Na manhã em que Manuel Alegre, na qualidade de presidente do júri do Prémio Leya, telefonou a Celso Costa para lhe anunciar que o seu livro, A Arte de Driblar Destinos, era o vencedor da edição de 2022, o brasileiro só encontrou uma palavra para exprimir a dimensão da surpresa: "Puxa!". E repetiu-a mais duas vezes, como se temesse que palavra mais elaborada desfizesse o encantamento..Distinguido, segundo a declaração do júri (composto ainda por Ana Paula Tavares, Isabel Lucas, José Carlos Seabra Pereira, Lourenço do Rosário, Nuno Júdice e Paulo Werneck), pelo "ritmo e vivacidade" com que o autor "reflecte o mundo social do interior do Brasil", A Arte de Driblar Destinos corresponde, como Celso Costa assume ao DN, "a memórias autobiográficas". "Tinha material para umas 800 páginas, mas estou pensando num segundo volume, que os leitores já começaram a pedir", revela..Tudo começa no interior do estado do Paraná, onde o escritor nasceu há 74 anos: "Quando eu era muito pequeno, a minha família deixou uma fazenda no sertão, chamada Ribeirão do Engano, para viver numa cidadezinha. Em muitos sítios já havia eletricidade, mas em casa não tínhamos televisão nem geladeira (frigorífico). A primeira geladeira que os meus pais tiveram ainda não era elétrica, mas alimentada a querosene.".Destaquedestaque"Estas memórias estão ligadas pelo cimento da ficção porque às vezes estou a evocar coisas muito enevoadas ou dispersas. A memória não é uma ciência exacta: duas pessoas da mesma família podem ter memórias diferentes do mesmo acontecimento." .Filho de mãe que só sabia escrever o nome (e se dedicava a costurar para fora) e de pai que agarrava todos os biscates que podia para chegar ao fim do mês, o miúdo começou a ver na escola "uma luz que estivesse lá no fundo e orientasse a navegação." Em jeito de homenagem, Celso manteve os reais nomes dos pais e dos professores, mas alterou todos os outros, muito embora todas as personagens sejam inspiradas em pessoas que ele conheceu: "O coveiro era uma eminência na cidade, embora gostasse um bocado de cachaça. Mas tinha um nome corriqueiro e dei-lhe o nome de Cipriano Sombra, para ser mais romanesco. Do mesmo modo, chamei Malvino ao delegado porque corresponde ao homem violento que ele efetivamente era.".A narrativa avança assim, entre momentos de grande densidade dramática, como aquele em que o pai é baleado a mando de um sócio desonesto, e outros quase epifânicos como o que evoca a descoberta das maravilhas da Matemática pelo narrador, num capítulo a que deu o nome de "Salto duplo no trapézio do Infinito", onde escreve: "Aquela alegria do mestre a estimular o aprendiz, sem medo de sombras futuras sobre a sua força matemática: Um sentimento natural, mas só entre os verdadeiramente grandes. E entregando-me sua caneta, e passando junto um papel branco, pediu logo a outra solução. O prazer de tocar com os dedos a caneta do mestre, (...) eu ia indicando ao mestre a segunda via, como por um caminho rápido e correto, chegar ao mesmo valor para a soma.".Celso não pode jurar se as coisas se passaram realmente como as evoca, até porque a Literatura tem meios próprios de lidar com o passado: "Estas memórias estão ligadas pelo cimento da ficção porque às vezes estou a evocar coisas muito enevoadas ou dispersas. A memória não é uma ciência exacta: duas pessoas da mesma família podem ter memórias diferentes do mesmo acontecimento.".E é assim que, numa atmosfera onírica quase felliniana, o livro abre com as desventuras de uma pobre trupe de tourada que andava de terra em terra a entreter o povo: "Do lado leste da cidade, quem saiu de casa com os primeiros clarões do dia logo percebeu aquela montanha de tralha no terreno, certamente deixada de madrugada por algum caminhão. A notícia se espalhou com grande alegria pela cidade: uma tourada acabava de chegar.".Mas ao contrário desta trupe de toureiros maltrapilhos e bezerros esquálidos que não driblou a miséria, Celso conta como aos 19 anos deixou a pequena cidade para estudar em Curitiba, capital do Estado: "Quando eu era moço só havia três cursos superiores respeitáveis: Medicina, Engenharia e Direito. A minha professora na escola primária dissera que eu me podia tornar engenheiro e isso já era motivo de orgulho para toda a família.".A reputação de bom aluno correu pela cidade e tornou-o explicador de matemática da filha do prefeito: "Lembro-me do dia em que senti que a minha sorte estava mudando porque a mãe da jovem me ofereceu um saco de bombons em sinal de agradecimento." Caloiro universitário em Curitiba, Celso foi viver numa residência de estudantes subvencionada pelo Estado destinada a jovens sem recursos financeiros: "Tinha direito a três refeições diárias, lavandaria, quarto, sala de estudo mas no primeiro ano tinha que trabalhar na residência. Até que um dia recebi uma chamada do prefeito da minha cidade a dizer que financiava os meus estudos.".No romance, Celso Costa evoca as memórias do rapaz do campo, o caipira, que desce do ônibus na grande cidade, sabendo que tem pela frente o longo caminho da adaptação a terra estranha: "O moço dos tocos de barba despontando tem fome. Com a mochila aos ombros, arrastando a mala grande, anda alguns metros sem deixar a calçada do desembarque e entra no bar. O aroma é apetitoso, cheiro bom de café acabado de passar pelo coador de pano." Quando o empregado pediu à copa "uma canoa na chapa e uma média", o miúdo sentiu que conquistara as primeiras palavras de um novo vocabulário..Quando a benesse do prefeito terminou, Celso deixou a universidade e começou a dar aulas nos cursos preparatórios do Ensino Superior: "Na verdade, não concluí qualquer licenciatura. Ainda andei em Medicina mas não gostei das aulas de anatomia que me causavam algum horror. Até que um professor me levou para o Instituto de Matemática Pura e Aplicada do Rio de Janeiro, o mais importante da América Latina na sua especialidade." Tinha chegado onde o esperavam e ficou durante sete anos: "Era um curso muito maluco. Para aquela turma, o ser humano era dividido entre pessoas que gostavam de matemática e todas as outras.".DestaquedestaqueNa sua tese de doutoramento, descobriu as equações de uma superfície mínima, que atualmente tem o seu nome: Superfície Costa. Foi uma descoberta que resolveu um problema matemático com 206 anos de existência..Assim começou também uma carreira de tal modo assinalável que o transformou numa referência internacional na área disciplinar da Geometria Diferencial. Na sua tese de doutoramento, descobriu as equações de uma superfície mínima, que atualmente tem o seu nome: Superfície Costa, descoberta que resolveu um problema matemático com 206 anos de existência. "É uma superfície que, neste momento, é sobretudo usada em aplicações artísticas, mas pode ter muitas consequências até em instalações nucleares. O mais curioso é que eu assistia a um filme sobre escola de samba e um dos participantes usava um estranho chapéu de três abas. Naquele momento, tive uma inspiração decisiva sobre o modo como a figura geométrica que eu buscava se apresentava no espaço." Do IMPA do Rio de Janeiro, Celso Costa partiu para várias universidades estrangeiras, onde foi docente (Chambéry, Grenoble) e para a Universidade Fluminense, onde lecionou entre 1981 e a jubilação..Mas o homem que driblou o destino com a matemática tem também a paixão da literatura: "Geralmente as pessoas gostam de uma coisa ou de outra, não é? Entre os matemáticos, sentia-me um pouco peixe fora de água porque gostava muito de ler. Lia compulsivamente Gabriel García Márquez, Cortázar, Jorge Luís Borges ou clássicos brasileiros como Guimarães Rosa, Machado de Assis ou Graciliano Ramos.".Celso Costa, que sempre manteve o hábito de escrever diários ("duas ou três linhas diárias para registar os acontecimentos ou asemoções daquele dia"), uniu as duas linguagens, na aparência tão inconciliáveis, num livro com edição própria a que deu o título de A Vida Misteriosa dos Matemáticos. "É uma ficção matemática que pretende contar a história da matemática através das lendas. Creio que as duas coisas casam bem porque nesta disciplina há uma espécie de eternidade. As equações e teoremas de Arquimedes ou Pitágoras são verdades eternas, resistem a todas as mudanças civilizacionais e esse facto irradia uma luz de uma extrema beleza. Eu acredito que a Superfície Costa vai perdurar muito para além da vida do Celso Costa.".Destaquedestaque"Este Prémio Leya veio em muito boa altura. Estou a precisar de comprar panelas novas, destruí as antigas, de tanto bater nelas no tempo de Bolsonaro.".De resto, também encontra leis e regras na literatura, talvez não tão rigorosas como as da matemática, mas, ainda assim, a considerar: "Com o Tchekhov, que é o pai do conto, ficamos a saber, por exemplo, que se o protagonista fica tuberculoso no capítulo 30, é bom que ele dê logo uma tossidela nos primeiros capítulos.".O gosto pelas histórias é também um legado familiar e tem o sabor da infância perdida: "Encontro o ambiente das histórias da minha infância quando leio Jorge Luis Borges, Gabriel García Márquez ou os autores do realismo mágico. A minha mãe e o meu pai tinham grande capacidade de contar histórias e essa era uma forma de nos entretermos numa casa em que ainda não havia televisão nem sequer muitos livros.".Este homem que driblou o destino graças à Educação espera que o Brasil de Bolsonaro tenha ficado definitivamente na gaveta dos pesadelos passados: "Fui professor na Fluminense durante 30 anos e nunca vi tamanhos atentados à sobrevivência do Ensino Superior no Brasil. Ficámos sem financiamento, não tínhamos dinheiro sequer para pagar a conta da eletricidade. A Universidade e a Ciência foram muito mal tratadas. Para além disso, ele usou a máquina de Estado em seu favor, de uma maneira sem precedentes na História do Brasil. Deveria ser julgado por isso." E acrescenta: "Este Prémio Leya veio em muito boa altura. Estou a precisar de comprar panelas novas, destruí as antigas, de tanto bater nelas no tempo de Bolsonaro.".dnot@dn.pt