu em 2013) e nunca deixou de cultivar a religião dos donuts, devidamente acompanhada pelo fascínio do café amplamente consumido pelo agente do FBI, Gordon Cole, que ele próprio interpreta em Twin Peaks. Tudo isto, importa não esquecer, deve ser entendido como uma exuberante filosofia de amor pela vida. .Lynch nos cinemas.Atualmente, está a decorrer em várias salas do país (até 26 de fevereiro), um ciclo de filmes de David Lynch em cópias restauradas. São eles: Eraserhead, O Homem Elefante, Uma História Simples, Mulholland Drive e Inland Empire..Entre imagens. David Lynch ou a arte do invisível