Germano Almeida, habitual participante das Correntes d’Escritas, descreve os bastidores do evento com bastante humor.
Germano Almeida, habitual participante das Correntes d’Escritas, descreve os bastidores do evento com bastante humor.D.R.

“Crime”, disse Germano Almeida

Deverá ser o livro mais polémico do ano este Crime nas Correntes d’Escritas de Germano Almeida. Afinal, há muito que não se via um romance ser suspenso do plano editorial.
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O escritor cabo-verdiano Germano Almeida tentou em 2014 escrever uma espécie de policial no cenário do encontro literário da Póvoa de Varzim, o Corrente d’Escritas. Só uma década depois é que terminou o romance, que deveria ter sido apresentado em fevereiro, na 26ª edição do evento, mas uma “ameaça de um processo judicial” fez com que a editora Leya suspendesse a sua publicação. Tal como num policial em que o detetive tenta descobrir o criminoso, após uma “investigação” foi anunciado o fim de uma situação rara nas últimas décadas e assim chega agora às livrarias o já muito famoso, ainda antes de ser editado, livro de Germano Almeida, a que chamou Crime nas Correntes d’Escritas.

O que o escritor oferece aos leitores neste Crime não difere em muito dos seus últimos trabalhos, como na Trilogia do Mindelo, que tinha como ponto de partida o mistério da morte de um ilustre cidadão, intitulado Um Fiel Defunto. Ou seja, o autor aprecia estas reviravoltas literárias e não apenas livros de bom humor e histórias sobre as suas ilhas, que têm seduzido os leitores e júris de vários prémios. Daí que não resistisse a inscrever numa nova narrativa um “alegado” crime na Póvoa de Varzim, a partir do roubo de um manuscrito do escritor Mário Zambujal.

O romance terá três espécies de leitores: a centena e meia de participantes que todos os anos acorrem à Póvoa, multiplicada pela diversidade somada em mais de duas dezenas de eventos anuais; os espetadores que em massa estão presentes nas várias sessões com escritores e que estão curiosos com o que não observam em direto, e os leitores tradicionais da obra de Germano Almeida. Em todos estes públicos existirá uma curiosidade que faz parte de um denominador comum: os bastidores do Correntes d’Escritas. Uma reunião que tem resistido ao passar dos anos e que faz regressar anualmente à Póvoa um núcleo duro de “estrelas” do mundo literário ibero-americano.

Os personagens têm uma particularidade, a de não serem inventadas por Germano Almeida, antes pegou nos participantes e organizadores do encontro e transformou-os nos atores do romance. É um projeto que acalenta desde há uma década e que só recentemente voltou ao manuscrito para o terminar. Como refere na introdução, Uma explicação necessária, o escritor é um dos convidados habituais do Corrente d’Escritas, o que se confirma pelo domínio na descrição de toda a organização do evento e das excentricidades dos que como ele lá vão.

Foi durante as frequentes reuniões no bar do hotel onde os participantes se reúnem entre atividades e após os jantares que nasceu a ideia deste policial: “Fui conhecendo e convivendo com pessoas diversas e foi desses dias de agradável convívio que me surgiu a ideia de escrever uma paródia que deveria passar-se durante os quatro dias de uma edição”. É deste ímpeto literário que nasce o Crime, livro que ficou em banho-maria por vários anos depois de ter escrito uma boa parte, até que, recorda, “parei quase abruptamente, indeciso sobre o que fazer de personagens que eram pessoas que conhecia, estimava e não desejava colocar em situações que pudessem ser consideradas constrangedoras”.

Regressado à escrita do policial situado na Póvoa de Varzim, verifica-se que não colocou ninguém em situações constrangedoras, antes se diverte, e diverte os leitores, com a tal “paródia” que pretendia escrever desde o início. Foi buscar um dos intervenientes de sempre nas Correntes, o poeta Aurelino Costa, e transforma-o numa dupla que reproduz outra dupla famosa de detetives, a que ao compararem-se até lhes chama Aurelino Holmes e Germano Watson. A partir desta dupla que se confronta com o referido roubo do manuscrito de um futuro romance de Zambujal, vai trazendo às páginas muitas das figuras habitualmente presentes no evento. Não esquece um dos povoenses ilustres, o escritor Eça de Queiroz, nem muitos dos detalhes do dia a dia do encontro literário, construindo a investigação de forma meticulosa para solucionar o mistério que a todos provocara uma reação, não fossem eles representantes das profissões que lá marcam presença e o assunto lhes interessasse: escritores, editores e jornalistas. Repesca ainda a ignorância que em muito se mantém do que aconteceu quando Portugal foi o país convidado da Feira do Livro de Frankfurt, como justificação para o esclarecimento cabal do mundo da literatura.

Após duas centenas de páginas de volte-faces na investigação, à qual vai chamando uma dezena de autores que têm marcado presença constante no encontro, chega-se à solução do alegado crime. Germano avisa que “impusera a si mesmo o encargo de investigar o desaparecimento do manuscrito de Zambujal” e para tal contara com o seu parceiro Aurelino Costa, fazendo o crivo entre 148 suspeitos. A investigação não é fácil, tanto que Aurelino Holmes até confessa, melancólico: “Ainda não descobrimos quem fanou o manuscrito”. Demora que preocupa os organizadores do evento, Luís Nascimento e Manuela Ribeiro, mas tudo acabará da melhor forma e a contento de todos os alegadamente envolvidos neste Crime nas Correntes d’Escritas, como os vários tipos de leitores poderão comprovar com a leitura deste policial de Germano Almeida, que espelha bem a veia humorística do escritor e as personalidades literárias que vai retratando.

CRIME NAS CORRENTES D’ESCRITAS

Germano Almeida

Editorial Caminho

230 páginas

Germano Almeida apresenta o romance amanhã em Lisboa, pelas 18.30, no Centro Cultural de Cabo Verde

Outras novidades literárias

OS EXCLUÍDOS

Os elogios impressos na capa do novo romance de Emma Cline, A Convidada, referem-no como “compulsivo” e “cativante”, respetivamente pelo The Independent e Observer. Contrariamente ao que é normal, essas características encontram-se mesmo nesta história de uma jovem, Alex, que vai somando relacionamentos duvidosos e interesseiros durante as duas centenas e meia de páginas de uma ação bastante pausada, em que a autora divaga sem pressa pelo percurso que a sua protagonista faz em busca de soluções para viver depois de cometer erros de comportamento básicos que a deixam abandonada, sem teto e companhia, e a ocupa em passeios pelos areais das praias em frente a casas luxuosas de ricos norte-americanos nos Hamptons. Por entre os homens abastados, há também os rufias, que desassossegam Alex e deixam o leitor eternamente à espera de um desenlace feliz ou trágico que, no entanto, Emma Cline inventa de forma surpreendente. É um verdadeiro retrato de uma falsa aristocracia americana e daqueles que aceita ou não na sua convivência com seres humanos que não são da sua classe.

A CONVIDADA

Emma Cline

Porto Editora

261 páginas

REEDIÇÃO EM BOA HORA

A editora Quetzal continua a reimprimir a obra do escritor Vergílio Ferreira e desta vez trata-se do importante Para Sempre, um romance de 1983, que dramatiza a existência humana de um protagonista sem esperança. Uma narrativa própria daqueles anos de questionamento social, mas também do papel da literatura com que o autor se debatia. 

PARA SEMPRE

Vergílio Ferreira

Quetzal

302 páginas

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