David Lean: um inglês em Hollywood

Quando dirigiu <em>Lawrence da Arábia</em>, David Lean era já um nome consolidado no interior da produção britânica. Depois, graças a<em> Doutor Jivago</em>, confirmou-se como um dos grandes especialistas da "superprodução" da década de 1960.
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Em 1962, aquando do lançamento de Lawrence da Arábia, David Lean (1908-1991) era já um nome reconhecido como especialista do grande espectáculo. O seu filme anterior, A Ponte do Rio Kwai (1957), um épico da Segunda Guerra Mundial, tinha sido consagrado em Hollywood com sete Óscares, incluindo melhor filme e melhor realização. Daí uma curiosa ironia histórica: nascido em Croydon, a sul de Londres, Lean foi então celebrado (e, por vezes, continua a ser) como um símbolo automático do mais "puro" cinema americano.

A ironia é relativa, claro, quanto mais não seja porque há muito que as "majors" da Califórnia e os estúdios britânicos mantinham uma aliança que excedia a dimensão meramente técnica. Pelo menos desde 1948 que o Hamlet de Laurence Olivier (também consagrado nos Óscares) tinha ajudado a definir uma lógica industrial e artística de continuada partilha de talentos. Seja como for, importa lembrar que Lean foi, antes do mais, uma figura emblemática do classicismo britânico.

Para a sua conceção de espectáculo - e, muito em particular, para a capacidade de elaborar narrativas de riquíssimos contrastes dramáticos e ritmos narrativos - terá sido determinante o facto de Lean ter entrado no cinema pela área da montagem. Em boa verdade, ele começou mesmo "por baixo", aos 19 anos de idade, nos estúdios da Gaumont British: foi moço de recados para as bebidas, experimentou várias tarefas de apoio às filmagens, antes de, em poucos anos, chegar a assistente e, depois, chefe de montagem das atualidades da Gaumont British News.

Trabalhou, depois, em filmes tão significativos como Pigmaleão (1938), de Anthony Asquith e Leslie Howard, ou Falta um dos Nossos Aviões (1942), de Michael Powell e Emeric Pressburger, estreando-se na realização co-assinando um filme de mobilização para os esforços da guerra, Sangue, Suor e Lágrimas (1942), com o seu amigo Noël Coward.

Poderia ser o começo de uma carreira mais ou menos ligada às variações do "filme histórico". Dando provas de uma versatilidade invulgar, Lean acabou por se impor como um dos mais talentosos criadores da produção britânica das décadas de 40/50 através de géneros bem diversos. Primeiro, com Breve Encontro (1945), com o par Celia Johnson/Trevor Howard, um dos mais célebres melodramas de toda a história do cinema, tendo como base a peça Still Life, de Coward; depois, através de duas brilhantes adaptações de Charles Dickens, Grandes Esperanças (1946) e As Aventuras de Oliver Twist (1948).

Entre os títulos seguintes da sua filmografia, encontramos Summertime (1955), entre nós estreado como Loucura em Veneza, porventura o mais bizarro na sua evolução: uma comédia romântica recheada de ironia, protagonizada por Katharine Hepburn. Mais tarde, o impacto de A Ponte do Rio Kwai e Lawrence da Arábia conferiu a Lean o estatuto, afinal totalmente merecido, de especialista da "superprodução". Seguiu-se Doutor Jivago (1965), a partir do romance de Boris Pasternak, com o papel central entregue a Omar Sharif, e A Filha de Ryan (1970), história de amor em cenários irlandeses durante a Primeira Guerra Mundial que continua a ser o mais mal amado (ou, pelo menos, o mais esquecido) título de Lean.

A sua filmografia parecia ter ficado por aí, tanto mais que A Filha de Ryan não teve, nem de longe nem de perto, o impacto comercial dos filmes anteriores. Até que, em 1984, Lean regressou com Passagem para a Índia, segundo E. M. Forster, uma visão dramática e enigmática na Índia sob o domínio britânico. Vários projetos posteriores ficaram pelo caminho, incluindo Império do Sol, a partir do livro de J. G. Ballard, cuja realização Lean entregou ao responsável pela produção, isto é, Steven Spielberg.

Através desta trajetória de mais de meio século, fica a herança paradoxal de um mestre que trabalhou no interior dos modelos da grande indústria, embora sabendo aplicá-los de modo inventivo, inovador e inspirador. Spielberg, precisamente, e também Martin Scorsese são alguns dos que sempre o reconheceram como uma referência tutelar para a sua formação. Por alguma razão, quer pelos temas que abordou, quer através das conjunturas de produção em que trabalhou, Lean foi um autor que transcendeu fronteiras.

dnot@dn.pt

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