Do ponto de vista laboratorial, seria possível acontecer algo assim", diz-nos Tiago Correia sobre o cenário que se apresenta na série Y: O Último Homem. Depois de uma misteriosa praga eliminar da face da terra toda a humanidade com o cromossoma Y - isto é, os homens cisgénero - uma ordem social feminina começa a formar-se em torno do caos massivo. "Se pensarmos em armas e em dispositivos que tenham uma configuração genética, é plausível", prossegue o sociólogo. "Na verdade, é-o cada vez mais, se associarmos a isso a inteligência artificial... Tenho vindo a olhar para os filmes e séries de ficção científica cada vez mais com uma dose de realismo: coloco-me na circunstância." Eis o tipo de olhar que pede esta série de dez episódios agora disponível no Disney+, uma adaptação da banda desenhada homónima de Brian K. Vaughan e Pia Guerra, publicada pela DC Comics em 2002..No mundo pós-apocalíptico aqui forjado, um homem e o seu macaco de estimação sobreviveram à extinção da "espécie" masculina. Mais precisamente, um jovem chamado Yorick (Ben Schnetzer), aspirante a mágico, que por acaso é filho da congressista democrata, Jennifer Brown (Diane Lane), designada presidente dos Estados Unidos após a dizimação do Partido Republicano que estava no poder. De um dia para o outro, a paisagem americana transforma-se em ruas desertas, com aparato militar aqui e ali, e grupos de mulheres, incluindo transgénero, que se organizam para sobreviver, mediante filosofias distintas. É com um desses grupos que se vai cruzar a também filha da presidente, Hero (Olivia Thirlby), uma paramédica que tenta chegar a Washington DC, enquanto ainda se debate interiormente com o terror da noite em que tudo aconteceu..A personagem que acaba por prender mais as atenções nesta história é a Agente 355 (excelente Ashley Romans), uma enigmática profissional de segurança que fica responsável pela proteção de Yorick, "o último homem", um cândido mais interessado em encontrar a namorada do que consciente de ser um exemplar único. Até porque, no fim de contas, Y é menos uma série sobre a questão genética do cromossoma do que sobre a rutura das tradicionais estruturas do poder. "A exterminação dos homens corresponde aqui à queda do poder masculino, sobre o qual as sociedades, tal como as conhecemos, foram construídas. Portanto, a ideia é: o que acontecerá numa sociedade em que a disrupção acontece na sua base, ou seja, nas relações de género, que são relações que constroem capital, poder e assimetrias.".Nas salas e corredores do Pentágono, feito residência temporária, a nova presidente, rodeada de outras figuras políticas, funcionárias e forças militares, vai tentando lidar com a desordem concreta e existencial, à medida que se aglomera uma multidão à porta. O que fazer? Que decisões tomar num contexto inédito de grande escala? São dúvidas que inquietam qualquer simples mortal com um problema em mãos que o ultrapasse. E, mais do que nunca, diante de uma pandemia real, estamos sensíveis a tal ambiente, que, na opinião de Tiago Correia, está representado com o pulso certo: "Conheço alguma coisa de bastidores de emergências de saúde pública e posso dizer que aquilo que acontece na série é muito realista nesse aspeto. Quando, a certa altura, a personagem da Diane Lane diz que o que lhe interessa é tratar do presente, e o futuro logo se vê, o ponto é exatamente esse. Nós sabemos que, perante um novo agente infeccioso, como foi a covid, o que importa é resolver no imediato. Mas também sabemos que há formas de preparar, de ter estruturas montadas. É preciso ter consciência que estes cenários podem acontecer - isso não significa que seja possível evitar os danos, mas sim a rapidez com que eles aparecem.".Em Y: O Último Homem, esse sentido de prevenção não é descurado, como nota o sociólogo: "Num dos primeiros episódios, coloca-se o problema da energia, algo que tem de ser resolvido no longo prazo. Mas naquele momento ainda existem reservas para um certo período de tempo. E isto é um sinal da preparação do sistema, que deve estar sempre acautelada para uma eventualidade. Mesmo que essa eventualidade seja uma coisa completamente descabida face àquilo que é a nossa racionalidade.".Ser racional em panoramas complexos é um treino que tivemos, e continuamos a ter, com a pandemia covid-19, cuja memória recente fixa dois nomes da política internacional. "Temos os exemplos da chanceler alemã Angela Merkel e da Jacinda Ardern, primeira-ministra da Nova Zelândia. Embora a estratégia de "casos zero" agora já não seja eficaz, a verdade é que, na primeira e segunda vagas, a Nova Zelândia foi vista pela comunidade científica internacional como um caso de sucesso. E a mesma coisa com a Alemanha. Tivemos esses dois grandes modelos de liderança no feminino." Resta saber se a presidente de Diane Lane dará conta do recado, cercada que está de outras mulheres com sede de ascensão e ganas para derrubar a democrata no mais alto cargo político do país..dnot@dn.pt