Quem o visse em palco, apaixonadamente debruçado sobre a guitarra, não imaginava que, durante perto de 30 anos, essas mãos, em que a rainha Isabel II viu unhas de marfim, passavam os dias na tarefa, tão meticulosa como asséptica, de arquivar radiografias no Hospital de São José, em Lisboa. Carlos Paredes, nascido em Coimbra a 16 de fevereiro de 1925, era um homem surdo a elogios públicos, que só muito tarde na sua vida e carreira optou por se tornar músico profissional.E, no entanto, o reconhecimento da sua arte era unânime, onde quer que atuasse, qualquer que fosse a audiência. Como conta a jornalista Dina Soares na biografia agora publicada, Carlos Paredes - Nome de Guitarra (edição Glaciar), a rainha Isabel II de Inglaterra, na sua segunda visita a Portugal, quis cumprimentá-lo depois de o ouvir tocar. Mas este não era um simples gesto de cortesia. Impressionada, a soberana pegou nas mãos do artista e ter-lhe-á dito: “Que grandes que são os seus dedos. E que fortes que são as suas unhas. São feitas de marfim!”Qual era o segredo? Em declarações à autora deste livro, o musicólogo (e amigo de Carlos Paredes) Rui Vieira Nery afirma: “A música dele toca tanto as pessoas porque é muito boa. Tem simultaneamente um lado melódico muito expressivo e uma complexidade muito grande que nos surpreende. Além disso, ele, enquanto intérprete, tem uma força, uma entrega emocional absolutamente contagiosa como só acontece com os maiores músicos. O Paredes agarra-nos e arrasta-nos com ele ao longo da experiência daquela obra.”Os pais tiveram nele uma influência determinante. O pai, Artur, na música; a mãe, Alice, licenciada (coisa rara entre as mulheres da sua época) em Histórico-Filosóficas e professora, na militância política e na vida cultural. Artur Paredes era filho e sobrinho de dois guitarristas de nomeada em Coimbra, respetivamente Gonçalo e Manuel Paredes. Em 1935, quando a família se mudou para Lisboa, Artur passou a frequentar assiduamente as oficinas de construção de guitarras e modificou o instrumento à sua medida, sobretudo em termos de afinação. Mas também ficou conhecido pela severidade e exigência para com o filho, Carlos, que durante muito tempo foi o seu segundo guitarra..Talvez por causa dessa severidade paterna só em 1957, com 32 anos, Paredes gravou um disco, no caso um EP com chancela de Alvorada. Três anos depois, a sua música foi utilizada por Cândido da Costa Pinto na curta-metragem Rendas de Metais Preciosos, mas a sua mais marcante colaboração com o cinema aconteceria em 1962, com a banda sonora encomendada por Paulo Rocha para Verdes Anos. Paredes colaboraria ainda com filmes de Jorge Brun do Canto, Manoel de Oliveira, António de Macedo, José Fonseca e Costa, Manuel Guimarães, Augusto Cabrita, entre outros. Para teatro, destaca-se o seu trabalho para a peça O Avançado de Centro Morreu ao Amanhecer, de Cuzzani, levada à cena em 1971 pelo Grupo de Teatro de Campolide, com quem colaboraria durante sete anos. Isto enquanto militava no PCP, o que, após denúncia de um colega do Hospital à PIDE, lhe valeria a prisão durante mais de um ano e a expulsão da função pública (seria readmitido após o 25 de Abril).De discografia escassa (não gostava de gravar em estúdio), estreia-se no longo formato com o álbum Guitarra Portuguesa (1967), seguindo-se Movimento Perpétuo (1972), Concerto em Frankfurt (1983, reeditado em CD em 1990) e Espelho de Sons (1988). Além do seu trabalho como intérprete, realizou ainda a produção e direção musical do disco Meu País (1970), de Cecília de Melo, acompanhando a cantora à guitarra e musicou poemas de Manuel Alegre, ditos pelo próprio, no disco É Preciso Um País (1975). Ao longo da sua carreira fez várias parcerias com artistas como Charlie Haden, Adriano Correia de Oliveira, Carlos do Carmo e António Vitorino de Almeida, mas os grandes parceiros foram o guitarrista Fernando Alvim e Luísa Amaro, sua discípula e companheira dos últimos 20 anos de vida, que se tornaria a primeira mulher a compor para guitarra portuguesa..Mas o amor de Carlos Paredes pelo instrumento que elegeu não se esgotava na interpretação e composição. Pude testemunhá-lo em março de 1992, quando, acabada de chegar à redação do JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, fui incumbida de o entrevistar. Sempre prestáveis, Carlos e Luísa Amaro procuraram que eu não tivesse de ir muito longe e marcaram a conversa para a sala de espera de um consultório médico a que o músico tinha de ir, por acaso, situado muito perto da então redação do JL. E a conversa aconteceu, com o músico a falar sobre os concertos que se avizinhavam no São Luiz, mas também a revelar o muito que sabia sobre História da Música. Foi, ao longo dessa conversa, que fiquei a saber que “Soeiro Pereira Gomes e Camilo Castelo Branco tocaram guitarra portuguesa com sentimento de amador e espírito de são divertimento” e também que “este instrumento se tocou por toda a Europa até aos primeiros anos do século XIX.” .O que ainda não sabíamos, nesse dia, é que esta seria uma das últimas entrevistas da sua vida. No ano seguinte, ser-lhe-ia diagnosticada uma mielopatia, doença do sistema nervoso, que, antes de mais, o impediria de tocar. Carlos Paredes morreu a 23 de julho de 2004 na Fundação Lar Nossa Senhora da Saúde em Lisboa, onde passou os últimos anos. E a guitarra, que já se quedara silenciosa, acabou por ficar órfã..Espetáculo com 200 cantores e músicos celebra Carlos Paredes em Coimbra.Discos dão vida a um instrumento idealizado por Carlos Paredes
Quem o visse em palco, apaixonadamente debruçado sobre a guitarra, não imaginava que, durante perto de 30 anos, essas mãos, em que a rainha Isabel II viu unhas de marfim, passavam os dias na tarefa, tão meticulosa como asséptica, de arquivar radiografias no Hospital de São José, em Lisboa. Carlos Paredes, nascido em Coimbra a 16 de fevereiro de 1925, era um homem surdo a elogios públicos, que só muito tarde na sua vida e carreira optou por se tornar músico profissional.E, no entanto, o reconhecimento da sua arte era unânime, onde quer que atuasse, qualquer que fosse a audiência. Como conta a jornalista Dina Soares na biografia agora publicada, Carlos Paredes - Nome de Guitarra (edição Glaciar), a rainha Isabel II de Inglaterra, na sua segunda visita a Portugal, quis cumprimentá-lo depois de o ouvir tocar. Mas este não era um simples gesto de cortesia. Impressionada, a soberana pegou nas mãos do artista e ter-lhe-á dito: “Que grandes que são os seus dedos. E que fortes que são as suas unhas. São feitas de marfim!”Qual era o segredo? Em declarações à autora deste livro, o musicólogo (e amigo de Carlos Paredes) Rui Vieira Nery afirma: “A música dele toca tanto as pessoas porque é muito boa. Tem simultaneamente um lado melódico muito expressivo e uma complexidade muito grande que nos surpreende. Além disso, ele, enquanto intérprete, tem uma força, uma entrega emocional absolutamente contagiosa como só acontece com os maiores músicos. O Paredes agarra-nos e arrasta-nos com ele ao longo da experiência daquela obra.”Os pais tiveram nele uma influência determinante. O pai, Artur, na música; a mãe, Alice, licenciada (coisa rara entre as mulheres da sua época) em Histórico-Filosóficas e professora, na militância política e na vida cultural. Artur Paredes era filho e sobrinho de dois guitarristas de nomeada em Coimbra, respetivamente Gonçalo e Manuel Paredes. Em 1935, quando a família se mudou para Lisboa, Artur passou a frequentar assiduamente as oficinas de construção de guitarras e modificou o instrumento à sua medida, sobretudo em termos de afinação. Mas também ficou conhecido pela severidade e exigência para com o filho, Carlos, que durante muito tempo foi o seu segundo guitarra..Talvez por causa dessa severidade paterna só em 1957, com 32 anos, Paredes gravou um disco, no caso um EP com chancela de Alvorada. Três anos depois, a sua música foi utilizada por Cândido da Costa Pinto na curta-metragem Rendas de Metais Preciosos, mas a sua mais marcante colaboração com o cinema aconteceria em 1962, com a banda sonora encomendada por Paulo Rocha para Verdes Anos. Paredes colaboraria ainda com filmes de Jorge Brun do Canto, Manoel de Oliveira, António de Macedo, José Fonseca e Costa, Manuel Guimarães, Augusto Cabrita, entre outros. Para teatro, destaca-se o seu trabalho para a peça O Avançado de Centro Morreu ao Amanhecer, de Cuzzani, levada à cena em 1971 pelo Grupo de Teatro de Campolide, com quem colaboraria durante sete anos. Isto enquanto militava no PCP, o que, após denúncia de um colega do Hospital à PIDE, lhe valeria a prisão durante mais de um ano e a expulsão da função pública (seria readmitido após o 25 de Abril).De discografia escassa (não gostava de gravar em estúdio), estreia-se no longo formato com o álbum Guitarra Portuguesa (1967), seguindo-se Movimento Perpétuo (1972), Concerto em Frankfurt (1983, reeditado em CD em 1990) e Espelho de Sons (1988). Além do seu trabalho como intérprete, realizou ainda a produção e direção musical do disco Meu País (1970), de Cecília de Melo, acompanhando a cantora à guitarra e musicou poemas de Manuel Alegre, ditos pelo próprio, no disco É Preciso Um País (1975). Ao longo da sua carreira fez várias parcerias com artistas como Charlie Haden, Adriano Correia de Oliveira, Carlos do Carmo e António Vitorino de Almeida, mas os grandes parceiros foram o guitarrista Fernando Alvim e Luísa Amaro, sua discípula e companheira dos últimos 20 anos de vida, que se tornaria a primeira mulher a compor para guitarra portuguesa..Mas o amor de Carlos Paredes pelo instrumento que elegeu não se esgotava na interpretação e composição. Pude testemunhá-lo em março de 1992, quando, acabada de chegar à redação do JL - Jornal de Letras, Artes e Ideias, fui incumbida de o entrevistar. Sempre prestáveis, Carlos e Luísa Amaro procuraram que eu não tivesse de ir muito longe e marcaram a conversa para a sala de espera de um consultório médico a que o músico tinha de ir, por acaso, situado muito perto da então redação do JL. E a conversa aconteceu, com o músico a falar sobre os concertos que se avizinhavam no São Luiz, mas também a revelar o muito que sabia sobre História da Música. Foi, ao longo dessa conversa, que fiquei a saber que “Soeiro Pereira Gomes e Camilo Castelo Branco tocaram guitarra portuguesa com sentimento de amador e espírito de são divertimento” e também que “este instrumento se tocou por toda a Europa até aos primeiros anos do século XIX.” .O que ainda não sabíamos, nesse dia, é que esta seria uma das últimas entrevistas da sua vida. No ano seguinte, ser-lhe-ia diagnosticada uma mielopatia, doença do sistema nervoso, que, antes de mais, o impediria de tocar. Carlos Paredes morreu a 23 de julho de 2004 na Fundação Lar Nossa Senhora da Saúde em Lisboa, onde passou os últimos anos. E a guitarra, que já se quedara silenciosa, acabou por ficar órfã..Espetáculo com 200 cantores e músicos celebra Carlos Paredes em Coimbra.Discos dão vida a um instrumento idealizado por Carlos Paredes