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Daniel Brühl preso no figurino Lagerfeld

Uma das séries muito aguardadas deste ano, Becoming Karl Lagerfeld estreou-se no Disney+ com uma nota de desilusão. Um retrato do designer de moda, antes de se tornar um ícone, que peca por não aprofundar a personagem para além dos esforços e compromisso de Daniel Brühl.
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Se Cristóbal Balenciaga se distinguiu entre os seus pares como o “verdadeiro costureiro”, devoto da qualidade dos tecidos, e Christian Dior deixou a sua marca no talhe luminoso das peças femininas, em que é que o alemão Karl Lagerfeld (1933-2019) foi especial como designer de moda? Eis a pergunta obrigatória para qualquer série que verse sobre um estilista. E depois das duas que já nos chegaram este ano - precisamente, Cristóbal Balenciaga  e The New Look (sobre Dior) -, Becoming Karl Lagerfeld parece ser a única que falha na resposta. Ou melhor, entre o “mercenário do prêt-à-porter”, como lhe chamam no início, e o suposto talento incompreendido, que não impediu a sua ambição pessoal de definir um percurso ascendente, a série criada por Isaure Pisani-Ferry, Jennifer Have e Raphaëlle Bacqué tem notórias dificuldades em articular o interesse criativo de Lagerfeld. 

Dito isto, os seis episódios que estão disponíveis no Disney+ concentram-se no período em que Lagerfeld ainda não era um nome a respeitar, e muito menos o homem hoje conhecido pela imagem de marca (que o ano passado foi tema da Met Gala): o colarinho alto e branco, o rabo-de-cavalo, os óculos escuros e as luvas sem a ponta dos dedos.

A sua extravagância em 1972 passava já pelos óculos e outros acessórios, mas tinha muito mais que ver com o facto de mentir sobre a idade e usar espartilho para esconder os efeitos físicos dos pontuais desvios alimentares. Ou seja, tinha horror a mostrar-se “como era”.

Num certo sentido, a série acaba por incorporar essa prioridade da imagem fabricada, do jogo glamoroso da aparência, mas isso não ajuda a dar importância a um retrato que, desde o referido ano de 1972 até 1981, se fica pelas intrigas sociais da indústria da moda, neste caso, relacionadas com o ex-amigo Yves Saint Laurent (pobremente dramatizado como um sujeito dependente de sexo e drogas). A saber, Lagerfeld começava aí a ganhar alguma presença enquanto designer  freelancer  em Paris, trabalhando sobretudo para a Chloé, marca que tentou usar como veículo de poder, através da sua fundadora, Gaby Aghion (uma envelhecida Agnès Jaoui).

Seja como for, Becoming Karl Lagerfeld não está muito voltada para a especificidade da moda, a não ser nos termos empresariais. A história centra-se, de forma estranha, na figura do socialite Jacques de Bascher (Théodore Pellerin), que um dia chamou a atenção de Lagerfeld num clube noturno, ganhando rapidamente terreno na sua vida e, pouco depois, envolvendo-se também com Saint Laurent - o que, ainda por cima, acicatou o ódio do companheiro dominador de Saint Laurent, Pierre Bergé...

Enfim, no meio disto, a curiosidade pela psicologia do designer alemão fica-se pelo ar de nobreza ferida, que se conjuga com o facto de ele ser o típico filho inseguro da sua mãe de pose austera, com quem vive, e não conseguir desmanchar-se diante de quem quer que seja.

Na pele de Lagerfeld, Daniel Brühl é apenas correto. O tipo de ator poliglota, muito competente, que sabe vestir a personagem na impressionante fluência das várias línguas (fala-se sobretudo francês), mas sempre com um tom bastante rígido, desconfortável, que nos faz perceber a graça da sua arrogância, sem propriamente suscitar simpatia ou fazer com que queiramos saber mais sobre a personalidade em apreço. No fundo, há aqui uma irrelevância que se tenta disfarçar com o brilho dos cenários parisienses, as festas, espaços noturnos, e as vistas de Roma e do Mónaco. Uma pura acumulação visual.

O efeito Dietrich

Naquele que é talvez o melhor episódio de Becoming Karl Lagerfeld, o segundo - e que é também o único realmente sobre moda -, surge a conterrânea Marlene Dietrich, interpretada por Sunnyi Melles, a solicitar uma visita... Num piscar de olhos, o telefonema de uma das maiores estrelas de Hollywood, que poderia ser só um fait-divers passageiro, transforma-se na oportunidade de ouro do “desconhecido” Lagerfeld perante a imprensa.

O que é que acontece? A Vogue põe-se a postos para uma edição toda ela dedicada a Dietrich, que será vestida pelo próprio Lagerfeld e fotografada por Helmut Newton, e quando, chegada ao estúdio, a diva pede para ver a roupa, temos o caldo entornado: ela chama o estilista à parte e dá-lhe uma descompostura por não ter percebido nada do que significa vestir uma madura Dietrich.

A situação deste encontro, ou encontros, não terá sido bem como se pinta. Mas a verdade é que o episódio capta algo de Dietrich que, consequentemente, diz qualquer coisa sobre a indefinição estilística de Lagerfeld, e que é também parte da falta de definição da série. De resto, na autobiografia de Marlene lê-se: “Sempre preferi cores neutras a cores puras, e os especialistas com quem trabalhei sempre concordaram que eu estava certa.” Onde é que o convicto Lagerfeld foi desencantar aquele azul com apontamentos bordeaux? Um erro delicioso.

Sem se vislumbrar o génio ou, muito simplesmente, o que é que afinal caracterizava uma peça de alta-costura do designer  alemão, os episódios prosseguem na linha de uma certa superficialidade, mais ou menos consciente. Assistimos ao homem a correr atrás da carreira, com visão de empresário e movimentos calculados, por vezes um pouco cruéis, dentro da indústria (aí, reconheça-se, não há embelezamento biográfico), mas é raro sentir a pulsação do ser encenado pelas próprias indumentárias...

Porventura, a sua maior conquista criativa, a avaliar por esta ficção francesa. Quando muito, Becoming Karl Lagerfeld funciona a favor da ideia de uma silhueta inescrutável. O problema é que, na prática, parece apenas tratar-se de uma personalidade superdesinteressante para efeitos de estudo.

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