As consolas de jogos de realidade virtual biotecnológicas de eXistenZ (1999), os insetos mutantes de O Festim Nu (1991), as transformações da carne em A Ninhada (1979), Scanners (1981), Videodrome (1983) e A Mosca (1986), entre outros, o ritual da ginecologia em Irmãos Inseparáveis (1988) e a carga sexual associada aos desastres de viação em Crash (1996). Tudo isto é David Cronenberg, tudo isto ecoa em Crimes do Futuro como se o corpo de trabalho do realizador fosse um organismo vivo pronto a servir autoreferências. A começar pelo título: Crimes of the Future é homónimo de um filme que Cronenberg realizou em 1970, embora não se trate de um remake ou sequela. O primeiro anda à volta de uma clínica de Dermatologia chamada "House of Skin", envolvendo uma praga que matou toda a população de mulheres sexualmente maduras, o segundo entra no mundo das artes através de um casal de artistas performativos que fazem da cirurgia um espetáculo underground. Ou como se diz a certa altura, "a cirurgia é o novo sexo"..Na obra deste canadiano de 79 anos, a relação efetiva entre corpo, tecnologia, violência e desejo tem sido uma constante, ou não fosse ele o cineasta que cunhou definitivamente o termo body horror. Mas quando foi a última vez que o vimos operar dentro do cinema de género pós-moderno? É, de facto, essa conotação com o passado dos filmes de Cronenberg, entre a ficção científica e o imaginário do terror corporal, que torna Crimes do Futuro um objeto quase de arqueologia estilística. Evidência que se torna ainda mais gritante se compararmos com o anterior Mapas Para as Estrelas (2014)....No centro de Crimes do Futuro temos Saul e Caprice - interpretados, respetivamente, pelo habitué Viggo Mortensen e Léa Seydoux -, artistas cujas performances para o público consistem em cirurgias, levadas a cabo por ela, para remover órgãos que crescem de forma espontânea dentro do corpo dele. "Vamos, como professores de literatura, procurar o significado que está trancado no poema", diz Caprice durante o primoroso ato cirúrgico. Aqui, não existe dor. O corte delicado das lâminas de controlo remoto que substituem o bisturi equivale a algo aproximado do prazer sexual. Isto num cenário futurista que nada tem de linhas retas ou superfícies lisas: a mesa de operações é um artefacto tão estranho quanto a cama de Saul, a última assemelhando-se a uma casca de noz ou à metade côncava de um órgão humano em grande escala..Ou seja, a estética do filme é o seu primeiro elemento narrativo, já que a visão do exterior, por si só, nos empurra para a dimensão das entranhas do corpo. Bastaria esse rasgo cronenbergiano para garantir uma boa experiência perturbadora, mas o realizador (que escreveu este argumento original nos anos 1990) vai além do engenho espetacular enveredando por um conto sobre a evolução humana que acaba por cair no comentário, porventura demasiado óbvio, sobre a nossa convivência com o lixo industrial, a ponto de haver quem consiga digerir plástico..Naturalmente, Cronenberg sabe que a simples existência de Crimes do Futuro constitui um prazer nostálgico, como um aceno em forma de longa-metragem aos "crimes do passado" do seu cinema. E se é verdade que esse aspeto se cumpre na íntegra, parece faltar alguma vitalidade numa história que por vezes, de modo involuntário, faz lembrar os universos gastos de George Lucas, com um Mortensen de capuz preto a vaguear por ruas escuras como um mestre Jedi sem sabre de luz... Nada que chegue a ferir esta peça de robustez autoral, com inequívoca linguagem de diversão adulta. Mas, em todo o caso, sente-se que o ator de alguns dos melhores filmes de Cronenberg - entre eles, o soberbo Uma História de Violência (2005) - está aqui "preso" a um design de evocação cinematográfica, como se fizesse parte da fascinante mobília. Uma imagem interessante dessa escassa liberdade de movimentos no filme é o seu desconforto na cadeira ergonómica onde se senta para tomar as refeições: comer ainda não é o novo sexo. Ainda..dnot@dn.pt